Que me perdoem os jovens do milénio e outros coevos, mas – mesmo descontando o preconceito e as vistas curtas próprias da média idade – por vezes tenho a sensação de que alguns olharam para a representação gráfica da pirâmide de Maslow, num relance, e julgaram que a coisa mais importante (quando não mesmo a única) é o que está no seu topo, ou seja, a realização pessoal. Ora, não é bem assim, e – goste-se ou não e reconheça-se mais virtudes ou mais defeitos na proposta do psicólogo americano Abraham Maslow de meados do século XX – a verdade é que aquela pirâmide (figura ou esquema que ilustra a chamada Teoria da Hierarquia das Necessidades Humanas ou das Motivações Humanas), não só faz depender cada camada, num sentido de baixo para cima, da camada anterior da pirâmide, como, se hierarquiza, fá-lo da base para o topo, e não ao contrário. Ou seja, nem sempre o que está no topo é o essencial, e nunca o topo se aguenta sem a base. Ora, começando de baixo, temos primeiro a Fisiologia, depois a Segurança, de seguida os Afetos e Relações, no quarto patamar a Estima e finalmente, no topo, a Realização Pessoal.
Maslow não quis dizer – e eu ainda menos – que a realização pessoal não é importantíssima, o que quis dizer foram duas coisas: primeira, que as camadas de baixo são ainda mais importantes do que essa e, segundo e talvez principalmente, que as de cima não se alcançam sem estarem satisfeitas as de baixo. Dito de outro modo, é preciso assegurar as necessidades fisiológicas e a segurança para se poder desfrutar e desenvolver os afetos e as relações, a estima nas suas várias vertentes e implicações depende do que está abaixo na pirâmide, e a realização pessoal, essa luxuosa cereja no topo (neste caso da figura piramidal), é coisa que precisa de que nas camadas da pirâmide em cujas costas se apoia esteja tudo medianamente tratado. E onde é que alguns jovens do milénio às vezes tresleem, se bem vejo? É na falta de noção de que, por um lado, não pode haver realização pessoal sem que o resto, sobretudo a metade de baixo da pirâmide, esteja assegurado, e, por outro lado, de que amiúde certas dimensões da realização pessoal, como a moralidade, a criatividade, a espontaneidade, a ausência de preconceito, e tantas outras vertentes tão encantadoras quanto necessárias (que o são, muito, não é isso que está em causa), podem ser incompatíveis, ou pelo menos parcial e/ou temporariamente incompatíveis, com a necessidade de tratar e de assegurar, antes disso, o resto.
E esse “resto” não conta quando assegurado pelos outros, que isso de buscar a nossa realização pessoal como alfa e ómega da vida é muito bonito quando outros tratam da nossa Fisiologia, da nossa Segurança e dos Afetos, e para nós sobra apenas a árdua tarefa de ser moral, criativo e espontâneo, depois de procurar estimar e ser estimável. Conta, sim, quando assegurado por nós, pois aquele cenário em que uns cuidam das miudezas e das vitualhas da vida e outros tateiam em busca da luz é próprio do mundo das crianças, e não dos adultos, a não ser na bolha de uma síndroma de Peter Pan. E é isso que às vezes – sem generalizar – pressinto. Isso e outra coisa, que é algumas “crianças grandes” também quererem, antes de saberem bem como se trata da Fisiologia e da Segurança e do mais, impor a sua visão e dar lições a quem trata. Primeiro é preciso conquistar a vida e tomar conta dela, para depois a tentarmos moldar. Ou, como diria o meu pai, numa frase que muito me indignava aos 16 anos mas que me parece muitíssimo avisada aos 50, depois de saberes e de poderes alimentar o estômago, decides sobre filosofias.
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