Lei e autoridade, entre o evitável, o excesso e a perigosa erosão


O risco de isso acontecer, reside, precisamente, na consequente e sucessiva desvalorização do Direito, enquanto instrumento necessário ao normal funcionamento de uma sociedade complexa como a nossa.


Relendo «Lei e Autoridade», um clássico da filosofia política, da autoria de Kropotkin, deparei-me, não apenas com o julgamento que o autor faz da função da lei e do Direito, como, mais prosaicamente, com a crítica que faz do excesso de legislação, para regular coisas antes dependentes do senso comum, fundado nos costumes e numa certa consensualidade comunitária.

Revisitar alguns pensadores mais antigos – por mais anacrónicos que, por vezes, nos pareçam – leva-nos a avaliar melhor o nosso presente e reequacionar o futuro que estamos a construir.

Os media portugueses noticiaram, recentemente, a decisão do Supremo Tribunal Administrativo relativa a um caso de necessidade de repetição da frequência de um ano escolar por parte de alunos que não frequentaram e não obtiveram aproveitamento numa cadeira curricular.

Não interessa, aqui, neste espaço e momento, a questão de fundo e, menos ainda, saber quem tem, ou não, razão.

O caso que citei serve apenas para que todos possamos tomar consciência do uso cada vez mais frequente e exaustivo do Direito, da lei e dos tribunais para resolver questões e conflitos que, antes, se poderiam resolver num plano do bom senso entre pais e as autoridades escolares.

A vida, hoje, encontra-se, na realidade híper regulada – e, por essa via, também híper judicializada – em todos os seus domínios.

Para além da legislação de cada país, haverá, presentemente, que tomar em conta muita legislação internacional e europeia, que, em muitos casos, é de aplicação direta e imediata no plano nacional, como acontece com alguma da proveniente da UE.

Os cidadãos – a sociedade – veem, pois, a sua vida regulada até ao mais ínfimo pormenor por tratados internacionais, diretivas europeias, leis, decretos-lei, regulamentos, portarias e um sem número de outros instrumentos normativos de valor variável.

Saber o que está, verdadeiramente, em vigor é praticamente impossível, mesmo com o apoio das mais sofisticadas tecnologias e profissionais programas informáticos.

Meios de que os cidadãos, e, em geral, muitas pessoas coletivas, económicas e sociais mais modestas, não dispõem.

Por tal razão, os cidadãos, por mais rigorosos e cumpridores que sejam, e desejem ser, correm sempre o risco de estar em falta e de ter de pagar por ela.

Os tribunais, por maior número de magistrados que tenham, ou aspirem a ter, e por mais e mais modernas tecnologias digitais que lhes sejam atribuídas, serão, entretanto, assim, sempre impotentes para responder às crescentes solicitações dos cidadãos e dos serviços públicos, que anotam as suas faltas e as querem ver supridas e punidas.

Pensar que, não há muitas dezenas de anos, o número de diplomas legais era incrivelmente menor e que as alterações a eles feitas eram raras e muito espaçadas no tempo, dá-nos a ideia clara de como a vida estava organizada e de como hoje vivemos numa sociedade ultra controlada e dirigida pelo Direito e pela lei.

Esta constatação permite-nos, também, outro tipo de reflexões.

Por um lado, e mais prosaicamente, leva-nos a meditar sobre as possibilidades reais de o nosso sistema judicial – por mais expandido que venha a ser – poder responder, em tempo e com efetividade, às exigências que o crescimento dos campos regulados pelo Direito e a lei implicam.

Por outro, mais criticamente, deve levar-nos a refletir sobre o recrudescimento das tendências mais ou menos anarco-liberais de muitos cidadãos, que se sentem esmagados por tanta regulamentação, inclusive nos aspetos mais privados da vida, antes regidos simplesmente pelos bons costumes locais e, por isso, de todos conhecidos.

Este último aspeto está, pois, relacionado com a propensão para o aumento de atitudes espontâneas – outras, depois, manipuladas – de desobediência civil a que se assiste já em algumas sociedades nórdicas, em países do leste da Europa e nos EUA: a questão da vacinação contra o COVID é disso apenas a mais recente e relevante.

Longe de libertar os homens e a sociedade, conferindo-lhes confiança e paz nas suas vidas, o excesso de legislação e o inevitável desconhecimento de muita dela, por parte dos cidadãos, provocam – só podem provocar – medo.

Isso só pode favorecer – e favorece mesmo – a manipulação e a subordinação acrítica dos cidadãos.    

Compreender em que medida estamos, ou não, a abusar da regulamentação da vida dos cidadãos e a fomentar, assim, o uso desmesurado e evitável da autoridade e do sistema judicial, parece fundamental.

O risco de isso acontecer, reside, precisamente, na consequente e sucessiva desvalorização do Direito, enquanto instrumento necessário ao normal funcionamento de uma sociedade complexa como a nossa.

Reside, ainda, na erosão da legitimidade das autoridades, mormente das judiciais, que a tudo têm de ocorrer, mesmo sem dominar cabalmente alguns aspetos técnicos que a lei julga poder regular e, bem assim, as inopinadas consequências sociais da sua aplicação.

O risco é, na verdade, o da extenuação da autoridade do Estado e, com isso, o do recrudescimento de poderes paralelos, incontrolados e nada, ou pouco, preocupados com a realização do bem comum.

Lei e autoridade, entre o evitável, o excesso e a perigosa erosão


O risco de isso acontecer, reside, precisamente, na consequente e sucessiva desvalorização do Direito, enquanto instrumento necessário ao normal funcionamento de uma sociedade complexa como a nossa.


Relendo «Lei e Autoridade», um clássico da filosofia política, da autoria de Kropotkin, deparei-me, não apenas com o julgamento que o autor faz da função da lei e do Direito, como, mais prosaicamente, com a crítica que faz do excesso de legislação, para regular coisas antes dependentes do senso comum, fundado nos costumes e numa certa consensualidade comunitária.

Revisitar alguns pensadores mais antigos – por mais anacrónicos que, por vezes, nos pareçam – leva-nos a avaliar melhor o nosso presente e reequacionar o futuro que estamos a construir.

Os media portugueses noticiaram, recentemente, a decisão do Supremo Tribunal Administrativo relativa a um caso de necessidade de repetição da frequência de um ano escolar por parte de alunos que não frequentaram e não obtiveram aproveitamento numa cadeira curricular.

Não interessa, aqui, neste espaço e momento, a questão de fundo e, menos ainda, saber quem tem, ou não, razão.

O caso que citei serve apenas para que todos possamos tomar consciência do uso cada vez mais frequente e exaustivo do Direito, da lei e dos tribunais para resolver questões e conflitos que, antes, se poderiam resolver num plano do bom senso entre pais e as autoridades escolares.

A vida, hoje, encontra-se, na realidade híper regulada – e, por essa via, também híper judicializada – em todos os seus domínios.

Para além da legislação de cada país, haverá, presentemente, que tomar em conta muita legislação internacional e europeia, que, em muitos casos, é de aplicação direta e imediata no plano nacional, como acontece com alguma da proveniente da UE.

Os cidadãos – a sociedade – veem, pois, a sua vida regulada até ao mais ínfimo pormenor por tratados internacionais, diretivas europeias, leis, decretos-lei, regulamentos, portarias e um sem número de outros instrumentos normativos de valor variável.

Saber o que está, verdadeiramente, em vigor é praticamente impossível, mesmo com o apoio das mais sofisticadas tecnologias e profissionais programas informáticos.

Meios de que os cidadãos, e, em geral, muitas pessoas coletivas, económicas e sociais mais modestas, não dispõem.

Por tal razão, os cidadãos, por mais rigorosos e cumpridores que sejam, e desejem ser, correm sempre o risco de estar em falta e de ter de pagar por ela.

Os tribunais, por maior número de magistrados que tenham, ou aspirem a ter, e por mais e mais modernas tecnologias digitais que lhes sejam atribuídas, serão, entretanto, assim, sempre impotentes para responder às crescentes solicitações dos cidadãos e dos serviços públicos, que anotam as suas faltas e as querem ver supridas e punidas.

Pensar que, não há muitas dezenas de anos, o número de diplomas legais era incrivelmente menor e que as alterações a eles feitas eram raras e muito espaçadas no tempo, dá-nos a ideia clara de como a vida estava organizada e de como hoje vivemos numa sociedade ultra controlada e dirigida pelo Direito e pela lei.

Esta constatação permite-nos, também, outro tipo de reflexões.

Por um lado, e mais prosaicamente, leva-nos a meditar sobre as possibilidades reais de o nosso sistema judicial – por mais expandido que venha a ser – poder responder, em tempo e com efetividade, às exigências que o crescimento dos campos regulados pelo Direito e a lei implicam.

Por outro, mais criticamente, deve levar-nos a refletir sobre o recrudescimento das tendências mais ou menos anarco-liberais de muitos cidadãos, que se sentem esmagados por tanta regulamentação, inclusive nos aspetos mais privados da vida, antes regidos simplesmente pelos bons costumes locais e, por isso, de todos conhecidos.

Este último aspeto está, pois, relacionado com a propensão para o aumento de atitudes espontâneas – outras, depois, manipuladas – de desobediência civil a que se assiste já em algumas sociedades nórdicas, em países do leste da Europa e nos EUA: a questão da vacinação contra o COVID é disso apenas a mais recente e relevante.

Longe de libertar os homens e a sociedade, conferindo-lhes confiança e paz nas suas vidas, o excesso de legislação e o inevitável desconhecimento de muita dela, por parte dos cidadãos, provocam – só podem provocar – medo.

Isso só pode favorecer – e favorece mesmo – a manipulação e a subordinação acrítica dos cidadãos.    

Compreender em que medida estamos, ou não, a abusar da regulamentação da vida dos cidadãos e a fomentar, assim, o uso desmesurado e evitável da autoridade e do sistema judicial, parece fundamental.

O risco de isso acontecer, reside, precisamente, na consequente e sucessiva desvalorização do Direito, enquanto instrumento necessário ao normal funcionamento de uma sociedade complexa como a nossa.

Reside, ainda, na erosão da legitimidade das autoridades, mormente das judiciais, que a tudo têm de ocorrer, mesmo sem dominar cabalmente alguns aspetos técnicos que a lei julga poder regular e, bem assim, as inopinadas consequências sociais da sua aplicação.

O risco é, na verdade, o da extenuação da autoridade do Estado e, com isso, o do recrudescimento de poderes paralelos, incontrolados e nada, ou pouco, preocupados com a realização do bem comum.