Ivan Krastev. Como a pandemia afecta o nosso mundo

Ivan Krastev. Como a pandemia afecta o nosso mundo


Com o recrudescimento da Covid19, continua a ser necessário recensear as lições que podem haurir-se dos tempos de penosa convivência com a pandemia. Para Ivan Krastev, politólogo, investigador do Instituto de Ciências Humanas de Viena, em “O futuro por contar” (Objectiva, 2021), uma das conclusões importantes a extrair deste tempo é que a Covid19 esbateu…


1.Se a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) causou 17 milhões de mortos e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) 60 milhões, a “gripe espanhola” (1918-1920) pode ter ceifado mais vidas humanas do que aqueles dois conflitos bélicos somados – estima-se que a pandemia causou um número de mortos situado entre as 50 e os 100 milhões de pessoas. E, no entanto, sendo o acontecimento mais trágico do século XX, encontra-se praticamente esquecido, muitas vezes até por historiadores (Laura Spinney). A World Cat, a maior base bibliográfica mundial, registava cerca de 80 mil livros sobre a Primeira Guerra Mundial (em mais de 40 línguas) e 400 sobre a “gripe espanhola” (em cinco línguas). A que se deve, então, esta “não inscrição” (na comunidade e sua memória) de um fenómeno tão impactante na última centúria? Para Spinney, a explicação reside, desde logo, na dificuldade em contabilizar as vítimas estritamente vinculadas à pandemia (aquela, como a qualquer outra, como temos notado, desde o início da Covid19, com diferentes critérios, em países diversos, na atribuição de um falecimento de uma pessoa a esta doença); em uma segunda tentativa de compreender esse apagamento da “gripe espanhola” da “história” (e, com ela, das pandemias em geral), com recurso às indicações dos psicólogos Henry Roediger e Magdalena Abel, da Universidade de Washington, cura-se que as pessoas tendem a memorizar apenas “um pequeno número de acontecimentos destacados” de qualquer situação, nomeadamente os que se referem aos momentos de início, viragem e fim; ora, “é muito difícil contar a história da gripe espanhola (…) usando esta estrutura narrativa (p.13); em terceiro lugar, e não menos relevante, será o facto de a morte causada por uma pandemia ser uma “morte trágica”, isto é, despida de heroicidade – que uma guerra, diversamente, tende a prometer; os soldados, assim no-lo transmitem, sacrificam-se em nome de um modo de vida, em nome dos outros -, difícil encontrar nela um “significado”; uma quarta limitação a um rememorar da “gripe espanhola” (das pandemias, genericamente, como vimos de dizer): além de não ter “sentido”, a morte que advém não tem “dignidade” – em muitas ocasiões, ausência de funeral, ou, então, funeral apressado e sem presença de muitos familiares e amigos (p.15). 
2.Uma das mais importantes conclusões do decorrer da pandemia Covid-19, em termos políticos, a nível internacional, no entender do investigador e politólogo Ivan Krastev, em “O futuro por contar. Como a pandemia vai mudar o nosso mundo” (Objectiva, 2021), convocando os registos da académica norte-americana Rachel Kleinfeld, prende-se com o facto de “até agora os dados não mostrarem uma correlação forte entre a eficácia [no combate à pandemia] e o tipo de regime [político existente em um conjunto de países]” (pp.21-22). Assim, uma autocracia como a de Singapura conseguiu bons resultados, mas o mesmo não pode dizer-se do Irão (que adopta idêntico regime político); no caso das democracias, Itália e EUA tiveram desempenhos pouco eficientes, mas Coreia do Sul e Taiwan estiveram em excelente plano na mitigação dos diferentes constrangimentos causados pela Covid19. Segundo Rachel Kleinfeld, os factores cruciais para explicar o (in) êxito na contenção da pandemia são: i) as experiências anteriores do(s) governo(s) a lidar com crises semelhantes; ii) o nível de confiança social existente em uma sociedade; iii) a capacidade do Estado. Ora, Taiwan, Coreia do Sul, Hong Kong e Singapura, mau grado as diferenças de regime político em que se situam, colheram preciosos ensinamentos da epidemia de SARS em 2002-03 e desenvolveram, imediatamente, testes rápidos, mal o novo coronavírus começou a disseminar-se, além de disporem de legislação para situações de emergência, o que permitiu o rastreamento de indivíduos infectados e o alertar das pessoas de que tinham sido expostas ao vírus e deviam realizar testes, bem como, naqueles países, se recorreu a quarentenas obrigatórias para abrandar a propagação do surto. Fundamental, neste contexto, é compreender que “todos os países que repeliram com eficácia a covid19 têm elevados níveis de confiança pública nas suas instituições; o sucesso do controlo social governamental depende mais da aquiescência voluntária do que da imposição (…). A China, Singapura e a Coreia do Sul estão entre os primeiros dez do mundo no que respeita a confiança pública no governo. E só governos que contam com a confiança dos seus cidadãos podem de facto sustentar um confinamento oneroso” (p.23). No Irão, ou em Itália, a escassa confiança dos cidadãos nas instituições tornou a implementação do distanciamento social bem mais problemática. A polarização social e a baixa confiança nas instituições explicam, pelo menos em parte, o insucesso durante meses, nos EUA, no devido combate à pandemia. Ademais, como indica o historiador Frank Snowden, o vírus é mais destrutivo em lugares de “grande densidade populacional e ligados por transporte aéreo rápido, por movimentos de turistas, refugiados, toda a espécie de negociantes e redes interligadas” (p.93). A capacidade de um governo – comunicação, prestação de cuidados de saúde, manutenção da quarentena, fabrico de equipamentos – é o derradeiro elemento crítico apontado por Rachel Kleinfeld: não é o PIB, nem o regime político, “é a qualidade da burocracia que é decisiva e não a grandeza do orçamento ou até o montante despendido com a saúde”, garante a investigadora (p.24). Face a estas reflexões, impõe-se, ainda, como corolário lógico, a observação de que “a resposta global ao coronavírus esbateu as fronteiras entre diferentes tipos de regimes. Os regimes democráticos mostraram-se tão propensos a violar a privacidade dos seus cidadãos como os autoritários. Ao mesmo tempo, ficou claro que os governantes autoritários estavam tão interessados nas reacções do seu povo como os políticos democráticos que receiam as próximas eleições” (p.24). Ou, na feliz síntese de Ivan Krastev, “a mudança que a Covid19 traz não é uma nova versão – seja autoritária ou democrática – do «fim da História»; o que é mais provável que traga é um mundo menos ideológico, mas mais instável” (p.25). 
Embora seja certo que a crise da Covid19 deu lugar a um conjunto de medidas que “as nossas autoridades eleitas nos têm dito, desde há muito, serem impossíveis e impraticáveis”, afinal “certamente possíveis e praticáveis” (Astra Taylor), e sem prejuízo de tal poder propender, efectivamente, a alargar os horizontes da “imaginação política” de muitos cidadãos, está por demonstrar que várias dessas alterações não se fica(ra)m pela conjuntura e que tendam a prolongar-se para lá de uma fase crítica da pandemia. Em todo caso, Krastev vê uma diferença substancial face à crise dos anos 2007 e seguintes, a partir da falência do Lehman Brothers, ocasião em que o apontar do dedo à desregulação (financeira, nomeadamente, e à visão neoliberal que a sustentava) levou ao presságio, não verificado, do “regresso do Estado”: “a eficácia dos governos é agora medida pela sua capacidade de mudar o comportamento quotidiano das pessoas (…). As pessoas demonstraram prontidão em tolerar restrições significativas aos seus direitos, mas não tolerarão governos que não estejam preparados para agir” (p.47). Se em algumas latitudes, e, sobretudo, em uma fase inicial da propagação da Covid19, esta asserção pôde ser tomada, sem demasiadas adversativas, como uma realidade, o que não tem faltado, ao longo do último ano, são reivindicações, em variados países, contra qualquer restrição aos movimentos dos cidadãos, em manifestações, mais ou menos numerosas, em que a violência não tem sido ocasional. A defesa das liberdades fundamentais dos cidadãos ainda que em contexto pandémico – no entendimento dos manifestantes ou, pelo menos, de uma parte destes -, ou uma pulsão libertária que contraria um maior cuidado com os outros e a comunidade – na perspectiva de muitos que observam de fora esses mesmos manifestantes, ou uma parte nada negligenciável daqueles -, para não nos referirmos, já, ao desafio ao conhecimento científico ou a adesão às mais abstrusas teorias da conspiração acerca da Covid19 em que radicam tantos que, ruidosamente, se têm oposto às medidas adoptadas pelos estados para tentarem minimizar os danos provocados pela pandemia, não faz crer em um assentimento, relativamente linear (ou, até, um consentimento tout-court), como parece ser sugerido, a dado momento, em “O futuro por contar”, das populações a um Governo interventivo e extenso (e, de resto, como que contrariando um tanto este seu registo, o próprio Krastev registará como paradoxos da pandemia que os países que melhor contiveram o vírus foram os lugares em que a opinião pública se mostrará mais pronta a criticar o governo pelas medidas de confinamento, ou, tendo o vírus deixado a democracia em pausa).

3.A pandemia expôs a muito humana necessidade de abrigo, refúgio, aconchego, casa (“a casa é o lugar onde mais queremos estar durante um tempo de perigo grave (…). Num tempo de crise, queríamos estar mais perto das pessoas e dos lugares que conhecemos toda a vida”, p.38). 200 mil búlgaros que viviam fora do país, por exemplo, regressaram à terra natal. O território mostra, desta sorte, a sua atracção forte (se, com a globalização, o território perdera relevância como ‘espaço de decisão’, a Covid19 teria restabelecido essa centralidade), sendo que, nele, cabe, ainda, a língua (em) que bebemos no ventre materno: “os psicólogos mostraram que as pessoas voltam muitas vezes a falar as suas línguas maternas em momentos de grande perigo” (p.37). A Covid19 voltou, ademais, a expor as feridas do “trauma da emigração”: tornando-se absolutamente determinante para salvar da morte muitas pessoas, os sistemas de saúde ressentiram-se da saída, ao longo dos anos, de imensos profissionais de saúde (ilustrando sobre a Bulgária onde nasceu, Ivan Krastev escreve: “o coronavírus tornou dolorosamente evidente o êxodo dos profissionais médicos da Europa Central e do Leste. Consequentemente, quase metade dos médicos e enfermeiras em países como a Bulgária têm mais de 50 anos”, p.43). 
O êxodo para o estrangeiro daria lugar, durante pelo menos os tempos iniciais da nova pandemia, a um êxodo para o campo, algo não isento de problemas e contradições: “a França, com os seus 3,4 milhões de residências secundárias, é um exemplo eloquente de um lugar onde a decisão da classe média afluente de se evadir dos principais centros urbanos do país tem sido vista como mais uma indicação da arrogância e egoísmo daqueles que têm dinheiro” (p.44). Muito curiosamente, e do ponto de vista histórico, as segundas residências “são, elas próprias, um legado da epidemia. Após os primeiros surtos da Peste Negra no século XIV, muitos habitantes das cidades da Itália do Renascimento começaram a investir em propriedades no campo, em parte para garantir provisões alimentares fiáveis em tempos de crise” (p.45). 

4.Apesar de, sem demasiado esforço, se poder alvitrar que, embora ninguém podendo, em rigor, fugir do mundo – e de um possível contágio com o novo coronavírus -, as diferenças de condição económico-social (das mais variadas pessoas) iriam ter consequências muito substantivas e diversificadas no modo como diferentes cidadãos poderiam ser, de muitos modos, alvo da pandemia, houve quem quisesse insistir no mantra de que “estamos todos no mesmo barco”. Não estamos: “o vírus atingiu sociedades dilaceradas por diferentes tipos de desigualdade e os primeiros dados dos EUA mostram claramente que o rendimento e a raça desempenharam um importante papel em determinar quem morre. Como afirma Stephen Holmes, a pandemia enfatiza a desigual «distribuição do perigo» na sociedade – mobilidade descendente para o túmulo -, em vez de apenas a distribuição desigual de recursos e oportunidades para a mobilidade ascendente” (p.49). É certo, não obstante, que desta vez a moderninha – e poucas vezes questionada, na medida em que quase sempre equacionada em termos pejorativos para os que não têm possibilidades/instrumentos/empoderamento bastante para irem além de um determinado território, como bem sublinhou Michael Sandel em “A tirania do mérito”; trata-se de uma antítese, largamente difundida em anos recentes, não raro em termos maniqueístas, com o lado identificado como “moralmente errado” a ser o dos que serão “fechados”, sem cuidar de saber porque se manifestam assim – distinção entre «gente de qualquer lugar” e “gente de um certo lugar” (David Goodhart) perdeu, mesmo que por certo lapso de tempo (e não definitivamente), operatividade. Ironia das ironias, as «pessoas de qualquer lugar» – aquelas que possuem os conhecimentos, saberes, competências, aptidões para se moverem nos múltiplos espaços de um mundo global – andam, agora, “desesperadamente à procura do lugar certo” (p.50). Mas reitera-se: “viver no mesmo mundo não é o mesmo que viver num mundo partilhado ou num mundo justo”.

4.A Covid19 tornou as práticas, as medidas, as resoluções dos diferentes governos conhecidas por cidadãos de outros países que, ao longo destes mais de 18 meses, não pararam de proceder a comparações (“exigem saber por que razão a Alemanha está a fazer muitos mais testes do que a França, por que motivo estão a morrer mais pessoas no Reino Unido do que na Áustria, e porque é que alguns governos estão preparados para gastar muito mais do que outros nas compensações dadas a pessoas e empresas pelos custos da crise”, p.80). E imitações: “agir como os outros pode salvar-nos a vida. Em 2015, um grupo de militantes do Al-Shabaab invadiu a Universidade de Garissa, no Quénia, e tomou os alunos como reféns, mostrando misericórdia apenas pelos que provassem ser islâmicos recitando uma passagem do Alcorão. Os que não recitaram foram baleados ali mesmo. Uma estudante cristã, ao ver o que acontecia aos colegas, apressou-se a memorizar o trecho. Tal como afirma Michel Baddeley (…) a jovem «salvou a própria vida através de aprendizagem social, reunindo informação sobre as escolhas dos outros e as respectivas consequências» (pp.76-77). Nesse sentido, o planeta pareceu, por uma vez, unificado (e note-se: “o maior cosmopolita que já houve, Immanuel Kant, nunca saiu da sua cidade natal de Konigsberg”, p.101). Ainda que essa unidade se desse, em múltiplos momentos, na ansiedade, convocando outras memórias: Marcel Reich-Ranicki, crítico literário alemão, “conta-nos que, nos meses passados no gueto de Varsóvia durante a Segunda Guerra Mundial, embora ocupasse o tempo a ler, nunca pegou num romance, pois temia não conseguir acabar a leitura antes de morrer” (p.66). Também nós tememos colocar um pé em ramo verde. Quanto aos líderes autoritários, apreciadores de medidas discricionárias (que lhes aumentem os poderes e o poder), “não gostam de crises que os obrigam a responder com regras. A melhor maneira de impedir a propagação do vírus não é o génio nem o vigor do líder, mas sim regras mundanas, como lavar as mãos regularmente” (p.63). Durante o período pandémico já vivido, em particular no primeiro trimestre de 2020, a China sofreu a primeira grande queda no PIB desde a Revolução Cultural de Mao, “o que se revela um desafio significativo e simbólico para um governo cuja legitimidade assenta na sua capacidade de proporcionar padrões de vida progressivamente melhores”, ainda que, considera Krastev, o modelo chinês não seja “uma alternativa ideológica ao capitalismo, mas sim parte integrante do capitalismo global” (pp.68 e 70). 
Finalmente, o combate à pandemia implicou medidas, em diferentes estados, como a limitação ao ajuntamento de pessoas: ora, a democracia não sobreviverá se não viermos a poder juntar-nos em grupos de 50 pessoas.