Procuradores do Restelo


A ideia da «carreira plana» tinha um pressuposto essencialmente democrático: todas as funções da magistratura revestem igual dignidade e não são em si mesmas hierarquizáveis no seu grau de importância.


Li, há já alguns dias, que alguns Procuradores dizem preocupar-se com o facto de uns poucos dos seus colegas – os igualmente «velhos» Procuradores da República – terem optado por lugares de alegada menor relevância profissional.

A proposta de acabar com a pretérita distinção entre Procuradores-adjuntos e Procuradores da República fundou-se e foi inspirada numa ideia desenvolvida, nos finais dos anos oitenta do século passado, pela magistratura italiana: a carreira plana.

Em Portugal, o acolhimento da mesma ideia teve ainda por base a circunstância legal de todos os magistrados do Ministério Público (MP) exercerem competências próprias: não serem delegados ou meros coadjutores.

Tal ideia tinha, na verdade, um pressuposto extraprofissional e essencialmente democrático: demonstrar que todas as funções da magistratura revestem igual dignidade e não são, em si mesmas, hierarquizáveis no seu grau de importância.

Os cidadãos que recorrem à Justiça não podem, nem devem ser prejudicados por uma gestão de quadros que tenha por critério comum uma eventual menor qualificação dos magistrados colocados em tribunais e procuradorias menos movimentadas e menos centrais.

Como consequência, os magistrados que aí exercem, se desenvolvendo bom e reconhecido trabalho, não deveriam ser, em função de tal colocação, definitivamente prejudicados em termos de progressão remuneratória.

A sua progressão remuneratória poderia ter tempos diferentes e, porventura, mais lentos, relativamente aos magistrados que tivessem optado por uma colocação em lugares de maior evidência e especialização, mas nunca deveria ser estancada definitivamente.

Nestas características – igual dignidade funcional, elasticidade e desbloqueamento das carreiras e distinta, mas inevitável, progressão remuneratória para todos – consistiam as invocadas vantagens profissionais da «carreira plana», que, aliás, concitou um alargado consenso entre os partidos com representação parlamentar.

De resto, era o que acontecia, em certa medida e de há muito, com os juízes portugueses: todos são juízes de direito, podendo os que desenvolvem a judicatura nos tribunais de segunda instância invocar o título de desembargadores e os que exercem nos supremos tribunais o de conselheiros.

Neste sentido, com a consagração estatutária da «carreira plana» no Ministério Público português, se realizou, também, mesmo que só parcialmente, mais um passo no aperfeiçoamento do sempre reivindicado paralelismo das magistraturas.

Que alguns «velhos» procuradores tenham utilizado tal mudança para, sem perdas remuneratórias, optarem por lugares de menor destaque e pressão não espanta, nem, tão pouco, deve ser alvo de uma crítica agastada e precipitada.

Na base da ideia italiana de «carreira plana» estava, também, a consagração da possibilidade de uma gestão mais flexível da carreira dos magistrados.

Aí se incluía, também, a possibilidade de que, querendo, alguns dos magistrados mais experientes, mas também mais desgastados pelos anos de serviço, pudessem, ainda assim e sem perdas remuneratórias de base, voltar a exercer em lugares menos trabalhosos, mas, nem por isso, carecendo de menor dignidade e exigência.

Simultaneamente, os mais novos e, porventura, mais vocacionados para as novas realidades que se suscitam à intervenção judiciária atual, viam, assim, abertas as possibilidades de, ainda vigorosos, atingirem lugares que requerem uma constante atualização técnica – nem sempre necessariamente jurídica – em campos regulados mais recentemente pelo direito e, quando de topo, de maior exposição pública.

Viam, igualmente, compensada remuneratoriamente essa sua disponibilidade para, mais cedo, exercerem funções de maior exposição, intensidade e especialização.

Era precisamente essa a mobilidade e plasticidade que a «carreira plana» pretendia favorecer.

Assim se debelava o problema do bloqueamento das carreiras e vencimentos dos mais novos e se propiciava a especialização necessária à ocupação de alguns lugares de maior complexidade técnica em detrimento de uma escolha antes muito condicionada pela antiguidade e, pior, por opções de cariz mais «aparalhístico».

Com isso se fortalecia, também, a autonomia e a responsabilidade de cada um dos magistrados na programação da sua própria carreira.

Eis, pois, as ideias bases que presidiram – com mais ou menos acerto e amplitude – à reforma do Estatuto do Ministério Público português.

Claro está que a mudança de um sistema para outro implicava uma regulamentação exigente, perspicaz e também ela maleável, não devendo importar, no entanto, ruturas radicais e súbitas.

O Estatuto, de resto, consagra a possibilidade de o Conselho Superior do Ministério Público regulamentar, com autonomia e acuidade, a organização interna e a gestão dos quadros desta magistratura.

Atribuir à opção pela «carreira plana» a causa dos atuais problemas de gestão de quadros no MP não pode, pois, deixar de insinuar um juízo negativo quanto à filosofia desta nova e progressista reforma.

Tal atitude, em si mesma, nada tem de censurável, desde que assumidos, claramente, os verdadeiros pressupostos de tal crítica. 

A ideia que, desde o início, alguns de tais magistrados mais críticos sempre tiveram da «carreira plana» – se é que tinham alguma e, verdadeiramente, a desejavam – mais se adequava, de facto, à de uma peneplanície.

Defendiam, por isso, a manutenção dos graus hierárquicos existentes e, acima de tudo, a conservação do destaque simbólico da suposta – mas, afinal, estatutariamente só aparente – posição hierárquica que haviam alcançado.

Aí, aliás, radica uma contradição flagrante nas suas posições essenciais sobre o papel da hierarquia do MP nas decisões processuais.

De resto, uma reação psicológica semelhante aconteceu por parte de alguns juízes – porventura com mais razão – com a introdução, após o 25 de Abril, da separação de carreiras nas magistraturas e a consequente e repentina paridade de vencimentos entre juízes e MP.

Tal reação pode até ser compreensível, todavia, não deve ser com fundamento em tais sensibilidades «belenenses» que se reformam e modernizam os sistemas.

Não esqueçamos, no entanto, que foram precisamente alguns desses «velhos» Procuradores – porventura mais desgastados, mas não menos briosos do que os pares que os criticam – que decidiram, atualmente, empregar a experiência adquirida em funções menos expostas ou exigindo, porventura, menos disponibilidade temporal, mas, nem por isso, de menor dignidade e importância para os cidadãos que delas necessitam.

Quem sabe, todavia, se esta sua opção não promoverá, aí, mudanças importantes e fará progredir um pouco mais a qualidade da justiça exercida em tais tribunais e procuradorias?  

Procuradores do Restelo


A ideia da «carreira plana» tinha um pressuposto essencialmente democrático: todas as funções da magistratura revestem igual dignidade e não são em si mesmas hierarquizáveis no seu grau de importância.


Li, há já alguns dias, que alguns Procuradores dizem preocupar-se com o facto de uns poucos dos seus colegas – os igualmente «velhos» Procuradores da República – terem optado por lugares de alegada menor relevância profissional.

A proposta de acabar com a pretérita distinção entre Procuradores-adjuntos e Procuradores da República fundou-se e foi inspirada numa ideia desenvolvida, nos finais dos anos oitenta do século passado, pela magistratura italiana: a carreira plana.

Em Portugal, o acolhimento da mesma ideia teve ainda por base a circunstância legal de todos os magistrados do Ministério Público (MP) exercerem competências próprias: não serem delegados ou meros coadjutores.

Tal ideia tinha, na verdade, um pressuposto extraprofissional e essencialmente democrático: demonstrar que todas as funções da magistratura revestem igual dignidade e não são, em si mesmas, hierarquizáveis no seu grau de importância.

Os cidadãos que recorrem à Justiça não podem, nem devem ser prejudicados por uma gestão de quadros que tenha por critério comum uma eventual menor qualificação dos magistrados colocados em tribunais e procuradorias menos movimentadas e menos centrais.

Como consequência, os magistrados que aí exercem, se desenvolvendo bom e reconhecido trabalho, não deveriam ser, em função de tal colocação, definitivamente prejudicados em termos de progressão remuneratória.

A sua progressão remuneratória poderia ter tempos diferentes e, porventura, mais lentos, relativamente aos magistrados que tivessem optado por uma colocação em lugares de maior evidência e especialização, mas nunca deveria ser estancada definitivamente.

Nestas características – igual dignidade funcional, elasticidade e desbloqueamento das carreiras e distinta, mas inevitável, progressão remuneratória para todos – consistiam as invocadas vantagens profissionais da «carreira plana», que, aliás, concitou um alargado consenso entre os partidos com representação parlamentar.

De resto, era o que acontecia, em certa medida e de há muito, com os juízes portugueses: todos são juízes de direito, podendo os que desenvolvem a judicatura nos tribunais de segunda instância invocar o título de desembargadores e os que exercem nos supremos tribunais o de conselheiros.

Neste sentido, com a consagração estatutária da «carreira plana» no Ministério Público português, se realizou, também, mesmo que só parcialmente, mais um passo no aperfeiçoamento do sempre reivindicado paralelismo das magistraturas.

Que alguns «velhos» procuradores tenham utilizado tal mudança para, sem perdas remuneratórias, optarem por lugares de menor destaque e pressão não espanta, nem, tão pouco, deve ser alvo de uma crítica agastada e precipitada.

Na base da ideia italiana de «carreira plana» estava, também, a consagração da possibilidade de uma gestão mais flexível da carreira dos magistrados.

Aí se incluía, também, a possibilidade de que, querendo, alguns dos magistrados mais experientes, mas também mais desgastados pelos anos de serviço, pudessem, ainda assim e sem perdas remuneratórias de base, voltar a exercer em lugares menos trabalhosos, mas, nem por isso, carecendo de menor dignidade e exigência.

Simultaneamente, os mais novos e, porventura, mais vocacionados para as novas realidades que se suscitam à intervenção judiciária atual, viam, assim, abertas as possibilidades de, ainda vigorosos, atingirem lugares que requerem uma constante atualização técnica – nem sempre necessariamente jurídica – em campos regulados mais recentemente pelo direito e, quando de topo, de maior exposição pública.

Viam, igualmente, compensada remuneratoriamente essa sua disponibilidade para, mais cedo, exercerem funções de maior exposição, intensidade e especialização.

Era precisamente essa a mobilidade e plasticidade que a «carreira plana» pretendia favorecer.

Assim se debelava o problema do bloqueamento das carreiras e vencimentos dos mais novos e se propiciava a especialização necessária à ocupação de alguns lugares de maior complexidade técnica em detrimento de uma escolha antes muito condicionada pela antiguidade e, pior, por opções de cariz mais «aparalhístico».

Com isso se fortalecia, também, a autonomia e a responsabilidade de cada um dos magistrados na programação da sua própria carreira.

Eis, pois, as ideias bases que presidiram – com mais ou menos acerto e amplitude – à reforma do Estatuto do Ministério Público português.

Claro está que a mudança de um sistema para outro implicava uma regulamentação exigente, perspicaz e também ela maleável, não devendo importar, no entanto, ruturas radicais e súbitas.

O Estatuto, de resto, consagra a possibilidade de o Conselho Superior do Ministério Público regulamentar, com autonomia e acuidade, a organização interna e a gestão dos quadros desta magistratura.

Atribuir à opção pela «carreira plana» a causa dos atuais problemas de gestão de quadros no MP não pode, pois, deixar de insinuar um juízo negativo quanto à filosofia desta nova e progressista reforma.

Tal atitude, em si mesma, nada tem de censurável, desde que assumidos, claramente, os verdadeiros pressupostos de tal crítica. 

A ideia que, desde o início, alguns de tais magistrados mais críticos sempre tiveram da «carreira plana» – se é que tinham alguma e, verdadeiramente, a desejavam – mais se adequava, de facto, à de uma peneplanície.

Defendiam, por isso, a manutenção dos graus hierárquicos existentes e, acima de tudo, a conservação do destaque simbólico da suposta – mas, afinal, estatutariamente só aparente – posição hierárquica que haviam alcançado.

Aí, aliás, radica uma contradição flagrante nas suas posições essenciais sobre o papel da hierarquia do MP nas decisões processuais.

De resto, uma reação psicológica semelhante aconteceu por parte de alguns juízes – porventura com mais razão – com a introdução, após o 25 de Abril, da separação de carreiras nas magistraturas e a consequente e repentina paridade de vencimentos entre juízes e MP.

Tal reação pode até ser compreensível, todavia, não deve ser com fundamento em tais sensibilidades «belenenses» que se reformam e modernizam os sistemas.

Não esqueçamos, no entanto, que foram precisamente alguns desses «velhos» Procuradores – porventura mais desgastados, mas não menos briosos do que os pares que os criticam – que decidiram, atualmente, empregar a experiência adquirida em funções menos expostas ou exigindo, porventura, menos disponibilidade temporal, mas, nem por isso, de menor dignidade e importância para os cidadãos que delas necessitam.

Quem sabe, todavia, se esta sua opção não promoverá, aí, mudanças importantes e fará progredir um pouco mais a qualidade da justiça exercida em tais tribunais e procuradorias?