Eunice Muñoz. Uma luz que continua acesa por entre os nossos sonhos

Eunice Muñoz. Uma luz que continua acesa por entre os nossos sonhos


A actriz despede-se dos palcos, deixando atrás de si uma carreira de oito décadas que elevou o próprio sentido do espectáculo entre nós. E se algo agora termina, fica, no entanto, uma luz acesa contra o medo do escuro, aquela luz que desde cedo acendeu caminhos num país onde é tão fácil o sonho perder-se.


O sonho tem os seus artífices, subtis caçadores de cabeças, sopradores de um pó que se sustenta no ar, em dança, erguendo um nevoeiro que atira o olhar para lá do horizonte das nossas vidas. Filha e neta desses que levavam o sonho pelos lugares mais longínquos do delírio das cidades, Eunice Muñoz começou por fingir as suas caras nas poças dos caminhos, esses que serpenteiam pela província, calcorreando um país quase secreto, indo pelas terras pequenas onde a família fazia a sua itinerância. Hoje, o seu nome imprime um sentido de altitude à própria noção do teatro nacional, mas aos 5 anos, quando começou a ser chamada para participar em pequenos números musicais com a Troupe Carmo, a companhia teatral da família, recorda-se de um pavor que a tomava, de como punha o seu teatro para escapar a esse outro, fingindo dores de barriga, cuspindo a sua estrela aos poucos para evitar subir a esse céu que a intimidava. Foi nos caminhos acesos que fez então com os pais, os avós e as tias que foi aprendendo a “tremer de melodia”, alimentar-se do escuro e da imaginação para alcançar a transformação do corpo.

Nascida na Amareleja, a 30 de julho de 1928, no seio dessa família de mirabolantes enredos, com muito caminho e ilusão, não é difícil perceber como se encontrou no mundo capaz de atravessar a distância entre um tenebroso recolhimento e a mais emotiva publicidade, sendo tudo o que a vida ou o sonho pedissem que fosse, uma “orquídea de altitude demiurga”, como disse o poeta António Barahona, seu terceiro marido. Ela foi assim capaz de inventar o teor mais íntimo de tantas vidas, arrancá-las de si, depois de as fazer brotar no meio da sua “agressiva primavera”. Aos 93 anos, Eunice despediu-se dos palcos, deixando atrás de si oito décadas de uma carreira inigualável, e fê-lo pisando pela última vez o palco do Teatro Nacional Dona Maria II, acompanhada pela neta Lídia Muñoz, numa passagem de testemunho, construindo um lugar de paixão por meio do silêncio, com "A Margem do Tempo", um texto escrito pelo alemão Franz Xaver Kroetz e encenado por Sérgio Moura.

A peça foi escolhida pela neta, em atenção às restrições que Eunice vive desde 2013, após a remoção cirúrgica de um tumor a ter deixado sem voz. Ainda que tenha recuperado a fala, com terapia e outras intervenções, a voz é um fio doloroso e que a cansa suster, deixando-lhe a garganta seca. Mas neste espectáculo em que ela diz ter sentido o silêncio como uma grande conversa, um silêncio para se habitar só em gestos, com a música de Nuno Feist a forjar uma espécie de sino que orienta a acção, não serve apenas este diálogo para matizar a passagem do tempo, com avó e neta a representarem uma mesma mulher. Um confronto através dos anos, que obriga também o público a reflectir na presença da própria ausência, diante de uma actriz que se despede com um texto sem palavras. É ainda mais outro desafio, que pesa os 80 anos desde a estreia profissional, com apenas 13 anos, em 1941, ao lado de Amélia Rey Colaço.

A grande diva do teatro português fizera saber pela capital que procurava uma miúda que se segurasse ao contracenar com ela em “O Vendaval”, uma peça de Virgínia Vitorino. Chegaram a Eunice depois de uma recomendação de um tenor que a tinha ouvido cantar. Embora no ano seguinte tenha iniciado a sua formação no Conservatório, foi com Rey Colaço, sob a sua direcção, que Eunice diz ter aprendido a pisar o palco, a abandonar-se também para dar testemunho a esses surtos de efabulação, aguentar miragens atravessadas na carne. Barahona que é também o avô de Lídia, exaltou o talento de Eunice falando na “cabeça inteligente da loucura”, caracterizando a sua capacidade de erguer “esculturas vivas e vocais, animadas de intelecto e de sentimento”. Ele recorda como ficou fascinado ao segui-la em tantas noites em que se apresentou ao público, e falando no poder da sua voz, relata a primeira vez em que foi surpreendido por uma espécie de milagre, um “malabarismo fonético” que veria Eunice praticar em palco ainda outras vezes. A primeira foi no Teatro Gil Vicente, em Coimbra, na noite de 14 de Dezembro de 1967. “A Eunice, no meio de um extenso poema de António Nobre, hesitou; e eu, na plateia, percebi a sua hesitação, porque sabia o poema e ajudara-a a decorá-lo. Dessa hesitação, Eunice fez uma pausa, inventou o restante verso e os versos seguintes, de que se esquecera, com rima e métrica exactas, e que podiam muito bem ter sido escritos por António Nobre, e prosseguiu, sem deixar transparecer nenhum sinal de insegurança.”

Num momento em que se sucedem as homenagens, é comum que se convoquem os inúmeros momentos altos de uma carreira que marcou aquilo que o público português espera do teatro, mas o talento de Eunice continua a ser esse de se voltar para a luz, “olhos nos olhos do Sol”, deixando-nos encadeados, e um tanto indefesos, sendo impossível capturá-la nos passos que deu ao longo da vida. De resto, a biografia de um actor deve ser como as costuras que se metem para dentro. Não deve tornar-se demasiado aparente, podendo desmanchar o horizonte de sonho que dispõe para nós. Chega a ser uma traição falar demasiado nos aspectos mais regulares de uma existência assim. São preferíveis as palavras de Barahona, que se espantou diante dessa “ninfa cigana, ondina cor de estrela”. A actriz vive há mais de dez anos com a neta dos dois, e não tem qualquer pejo em reconhecer que é a sua preferida, tendo desejado ser retratada neste ponto final da sua carreira ao lado de Lídia, no documentário “Eunice ou Carta a Uma Jovem Actriz”, de Tiago Durão. É um documento íntimo, uma fotografia com a longa exposição que o cinema permite, ditada segundo um registo emocional, numa simetria tocante entre o princípio e o fim. Pois Eunice nunca deixou de reconhecer a influência que teve a sua avô materna, Augusta do Carmo, que tanto a deslumbrou quando era ainda criança. “Fazia-me chorar de tal maneira que tinham de me levar dali”, recordava numa entrevista, em que reconheceu que uma das suas grandes tristezas que não tenha vivido mais, nem tenha podido vê-la pisar o palco do D. Maria II. Em relação ao documentário, tendo este correspondido a um pedido seu e sendo um trabalho que acompanhou em todas as fases e etapas, mostrou-se radiante com o resultado: “É assim que eu quero que guardem uma memória de mim.”

É uma memória vasta e que se confunde com um período também ele largo e conturbado da própria vida história do país, e se Eunice terá possuído sempre o mais raro dos dons – a naturalidade do coração –, não esconde que houve coisas de que foi roubada nos tempos em que ela e os da sua geração eram jovens. A censura antes do 25 de Abril chegou ao ponto de ter Shakespeare entre os autores proibidos, num país onde houve sempre a tentação de ameninar a sua gente. Mas se aqui vive há séculos um povo menino, lidando com a infestação de ilusões de grandeza e a ressaca que se lhe segue, nas últimas décadas, com esse triunfo da revolução que pouco durou, prosseguiu a infantilização dos públicos, e actriz que resistiu por muito tempo a trocar os palcos pela televisão, acabou por ceder, tendo acabado por tornar-se uma presença regular nas salas de estar do país em produções a mais das vezes achincalhantes para a inteligência de quem vê e ainda mais de quem representa. E, no entanto, mesmo se depois da revolução “já não tinha idade” para tantos papéis que sonhara assumir, houve ainda alguns que lhe permitiram superar-se. Entre as personagens que mais amou, fala em duas peças: Mãe Coragem e os Seus Filhos, de Bertolt Brecht, que se estreou em 1986, e o imponente monólogo de Zerlina, de Hermann Broch, que levou a palco em 1993.

Ao despedir-se, numa altura em que continuará ainda a manter alguma presença na televisão que ora nos azucrina, ora serve para espantar a solidão por esse país fora, Eunice reconhece que a profissão lhe exigiu, e foi muitas vezes cruel, retirando-a do convívio com os seus, e, desde logo, com os seis filhos. Trabalhou sempre, e assim continuará, fazendo companhia até ao último fôlego, sem grande receio da morte, tendo deixado expressa a sua vontade de vir a ser cremada e de que as suas cinzas sejam colocadas à volta do poço da casa da Amareleja, que era dos seus avós maternos. Por agora, continuaremos a vê-la na televisão, mais pela luz que esta oferece, sendo o escuro esse o medo que ainda liga Eunice à sua infância. Tendo reconhecido que nunca o perdeu. “À noite fica sempre uma luz acesa.” Uma luz ainda que fraca, embalando levemente as memórias e os sonhos de todos nós.