Independentemente da discussão sobre as obstinações, as apostas imprudentes e as peripécias palacianas que estiveram na origem da atual crise, importante é que, estando ela declarada, possa servir, ainda assim, para que as forças políticas tomem posição clara ante os reais e mais ingentes problemas dos portugueses.
Os problemas do país não se discutem e resolvem, apenas ou sobretudo, a partir das puras posições ideológicas de cada partido, por mais justas que cada um as considere.
Nenhum deles está, de resto, em condições de as impor cabalmente.
Todos terão as suas, mas os problemas do país, esses, existem por si, hoje e aqui.
Os problemas dos portugueses são uma evidência objetiva e só se ideologicamente obnubilados e negados – à semelhança do que acontece com os negacionistas das vacinas – podem permanecer ignorados, antes e depois das eleições.
É por isso que, neste processo eleitoral, se exige, mais do que nunca, clareza na sua identificação e mais rigor nas propostas que cada um preconiza para os resolver.
Se isso acontecer, se esta crise tiver servido, sem subterfúgios, para identificar o que é verdadeiramente relevante e que propostas para resolver as questões são, de facto, defendidas por cada um dos partidos, então a crise e as eleições poderão, até, comportar aspetos positivos, que, à partida, ainda nos custa admitir existirem.
Na situação presente, fruto do que a pandemia revelou, tornou-se mais visível, para a maioria dos portugueses, a dimensão da pobreza real que afeta um número desmesurado de cidadãos.
Tal questão é tão mais relevante quanto uma significativa parte dos pobres têm trabalho e, mesmo assim, apesar dos salários que regularmente auferem, não conseguem prover às suas necessidades básicas, nem às dos seus familiares: não conseguem ter acesso a uma vida decente para si e para os seus filhos.
A questão da pobreza radica, na verdade, na exiguidade da maioria dos salários e pensões pagos hoje, em Portugal, a quem trabalha ou trabalhou.
Radica, no fundo, na desvalorização política da função laboral.
Assim é, tanto no que diz respeito aos trabalhadores não qualificados, que, quando podem, preferem emigrar de novo para a Europa, como no que respeita, agora, aos mais qualificados, que a isso se veem obrigados também.
A insuficiência salarial gera, porém, outras insuficiências que contribuem, igualmente, para agravar, ainda mais, a situação geral da pobreza de largos setores da população.
Gera, por exemplo, a deserção dos quadros médicos e de enfermagem do SNS, agravando, por si só, a situação da saúde dos portugueses e, por consequência, a pobreza.
Gera a dificuldade no recrutamento de novos professores para acudir à escola pública em certas matérias – como, por exemplo, a matemática e a informática -, agravando as desigualdades no acesso ao conhecimento e, sempre, a pobreza.
Gera o preenchimento dos postos mais elevados da administração pública por profissionais menos qualificados e sem experiência para as funções que exercem.
Daí, a dificuldade no controlo técnico e financeiro dos processos contratuais desenvolvidos pelo Estado com os privados, dilatando a corrupção e, portanto, também, a pobreza.
Gera um tecido empresarial pouco apoiado por técnicos e gestores qualificados, reduzindo a competitividade e a produtividade das empresas: o que só pode gerar mais falências e, por isso, mais desemprego e pobreza.
Gera problemas no acesso a uma habitação condigna, originando problemas de saúde – e, por vezes, familiares – e, consequentemente, mais e mais pobreza.
É, por isso, importante situar tal questão, não apenas no plano económico onde sempre o querem acantonar, mas, de preferência, no mais cru plano civilizacional, pois este torna a pobreza, definitivamente, mais eloquente e incontornável.
Não é, com efeito, compatível com os níveis de progresso ao nosso alcance que pessoas que trabalham, ou trabalharam, não possam ter uma vida decente.
Neste plano, os níveis de pobreza ainda existentes em Portugal entre os que trabalham são, pura e simplesmente, um escândalo.
O tempo da escravatura acabou.
Fruto de muitas lutas sindicais e sacrifícios pessoais dos seus militantes, o tempo da superexploração do trabalho fabril foi – acreditava-se – também ultrapassado.
Hoje, em contracorrente, assiste-se, porém, a um retrocesso paulatino e generalizado na valorização civilizacional da função laboral.
Esta situação envolve já o estatuto salarial dos trabalhadores dos serviços e, inclusive, abrange um crescente número de quadros profissionais licenciados, mestrados e doutorados.
Nada, na verdade, justifica, racionalmente, que assim seja.
A verdade é que a pobreza que resulta hoje da desconsideração do trabalho e da condição dos trabalhadores gerará sempre e apenas mais pobreza.
O que se exige são, pois, repostas políticas capazes de fazer frente à rapacidade sem pudor que, mascarada de razões económicas, origina, hoje, a pobreza e a miséria.
São, sobretudo, as respostas – e a vontade – políticas e não outras, que resolvem as questões civilizacionais.
E estas só existem à margem dos interesses económicos que mantêm e, manifestamente, querem perpetuar a situação presente.
Importa, por isso, olhos nos olhos, elucidar, antes das eleições, que salário mínimo se preconiza agora e para os próximos tempos, que estratégia se propõe para elevar o salário médio, que valor se sugere, de imediato, para as pensões mais baixas.
Só respondendo, hoje, com clareza e com propostas políticas verdadeiras, às necessidades dos portugueses, estes se mobilizarão para o processo eleitoral.
Só assim, também, as suas opções eleitorais serão esclarecidas e fundamentadas.