A acusação de homicídio por negligência ao motorista que conduzia o carro do ex-ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, e que atropelou mortalmente um trabalhador na A6 contém erros surpreendentes: indica como uma das testemunhas um elemento do Corpo de Segurança da PSP, referindo-se sempre a ele como se fosse no carro do acidente, quando na verdade ele seguia numa segunda viatura da comitiva.
A responsabilidade ou é da Procuradora da República Catarina Silva, que redigiu a acusação, ou então da própria investigação ao acidente, que foi feita pela GNR.
Tudo começa e acaba com a lotação do BMW que trazia Eduardo Cabrita de volta a Lisboa, a 18 de junho de 2021, após uma visita à escola da GNR de Portalegre. A acreditar na acusação, o carro mais parecia um machimbombo, pois dá como confirmado que na viatura seguiam cinco pessoas, quando na realidade os passageiros eram apenas quatro: o motorista, Marco Pontes, ao seu lado (’no lugar do morto’) Paulo Machado, oficial de ligação da GNR no MAI, e, atrás, Eduardo Cabrita e o um dos seus assessores, David Rodrigues.
Segundo o i apurou junto de fontes da Polícia de Segurança Pública, a quinta testemunha que a Procuradora refere – Rogério Meleiro, um elemento do Corpo de Segurança daquela polícia – ia, por decisão e ordem do próprio ministro, num carro atrás, acompanhado por outros dois colegas. A mesma fonte, que afirma não compreender esta troca, explica que, segundo as normas, o segurança do ministro deve acompanhá-lo sempre na viatura em que segue porque “é ele quem deve controlar tudo o que se passa e analisar qualquer perigo que possa surgir”. E específica: “É ele o único que tem legitimidade para exigir que se ande mais depressa ou mais devagar, que pode ligar ou desligar os sinais de emergência, ligar ou não as sirenes, mudar a trajetória, enfim, dar o corpo às balas”. A mesma fonte desabafa: “Parece que queriam meter lá um elemento da segurança para se livrarem de responsabilidades. Mas o problema é que não podem alterar o depoimento dele nem dos outros com quem seguia”. Ou seja, tanto Rogério Meleiro como os outros elementos da PSP na comitiva afirmaram que iam na segunda viatura atrás da do ministro, quando foram inquiridos durante o inquérito feito pela GNR.
A distribuição dos passageiros dentro do carro do ministro que é feita pela procuradora na acusação – e que diz resultar dos depoimentos das testemunhas – arruma com o protocolo que costuma orientar estas deslocações. Diz a acusação que o oficial de ligação da GNR é que seguia sentado ao lado do motorista. No banco traseiro, à direita, iria Rogério Meleiro (lugar que, segundo as normas de segurança deve ser o da pessoa a proteger, neste caso o ministro), ao meio Eduardo Cabrita (de pernas encolhidas, presume-se) e à direita um dos seus assessores.
Na verdade, segundo o i apurou, o BMW levava quatro pessoas e a distribuição era a seguinte: à frente, o motorista e ao seu lado o oficial de ligação da GNR; no banco traseiro, o ministro, à direita, e o seu assessor, à esquerda.
Mas este erro factual da acusação tem várias implicações. Desde logo, contribui para retirar responsabilidades ao ministro. É que, segundo as normas protocolares, na ausência do elemento de segurança pessoal dentro do carro, quem manda na viatura é o ministro.
Depois, como se pode ler no despacho, Rogério Meleiro é uma das três testemunhas – juntamente com o oficial de ligação da GNR e o assessor do governante – que corroboram que Cabrita não deu qualquer indicação ao motorista sobre a velocidade que devia seguir: “A testemunha ocupava o lado direito da viatura conduzida por Marco Paulo. Desconhece a que velocidade circulava a viatura, confirma o posicionamento dos elementos que compunham a comitiva e afirma que o senhor ministro da Administração Interna não deu qualquer indicação quanto à velocidade a que devia de seguir a viatura, nem nunca foi estipulada qualquer velocidade de deslocação pelo Corpo de Segurança Pessoal”.
De facto, se Rogério Meleiro não estava dentro do carro, não poderia dar qualquer indicação ao condutor. Mas também não poderia afirmar que o ministro não deu qualquer indicação.
Quanto à velocidade a que a viatura seguia no momento do acidente, segundo a acusação, todas as testemunhas, exceto o ministro, afirmaram “não ter noção”. Foi preciso uma peritagem de especialistas da Universidade do Minho para fazerem um cálculo: “Da perícia efetuada pelos Sr. Peritos da Universidade do Minho destinada a apurar a velocidade instantânea e a dinâmica do acidente foi possível aferir que a velocidade instantânea se situou entre os 155Km/h e os 171Km/h, apresentando-se a velocidade de 163 Km/h como a mais provável”. A crer no relato da acusação, Eduardo Cabrita não foi questionado sobre a que velocidade seguiam, apenas jurou a pés juntos que não deu qualquer orientação ao motorista sobre essa matéria.
Todas estas questões terão de ser agora esclarecidas no julgamento, ou ainda antes, em fase de instrução, se esta for requerida pelo arguido (o motorista) ou os assistentes no processo (a família da vítima e a Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados).
Saliente-se ainda que segundo o i apurou depois da data do acidente o ministro da Administração Interna nunca mais prescindiu da presença de um elemento do Corpo de Segurança na sua viatura.
Eduardo Cabrita acabaria por se demitir na passada sexta-feira, sendo substituído pela sua colega Francisca Van Dunem, que acumula a pasta da Justiça com a da Administração Interna.