O coronel Merda, um herói do seu tempo


O homem e a sua circunstância podem deixar pouco para a história. Mais vale garantir desde cedo um lugar no regaço de Clio, escrevendo a história na primeira pessoa.


O método é conhecido e por vezes tropeça na circunstância de dois candidatos a historiadores em causa própria escreverem versões contraditórias que se entre-cruzam. Em Portugal há um caso exemplar, acontecido em 1943, com a troca de telegrafia diplomática entre Armindo Monteiro, Embaixador em Londres, e Salazar, para o caso Ministro dos Negócios Estrangeiros, em acumulação com outras funções que não gostava de ver esquecidas. Salazar acusava Armindo Monteiro, anglófilo e crítico das tergiversações do Presidente do Conselho, de “escrever para a história” pecado que a seus olhos só poderia ser cometido por outros. Generoso na expiação dos pecados alheios, exonerou Armindo Monteiro da chefia da missão em Londres, pondo termo ao contraditório na telegrafia.

Como todas as revoluções, a francesa também tem heróis auto-proclamados. O sucesso destes momentos de voluntarismo oportunista resulta também das conveniências de circunstância. No caso que agora se narra o devir da história permitiu transformar um realista que se alistara na guarda de Luís XVI num herói republicano e, pouco depois, já sob Napoleão, num nobre do Império. Na noite de 27 para 28 de Julho de 1794, tendo a Convenção decidido mudar o cognome de Robespierre de “incorruptível” para “traidor” foi despachada um força de gendarmes para proceder à detenção do mais notável membro do Comité de Salvação Pública. O desenrolar da detenção tem várias versões. Na versão menos gloriosa Robespierre, bom conhecedor do sentido da história, terá tentado suicidar-se com um tiro de pistola que lhe terá partido o maxilar. Na versão auto-hagiográfica o gendarme Merda, feito in loco comandante de companhia, invectivou o agora tirano e juntando o acto às palavras deu-lhe um tiro para garantir o sucesso da detenção. A media via narrativa acredita que Merda, querendo nobilitar-se pela captura de Robespierre vivo, o empurrou e ao tentar tirar-lhe a pistola fez partir o tiro.

Merda enviou ao Ministro da Guerra um relato deste feito de armas, narrado na primeira pessoa: Précis historique des événemens qui se sont passés dans la soirée du neuf thermidor. Bom conhecedor da força da palavra não se esqueceu de incluir um diálogo dramático fazendo anteceder o tiro de um “Rende-te traidor!” a que Robespierre teria respondido com “Traidor és tu e vou mandar fuzilar-te!”. Merda vê reconhecida pela Convenção a heroicidade do feito e é rapidamente promovido a sub-tenente. Fará uma carreira ainda mais rápida durante o Império do qual é nomeado barão e chega a coronel, tendo prudentemente reduzido o patronímico a Méda. Não cumpriu o sonho de todos os coronéis de morrer general. Atingido por uma bala de canhão durante a batalha de Moscovo, morre a 8 de Setembro de 1812. Será nomeado general de brigada a título póstumo.

Merda ficou para a história como o epítome do arrivista sem escrúpulos, do videirinho bem sucedido. Na “Comédia Humana” há um outro coronel que é todo o contrário de Merda. Publicado pela primeira vez em 1832 o “Coronel Chabert” narra a vida de um coronel do Império, dado por morto na batalha de Eylau, cuja viúva herdou o seu património suficiente para se tornar condessa por via de um novo casamento. Regressado a Paris, Chabert procura, sem sucesso, recuperar o nome, a patente, a fortuna e a mulher. Findo o Império, a Regeneração precisava de pintar um retrato simpático dos coronéis desaparecidos. Balzac fê-lo com gosto.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990