Na prática, a campanha para as eleições de janeiro já começou.
Ainda não estão escolhidos todos os protagonistas, mas isso, na verdade, pouco importa.
Os analistas e porta-vozes de diferentes interesses afadigam-se, na mesma, na elaboração de cenários pós-eleitorais e na adivinhação das alianças possíveis e que julgam mais convenientes.
Só isso parece, de resto, interessar a muitos deles.
Só isso, praticamente, os media procuram saber e nos dão a conhecer.
Foi o que me fez recordar o título de um livro de Alexandre Pinheiro Torres: «Espingardas e Música Clássica».
É, na realidade, como se o país apenas estivesse preocupado com a composição da orquestra que lhe vai dar música nos próximos anos.
E, todavia, ninguém ainda falou do repertório que as possíveis orquestras – a constituir – irão tocar.
Isso, de facto, pouco interessa à maioria dos analistas e porta-vozes de algumas das forças políticas que concorrem às eleições.
Têm para si que o repertório musical a ser tocado está, apesar de pequenas variações, há muito definido.
O que pretendem é, na verdade, a repetição eterna e acrítica do mesmo programa que, quase sempre – e sem as pequenas, mas irreverentes, interrupções dos últimos anos – nos embalou até hoje.
Porém, todos nos apercebemos que, sem a discussão desse repertório, sem a definição da peça a tocar, parece pouco razoável escolher os intérpretes que hão-de compor a orquestra.
Nem todos os artistas conseguem reger ou tocar as mesmas músicas.
O que os cidadãos estão hoje interessados em saber é, portanto, a música – melhor dizendo, as medidas e obras – que os futuros eleitos irão executar.
Na verdade, mesmo que a contragosto, alguns temas sérios e alarmantes têm emergido publicamente das águas turvas e pouco esclarecedoras do assunto dominante: as preocupantes e preocupadas alianças pós-eleitorais.
Refiro-me à questão da pobreza que afeta uma parte significativa da população portuguesa e que ameaça progredir, mesmo entre as gerações mais jovens e mais bem preparadas.
É ela que, com esse ou outros nomes menos agressivos, irrompe nas colunas laterais de alguns jornais ou mesmo, para o desconforto de alguns, nas corajosas reportagens sobre como viver com o salário mínimo, recentemente publicadas.
A questão da pobreza está – disso já não parece haver dúvidas – relacionada com a questão salarial, com o nível das pensões, designadamente das mais baixas, com a efetividade e o funcionamento do Serviço Nacional de Saúde, com a possibilidade de a maioria dos jovens e das crianças poderem frequentar um ensino público de qualidade e creches gratuitas.
Muitos, sem o negarem, tentam, todavia, empurrar a discussão desse tema – a pobreza – para um futuro em que, por obra e graça de algum terreno Espírito Santo, a produtividade e a competitividade da nossa economia aumentem.
Esquecem, quase sempre, os atuais e sempre crescentes níveis de desigualdade de rendimentos do trabalho entre os que, a diversos níveis, gerem os circuitos financeiros e económicos, e os que, mais ou menos qualificados, trabalham nos mais variados setores, sejam eles, por exemplo, os científicos, médicos, educacionais, culturais, técnicos, fabris, agrícolas.
Tal desigualdade progressiva, na distribuição dos rendimentos do trabalho entre uns e outros, não parece afligir-se, porém, com o nível de produtividade atual da nossa economia.
E, mais, não parece afligir os que tanto se preocupam e argumentam com o seu imprescindível crescimento.
Isto, mesmo que tal desigualdade possa constituir, ela também, uma das causas que o impedem.
Discutir o problema da pobreza, as suas causas e as soluções concretas e mais imediatas para as ir resolvendo, desde já, deveria, assim, anteceder a teorização da questão das alianças pós-eleitorais.
Estas só têm interesse se os cidadãos puderem antecipar como pensam os participantes e executantes de tais orquestras resolver os seus problemas maiores.
Só discutindo e escolhendo as obras e as suas partituras – as políticas e programas para superar a pobreza – poderão os portugueses estar interessados nos enlaces dos músicos que hão-de tocar para eles os hinos que os devem mobilizar.
Isso, sim, é política.
Seria, portanto, mais interessante que os jornalistas, em vez de se deixarem enlear em enredos pré-estabelecidos e destinados a desviar a atenção da opinião pública das questões fundamentais, começassem a explorar as verdadeiras opiniões dos candidatos eleitorais sobre tais problemas e sobre as respostas concretas e atuais que para eles defendem.
Não parece, com efeito, razoável que se assista, sem um reparo crítico sequer, à expressão pública, por parte de alguns candidatos, da sua vontade de ver aumentados futuramente os salários, sem os confrontar, de imediato, com as posições a isso contrárias, que consentem ou, inclusive, têm assumido nos palcos políticos, económicos e sociais onde tal matéria é hoje discutida.
Se, em vez de se discutir as personalidades, os caprichos, as capacidades discursivas, as hostilidade e amizades dos candidatos, se debatessem, de facto, as ideias e programas que defendem para, no imediato, começarem a resolver os problemas dos portugueses, talvez estes se mobilizassem, de novo, para o ato eleitoral e diminuísse, assim, a abstenção.
Se assim não acontecer, a orquestra sinfónica da política, em que todos os portugueses se deveriam integrar, ficará reduzida a uma ainda mais pequena orquestra de câmara dedicada a tocar para os poucos e selecionados ouvintes do costume.