Benfica-Sporting. Mais do que inimigos eram irmãos (parte I)

Benfica-Sporting. Mais do que inimigos eram irmãos (parte I)


Foi precisamente no dia 1 de Dezembro que aconteceu o primeiro derbi – há 114 anos. O Benfica ainda era só Sport Lisboa e o Sporting venceu por 2-1. Nascia a maior rivalidade do futebol português


A frase roubei-a a Dino Segre, esse extraordinário mestre do humor que se assinava Pittigrilli. Há 14 anos publiquei um livro que viajava por dentro dos cem anos de Benfica-Sporting. Usei-a como título e é dele que me auxilio para estas peças que precedem novo derbi, marcado para a próxima sexta-feira, na Luz.

Aqui chegados, é preciso dizer algo: os Benficas-Sportings são tão antigos que começaram mesmo antes de haver Benficas-Sportings. Não, não é exagero. É a mais cristalina das verdades: o primeiro Benfica-Sporting não foi Benfica-Sporting, foi Sport Lisboa-Sporting. E, já agora, o segundo também.

Estávamos no dia 1 de Dezembro de 1907. Estamos no dia 1 de Dezembro de 1921: passaram-se 114 anos.

No dia 30 de Novembro, o Diário de Notícias noticiava esta possibilidade: “Vida Sportiva. Foot-ball. Desafios da Liga. Devem realisar-se hoje, no campo de Carcavellos, os desafios da Liga entre o Sporting Club de Portugal e o Sport Lisboa e entre o Carcavellos Club e o Club Internacional de Foot-ball”. (Respeitou-se, como não podia deixar de ser, a redacção da época).

A possibilidade desse “devem” tornou-se realidade. E os desafios disputaram-se mesmo.

Esta Liga de que se fala é, de facto, o Campeonato de Lisboa, a primeira competição por pontos disputada em Portugal. Estávamos na II Edição. A primeira tinha tido a presença de Carcavellos, Lisbon Cricket, CIF e Sport Lisboa. Na segunda, o Sporting substituiria o Lisbon Cricket.

Não foi com leviandade que escrevi: antes do primeiro Benfica-Sporting já havia Benfica-Sporting. Sim, porque a rivalidade germinara antes de qualquer dos clubes entrar em campo naquele Primeiro de Dezembro de Mil Novecentos e Sete.

Vamos lá, então.

Fundado a 1 de Julho de 1906, o Sporting era, no início de 1907 um clube cheio de entusiasmo e sede de glória. Nascido dois anos e meio antes, no dia 28 de Fevereiro de 1904, o Sport Lisboa estava a braços com a sua primeira crise. E que crise!

No início do séc. XX, o futebol era um desporto caro. A gente costuma dizer, em tom irónico, de quase gozo, que era o tempo das balizas às costas. Era mesmo. Não tendo campos nem instalações próprios, os jogadores dos diversos clubes que tinham surgido entretanto, estavam obrigados a desmontar os postes, a recolher as redes – geralmente compradas a pescadores – e a fazer peditórios para adquirir bolas, um verdadeiro artigo de luxo.

O Benfica pode, ao longo dos anos que seguiram, ter ganho a aura de clube popular e, até, plebeu. Mas não era isso que sucedia com o Sport Lisboa, em 1907. Muitos dos seus jogadores da primeira categoria, como se designava na altura a equipa principal, eram gente de elevada posição social. Januário Barreto era médico, Couto arquitecto, Francisco dos Santos, acabado de regressar de Paris, e José Neto eram escultores com certo nome, Silvestre José da Silva professor, Pedro Guedes abraçava a carreira de pintor, os irmãos António e Cândido Rosa Rodrigues, conhecidos por Catataus, eram senhores das melhores relações, tal como sucedia com Daniel Queirós e Emílio de Carvalho. Além disso já não eram propriamente uns garotos e sentiam-se diminuídos pelo facto de o Sport Lisboa não possuir um campo próprio, sendo obrigados a treinarem-se e a jogarem nas Salésias, um terreno público, com todas as desvantagens inerentes.

Que desvantagens? Em primeiro lugar, o futebol já era uma actividade tão querida que atraía chusmas de curiosos e de mirones, com os miúdos a apoderarem-se das bolas que saíam do campo, com um ou outro mais atrevido a atravessar o relvado no decorrer das partidas e dos treinos; em segundo lugar porque, paredes meias com um quartel que albergava dois regimentos de cavalaria, o campo era igualmente utilizado para exercícios de garbo com os quadrúpedes.

O azar Mário Fernando de Oliveira e Carlos Rebelo da Silva contam com chiste, na sua História do Sport Lisboa e Benfica (1904-1954), que António Rosa Rodrigues, um dos Catataus de Belém, fundadores do Sport Lisboa, durante um jogo nas Salésias tropeçou num rapazinho que atravessou inadvertidamente o campo, partindo-lhe uma perna, o que lhe valeu a intervenção da polícia e a presença na Esquadra de Belém. Sentença: o pai Rosa Rodrigues proibiu os filhos de jogarem futebol e a actividade do clube foi interrompida durante o castigo. O motivo principal prendeu-se com o facto de os Catataus serem os donos das bolas.

Ora, perante estas peripécias pouco dignificantes, os jogadores das primeiras categorias do Sport Lisboa declararam-se indisponíveis para o que consideravam “umas rapaziadas” e que metiam, ainda por cima, a obrigação de andar com os equipamentos às costas, utilizando balneários ao ar livre.

A inveja é um sentimento terrível que corrói lentamente como a ferrugem, oxidando a alma dos homens.

Do outro lado No Campo Grande, na antiga Alameda do Lumiar, hoje em dia Alameda das Linhas de Torres, José Holtreman Roquette, o José de Alvalade, que recebera um terreno do seu avô, o Visconde de Alvalade, erguera um campo de futebol com todas as condições e que era conhecido pelo Sítio das Mouras. Em breve teria também pista de atletismo, courts de ténis, pavilhão com vestiários e armários pessoais, chuveiros e banhos de imersão, sala de estar e de jogos e até uma cozinha equipada para a preparação de refeições quentes.

Ah! Que arrepiante diferença!

Perante a sua miséria e a exibição do luxo alheio, os jogadores do Sport Lisboa revoltam-se. E exigem soluções.

A direcção do clube lança-se em busca de um campo. Tenta adquirir os terrenos onde se ergue, actualmente, o Estádio do Restelo, mas debalde.

É vontade de todos que o clube se mantenha na zona de Belém, onde nascera numa reunião simplória na Farmácia Franco, mas a verba recolhida não era suficiente para enfrentar rendas que rondavam os 200 réis por mês.

A conclusão foi dramática para o Sport Lisboa: cada qual ficava livre para encontrar a solução que melhor lhe conviesse.

Falei de inveja e esqueci-me de acrescentar: neste caso, a inveja tinha duas faces. E uma delas era verde.

(continua)