1.Luc Ferry, em 7 lições para ser feliz, ou os paradoxos da felicidade (Temas e Debates, 2017), afiança que, do séc.XVIII em diante, e até aos anos 60 do século XX, houve duas éticas laicas a prevalecerem: a) o republicanismo como secularização da parábola dos talentos cristã, assenta na ideia antiaristocrática de que não há mérito nos talentos com que se nasce – não há, aí, sentido moral -, mas, antes, no modo como estes são potenciados/plenificados e, portanto, a ideia de igualdade (em dignidade) entre todos, e a possibilidade de o homem ser livre, mesmo que através de trabalhos penosos e duros, a sobrelevar sobre a ideia de felicidade (o trabalho não degrada o homem em animal, mas permite-lhe a liberdade e o colocar-se ao serviço da comunidade); b) o utilitarismo como a maximização do bem-estar geral, com diminuição da dor e potenciação do prazer, e o humano sempre como alguém interessado na felicidade, que releva sobre tudo o mais (mesmo o suicídio seria uma forma de procurar a felicidade; o doar-se pelo outro, incluindo dar a vida, idem aspas). Finalmente, emergiria uma «ética da autenticidade», na qual o «direito à felicidade», o cada um a ser feliz à sua maneira, sem nenhuma regra – a sobrepor-se, digamos assim, em termos latos, a esse desiderato – a ser a regra, com a quebra de todas as autoridades tradicionais, incluindo no mundo do trabalho, e o hedonismo e individualismo a serem caucionados em todo o Ocidente.
2. Para Luc Ferry, é muito mais fácil de determinar o que nos faz infelizes do que o que nos garante a felicidade – e isto, porque considera que não existindo algo como uma "natureza humana", essencial e imutável, tal implica que o que nos pudesse garantir um bom estádio de realização própria está vedado ao nosso conhecimento. Daqui resultam, ainda, dois precipitados: a) todas as receitas sobre como garantir a felicidade – receitas nas quais estamos imersos e encharcados – são uma fraude intelectual (os livros de auto-ajuda e quejandos); b) a própria definição exacta de felicidade é de muito difícil, ou impossível, acesso. Momentos de alegria, de serenidade, de bem-estar pessoais, sim. Saber o que seria uma felicidade (contínua) muito mais difícil.
3.Para que se consiga ser feliz apesar da morte, a nossa, mas mais, ainda, porventura, a daqueles que amamos, é preciso, pois, como Denis Moreau, um filósofo cristão, demonstrou perfeitamente no seu belo livro Les Voies du Salut, que estejam reunidas quatro condições:
“Que a morte não seja o fim; que haja uma persistência da identidade pessoal depois da morte; que haja uma relativa heterogeneidade entre a forma de ser que conhecemos hoje e aquela após a morte; que seja permitido esperar que essa continuação post mortem ocorra em condições relativamente felizes, ou mesmo muito felizes.”
4. E porquê o entusiasmo com o conhecimento, com o aprender, com esse processo (aparentemente doloroso) de chegar a adquirir conhecimentos?
a) para Platão: porque regressamos – temos o sentimento de regressar – a casa. Adquirimos o conhecimento (verdade) no "céu do mundo inteligível"; esquecemos com o nascimento; aprender é, pois, recordar, anamnese, voltar a saber o que sabíamos; plenitude (em casa).
b) para Kant: quem tudo conhece é Deus, um sábio ideal; no processo de aquisição de conhecimentos, sentimo-nos, pois, a participar dessa experiência de tipo divino, junção da matéria e do espírito, do sensível e do inteligível; entendimento divino. Onde estão as verdades? No "entendimento divino". Ora, “quando faço uma descoberta, quando aprendo algo importante, quando opero um progresso real nos meus conhecimentos, mesmo se for ateu, não posso deixar de ser tomado pelo sentimento de que me aproximo do divino, de que participo de alguma maneira do saber ideal, que seria o de um Deus ou de um sábio perfeito (…) O processo de aquisição dos conhecimentos é, no sentido etimológico da palavra, «entusiasmante»: ele faz-nos entrar na esfera do divino (en theos)".
5. Então, se é assim, se há entusiasmo em adquirir conhecimentos, porque é que temos a sensação de que hoje novas gerações não estão entusiasmadas em os prosseguir, em chegar até eles, em participar nesse processo, com a sua penosidade, com as horas de estudo, mas a promessa, simultânea, da alegria da descoberta? Segundo Luc Ferry, um conjunto de imposturas pedagógicas, nomeadamente a ideia do conhecimento auto-construído pelas crianças como se fossem uma tábula rasa a criarem (-se) ex nihilo, a deslocação da noção da educação como continuidade na transmissão de uma herança de conhecimentos e competências (p.200), a perda da gramática, da civilidade, das boas maneiras (como se estas fossem uma imposição de classe), a inovação capitalista associada a uma "desconstrução muito problemática dos valores e das autoridades tradicionais" (p.225) são causas apontadas para muitos dos casos em que se não nota esse querer conhecer, sendo que o ex-ministro da educação francês não defende um regresso ao passado, mas deixa claro que medidas sublinhava da sua passagem como membro do Executivo, entre as quais a luta contra a incivilidade ou o reforço da autoridade do professor.