Face à transição verde, o medo do nuclear volta à ribalta

Face à transição verde, o medo do nuclear volta à ribalta


Cada vez mais cientistas alertam que é preciso o nuclear face à inconstância das renováveis, e cada vez mais países repensam a sua posição. Com risco de criar outra crise, sem grandes opções para nos livrarmos de resíduos radioativos.    


Quando seis barris de aço, recheados de resíduos nucleares alemães e franceses,  altamente radioativos, foram transportados do reator de Neckerwestheim, em Baden-Württemberg, para ser deixados na pequena cidade de Gorleben, no norte do país, no distante ano de 1997, a Alemanha praticamente entrou em pé de guerra. Ativistas antinucleares, furiosos, cortaram os carris com serras, queimaram semáforos, bloquearam a rota com barris recheados de excrementos, descrevia a imprensa da época. Um pouco por todo o lado, viam-se graffitis onde se lia “Gorleben soll leben”, qualquer coisa como “Gorleben deve viver”, enquanto mais de 30 mil polícias vindos de toda a Alemanha eram colocados no terreno, na maior operação policial alguma vez realizada no país até então. Deparam-se com centenas de crianças a ocupar as escolas nos arredores de Gorleben, que os agentes planeavam usar como quartel improvisado.

Lá fora, estava uma coligação de ativistas, hippies, pastores protestantes e moradores, furiosos que a sua cidade se tenha tornado o local de armazenamento de resíduos que continuarão a ser perigosos por dezenas, senão centenas de milhares de anos. No meio de toda essa multidão revoltosa estava uma jovem, Annalena Baerbock, desde cedo levada pelos pais aos protestos contra o nuclear em Gorleben. “Sim, havia canhões de água lá”, recordou a atual líder dos Verdes, citada pela New Statesman. “Mas depois da manifestação íamos para casa e comíamos bolo”, acrescentou Baerbock, cujo partido está com um pé dentro do próximo Executivo alemão, que deverá precisar dos votos dos verdes.

Isso assegura que a histórica oposição ao nuclear da Alemanha não deverá ceder nos próximos tempos, mesmo face à pressão da vizinha França, um dos países mais entusiásticos quanto a esta fonte de energia. Isto com cada vez mais cientistas a alertar que, num futuro próximo, o nuclear, que não causas emissões significativas de CO2, será fundamental para conseguir chegar à neutralidade carbónica, causando uma discussão bem aquecida nos bastidores da COP26. 

Será que a energia nuclear, com preços cada vez mais elevados comparativamente às renováveis, muito devido aos crescentes requisitos em termos de segurança, é sequer uma opção economicamente viável? França acredita que sim, anunciando o investimento em reatores cada vez mais pequenos, prefabricados, algo descrito como uma espécie de “Ikea” do nuclear. Enquanto a China, sedenta de qualquer tipo de energia, também aposta forte no nuclear, planeando construir pelo menos 150 reatores nos próximos 15 anos, esperando-se que a produção em série baixe os preços. 

Contudo, se esse tipo de considerações serão cruciais para a tomada de decisão dos líderes mundiais, não apagam o medo instintivo que mobilizava os ativistas em Gorleben, ainda com a memória bem fresca de quando nuvens radioativas pairavam sobre a Alemanha, vindas de Chernobyl, na então Ucrânia soviética, uma década antes – nós podemos somar a isso as imagens do tsunami que varreu Fukushima, em 2011, de uma cidade próspera que virou fantasma, as histórias dos heróis que ficaram para trás, a tentar evitar o pior, combatendo um inimigo invisível, bastante seguros de que não iriam sobreviver. Ou o horror de saber que, para trazes energia nuclear às nossas casas, é necessário produzir toneladas de detritos radioativos, deixados como uma espécie de presente envenenado para os nossos descendentes.

Nas profundezas da Terra Por mais incrível que pareça, após décadas marcadas pela Guerra Fria, pela corrida ao nuclear, tanto para armamento e energia, ainda nem sequer existem grandes soluções para eliminar definitivamente resíduos nucleares de alto calibre – o tipo mais perigoso, responsável por uns 95% da radiação.
Pelo mundo fora, estes resíduos vão sendo armazenados em locais provisórios, precisando de cerca de um século para arrefecer, ficando muitas vezes em instalações envelhecidas, com condições questionáveis, como se pretendia fazerem Gorleben, arriscando derrames, com tragédias ambientais que podem demorar décadas e milhares de milhões a serem limpas. E somente a Finlândia já começou a construir um repositório permanente, em março deste ano, apelidando-o de ONKALO, qualquer coisa como “cave” ou “esconderijo”, em finlandês.  

É um nome bem adequado para esta fossa que se quer cavar nas profundezas da terra, no meio de uma floresta perene em Olkiluoto, uma ilha quase desabitada na costa oeste da Finlândia, rodeada por rocha inerte, numa zona com particularmente pouca atividade geológica. A partir de 2024, o combustível nuclear gasto começará a ser depositado, dentro de contentores de 25 toneladas, feitos de ferro coberto por cobre puro, para depois se selar as câmaras para a eternidade, usando um material semelhante a areia de gato, de maneira a absorver a água que se possa infiltrar na gruta. 
A ideia do projeto é que os nossos sucessores nem sequer façam ideia que têm toneladas de resíduos altamente radioativos debaixo dos seus pés, explicou Timo Äikäs, o geólogo finlandês que iniciou o projeto, nos anos 1980, ao Atlantic. “Se o marcássemos, provavelmente seria um convite às pessoas para ir ver o que estava lá”, salientou. Foi assim que o Onkalo deu a volta a um dos mais curiosos debates dos tempos da Guerra Fria, à volta de chamada semiótica nuclear. 

Na prática, tratava-se da consciência de que, há uns meros 4,5 mil anos, os nossos antepassados andavam a construir pirâmides, só um milénio antes tinham inventado a escrita. Quem imagina como será a humanidade daqui a dezenas de milhares de anos, qual é a probabilidade de que os nossos descendentes compreendam os sinais de perigo que deixarmos nos depósitos nucleares? “Precisamos de um símbolo que seja compreensível não só para os mais educados e com literacia científica da população, mas a qualquer um que se possa cruzar com estes depositórios”, escreveu à época Carl Sagan, um dos cientistas envolvidos na demanda, citado pela Vice

Após apelos do departamento de Energia norte-americano, em 1981, académicos avançaram com soluções, cada uma mais brilhante ou louca que a anterior. Alguns propuseram a criação de uma espécie de religião nuclear, passando informação sobre os depósitos radioativos sob forma de mitos e rituais, considerando-os a mais resiliente cadeia de transmissão na história humana. Outros propuseram deixar monumentos com formas pontiagudas, vistas com subconscientemente ameaçadoras, pontilhados com imagens como o O Grito, do pintor Edvard Munch. Chegou a falar-se de alterar geneticamente gatos, para que ficassem fluorescente em contacto com radioatividade, alertando os seus companheiros humanos – face a todas estas propostas, a simplicidade da solução finlandesa é notável. 

Cenário em mudança Os resíduos nucleares não são uma ameaça tão distante como poderíamos imaginar. Portugal pode nunca ter apostado neste fonte de energia (ver página 12), mas aqui ao lado apostou-se. E as relações entre Lisboa e Madrid já azedaram em várias ocasiões devido à decisão dos espanhóis de enterrar os seus resíduos radioativos perto do reator de Almaraz, a uns 110 km da fronteira.

Os defensores da energia nuclear poderiam dizer que o problema de centrais nucleares como Almaraz é serem velhas, com o prazo de validade sucessivamente alargado, para rentabilizar o enorme investimento necessário. Os reatores de nova geração não só são mais seguros, como são mais eficientes a gastar os seu combustível, deixando menos resíduos. E atualmente aposta-se em soluções mais avançadas para os tratar, como tornar o lixo nuclear em vidro, para o estabilizar – ainda este ano a China abriu a sua primeira instalação de vitrificação, na província de Sichuan.

Se estes avanços servirão para quebrar as reticências de países opositores do nuclear, só o tempo dirá. No Japão, o Governo tenta dar a volta à oposição ao nuclear, impulsionada pela memória de Fukushima, com esforços para reativar os reatores desligados após a tragédia – só um terço dos quais foi ligado de novo. Mas já conseguiu uma vitória no que toca aos seus resíduos nucleares, que planeava armazenar na cidade costeira de Hokkaido, graças à reeleição Haruo Kataoka como presidente da Câmara, este ano, defrontado por opositores do projeto. 

No que toca à Alemanha, o crescimento dos Verdes mostra que o movimento antinuclear está aqui para ficar. Mas a recente subida dos preços da eletricidade em mais de 140% desde janeiro, devido à crise energética, tem feito muitos pensar duas vezes, com 31% dos alemães a favor do nuclear, segundo sondagens da Verivox – outros receiam a ameaça da dependência do gás natural russo.

Com cada vez mais centrais nucleares alemãs a serem desativadas, sem que as renováveis consigam acompanhar o ritmo, a Alemanha arrisca “carbonizar seu sistema energético ao fazer a eliminação gradual da energia nuclear”, apelava uma recente carta aberta, assinada por académicos como Simon Friederich, professor de filosofia da ciência na universidade de Groningen, na Holanda. Friederich cresceu nos anos 1980, numa família de apoiantes dos Verdes, presença constante nos protestos antinucleares, mas hoje vê esta energia com outros olhos. Não que tenha grande esperança que o seu país vá por esta rota. “Não sou totalmente ingénuo. Não há nenhum partido nas negociações da coligação que tenha incluído isso como parte de suas prioridades eleitorais”, notou, à DW.