Sombra, filme sobre o desaparecimento de crianças. “Uma dor, uma esperança e um amor que não acabam”

Sombra, filme sobre o desaparecimento de crianças. “Uma dor, uma esperança e um amor que não acabam”


Baseado fortemente no desaparecimento de Rui Pedro, “Sombra” garantiu ao realizador Bruno Gascon e à atriz Ana Moreira duas nomeações no Raindance Film Festival. Aquilo que mais desejam “é que o filme e esta história possam viajar o mais possível”.


Quando Rui Pedro Teixeira Mendonça desapareceu a 4 de março de 1998, aos 11 anos, em Lousada, no distrito do Porto, Ana Moreira tinha mais sete do que este. “O caso do desaparecimento do Rui Pedro é o mais mediático e que de alguma maneira habita ainda a nossa memória coletiva. Lembro-me ainda das primeiras imagens da Filomena Teixeira na televisão, da maneira como a imprensa e os media a perseguiam, mas sobretudo como ela nunca desistiu de procurar o seu filho ao longo de todos estes anos até aos dias de hoje”. Volvidos 23 anos, a atriz interpretou Isabel, mãe de Pedro, em Sombra, longa-metragem fortemente baseada neste caso.

“A oportunidade surgiu a partir de um convite feito pelo realizador Bruno Gascon e a produtora Joana Domingues. Num primeiro encontro ambos me apresentaram o projeto e a possibilidade de interpretar a personagem principal, a Isabel, mãe de uma criança desaparecida”, começa por explicar, em declarações ao i. “Compreendi imediatamente que iria ser um grande desafio a nível de trabalho, que era um projeto que o realizador e a produtora estavam muito entusiasmados em concretizar e que reuniam todas as condições para o fazer”.

A atriz que se estreou na curta-metragem Primavera, de João Tuna (1997). tendo participado no ano seguinte em Os Mutantes, de Teresa Villaverde (1998), percebeu também “que ia ser uma grande viagem”, na medida em que “o guião está escrito e dividido em vários momentos distintos numa narrativa que acompanha esta personagem durante cerca de quinze anos”: a mesma tem início no momento do desaparecimento do menino e, “a partir daí, assistimos a uma família em queda que tenta encontrar uma maneira de se adaptar, de permanecer junta e descobrir como viver todos os dias com a ausência da criança desaparecida”. 

Ao ler o guião, Ana compreendeu que contar a história desta personagem, uma mãe em busca do filho desaparecido, “ia ser uma experiência sem paralelo, a descoberta de um conjunto de emoções que não havia ainda explorado enquanto intérprete”. E, de facto, não lhe falta experiência, na medida em que no seu já longo caminho enquanto atriz, recebeu os Prémios de Melhor Atriz nos Festivais Internacionais de Cinema de Bastia e Taormina e, em 1999, foi nomeada pelo European Film Promotion para a Shooting Stars.

“Todos os papéis que tenho interpretado são desafiantes, cada um à sua maneira, com as suas singularidades e especificidades. Ao longo de 24 anos de carreira como intérprete tenho feito algumas protagonistas marcantes e muito distintas. O que distingue este papel dos outros é o facto de se basear em histórias verídicas e ter como referência pessoas reais, mulheres que passaram pela experiência do desaparecimento de um filho e como isso as afetou, marcando para sempre as suas vidas”, continua, falando com o i volvidos dois anos da declaração da morte presumida de Rui Pedro, a criança que representa o filho que procura no grande ecrã. Oito anos antes, já Ricardo Sá Fernandes, advogado dos pais do rapaz, iniciara um processo contra o Estado português por “falhas gravíssimas” na investigação. 

O paradeiro da criança continua desconhecido e o único condenado do caso, Afonso Dias, continuou a reclamar inocência. Tanto que, a 29 de março de 2017, saiu em liberdade, do estabelecimento prisional de Guimarães, tendo cumprido apenas dois dos três anos de prisão aos quais tinha sido condenado. 

Quando Rui Pedro desapareceu, Afonso, camionista de profissão, tinha 22 anos e, 15 anos depois, aquele que terá sido o último a ver o filho de Filomena Teixeira e Manuel Mendonça foi detido pelos inspetores da Judiciária sob a suspeita do rapto do jovem, posteriormente, acusado, julgado e condenado pelo crime de rapto pelo Supremo Tribunal de Justiça.

A sentença foi decidida a 4 de março de 2013 e os desembargadores acreditavam que Afonso Dias tinha levado a criança até Alcina Dias, prostituta, cujo depoimento terá sido desvalorizado em primeira instância, em Lousada, por supostamente não coincidir com aquilo que tinha sido investigado em 1998. A condenação aconteceu depois de numa primeira instância Afonso Dias ter sido absolvido por não ter sido provado o crime e, revoltada e com a necessidade de que fosse feita justiça, a família de Rui Pedro recorreu para a Relação.

“Não foi uma condenação justa. O que o senhor Afonso Dias referiu desde sempre corresponde à verdade e é que, de facto, ele não tem nada a ver com o desaparecimento do Rui Pedro”, afirmou o advogado Paulo Gomes. Por este caso continuar sem resolução tantos anos depois e ser repleto de avanços e recuos, Ana Moreira revela que “a preparação para este papel teve várias fases”: na primeira, encontrou-se com o realizador Bruno Gascon e este, ainda antes de lhe dar o argumento, falou-lhe do filme que queria fazer e “dos motivos pelos quais sentia que era importante e urgente partilhar esta história. Aqui tivemos a oportunidade não só de nos conhecermos melhor, mas também foi uma forma de o realizador me preparar, num segundo momento, para a leitura do guião onde viria a descobrir um enredo complexo”. Depois da leitura do guião, teve “a oportunidade de conhecer histórias reais e falar com algumas mães de crianças desaparecidas, trabalho esse que foi indispensável para a construção da personagem”. 

Na ótica da atriz que, no cinema, se destacou em Tarde Demais (2000) de José Nascimento, em Rasganço (2002) de Raquel Freire e em O Fascínio (2003) de José Fonseca e Costa, “ouvir os relatos reais de mulheres que sofreram na primeira pessoa o desaparecimento de um filho e como isso marcou para sempre a vida delas, foi muito importante” para que pudesse descobrir a personagem que encarnaria enquanto ser humano, mulher e mãe. “Depois seguiram-se os ensaios com todo o elenco onde, juntamente com o realizador, fizemos o levantamento de cada cena, trocámos várias ideias e impressões sobre o filme”. 

A mãe de Rui Pedro sempre frisou que a polícia não investigou membros da família, vizinhos e o carro de Afonso Dias, no qual testemunhas disseram que viram o filho entrar. No filme, Ana diz mesmo, em relação a Paulo (que representa Afonso), que “a polícia não faz nada”. O sentimento de injustiça e a procura incessante são os dois aspetos que mais parecem identificar Isabel, cruzando-se o seu percurso com o de Filomena numa conexão profunda entre a realidade e a ficção. 

“O que se compreende é que na altura as autoridades não tinham as condições ou até mesmo a consciência ou a sensibilidade necessária para lidar com um caso como este. Creio que também não estavam preparados para uma pessoa como a Filomena Teixeira, uma mulher que os questionava sobre as suas competências e sobre o que estava a ser feito para descobrirem o seu filho”, analisa Ana, acrescentando que “essa insatisfação ou frustração perante os métodos e a falta de resposta das autoridades foi o que a levou por diversas vezes a conduzir uma investigação por conta própria”. 

Por isto, “nesse sentido, não houve o apoio devido ao caso do Rui Pedro nem à sua família, o sentimento de injustiça é grande e atravessa todo o filme”, mas realça que “hoje em dia já existe uma maior sensibilização e condições por parte da polícia para agir com eficácia perante um caso de uma criança desaparecida”. Contudo, espera que o filme dê ainda mais visibilidade a tragédias como esta “não apenas como um alerta mas como uma forma de nos informar enquanto sociedade que esta realidade existe e que estas mães e crianças precisam de apoio, acompanhamento e proteção”.

Ao reunir-se com Filomena, Ana recordou “imediatamente” as primeiras imagens que viu desta a falar aos órgãos de informação. “Estavam todas lá, guardadas na minha memória de quando ainda era uma miúda. E o sentimento que veio foi o mesmo dessa primeira vez, uma enorme e profunda empatia por aquela mulher de grandes olhos azuis muito atentos à procura do seu filho. Foi uma viagem no tempo, fiquei a saber de muitas coisas que não tinha conhecimento ou que já não me lembrava sobre o caso e a Filomena, nesse dia, teve a amabilidade de voltar a contar-nos a sua história, tão dura, tão cruel”.

Por estas razões, a atriz que gravou a série Pedro e Inês (RTP, 2005), interpretando o papel de Inês de Castro, esclarece que conheceu “uma mulher incrível e muito especial” que nunca esquecerá. “Esse nosso encontro foi imprescindível para me ajudar a construir esta personagem”, indica, destacando várias vezes a resiliência da progenitora do menino. Resiliência essa que é notória através de variadas ações, como o facto de, em julho de 2017, a mulher ter feito um novo apelo, publicado no Facebook do Terras Do Vale De Sousa, um jornal local. “Não se esqueçam dele por favor”, escreveu em letras maiúsculas, confessando que nunca consegue deixar de pensar no filho e que gostaria de lidar com a dor e a saudade de forma mais saudável.

“Queria tanto ser diferente, faço tudo ao contrário, fecho-me, isolo-me. E leio. Mas não esqueço. Não posso deixar de falar cada vez mais nele, tudo me lembra dele. E hoje é um dia de choro, de revolta, de desespero e mais, e mais, até ao infinito da dor”, lia-se no texto. “E se me acontecer qualquer coisa, continuem a lutar por saber o que lhe aconteceu”, adicionou a mulher que sofre há mais de duas décadas sem obter as respostas de que necessita. “É já tudo o que me resta! Este desespero de saudade que só quem é mãe sente. Por favor não se esqueçam dele. Nunca desistam. Mãe”.

As famílias das crianças e dos jovens que desaparecem iniciam um processo de luto sem saberem aquilo que aconteceu, mas, ao mesmo tempo, têm esperança de que o desfecho dos casos seja positivo. Que impacto emocional exerceu este trabalho em Ana? Quando terminava as gravações, conseguia “desligar-se” da personagem ou ficava “presa” à história, às falas, aos cenários e aos casos reais? “O nosso trabalho enquanto atores é interpretar. É um trabalho que envolve diversas ferramentas, ou seja, não é apenas alicerçado nas emoções mas também é feito com técnica, conhecimento e consciência da personagem que estás a representar. Nesse sentido é o ator que controla as suas personagens e não ao contrário. É importante desmistificar essa ideia de que o ator tem de sofrer igual às suas personagens. Essa ideia romântica de que ficamos presos às personagens e que sofremos como elas não reflete a nossa realidade profissional ou a nossa prática artística enquanto intérpretes”, sublinha.

“Os casos de desaparecimento de menores são mais frequentes do que aquilo que pensam” No passado dia 25 de maio, data em que se assinalou o Dia Internacional da Criança Desaparecida, no webinar intitulado de Crianças Desaparecidas e Exploradas Sexualmente, Carlos Farinha, da PJ, explicou que estiveram 1.011 crianças e jovens até aos 18 anos desaparecidas em 2020, sendo este “um número substancialmente mais baixo” do que aquele que foi registado em anos anteriores. Foi este panorama assustador que terá levado Bruno Gascon a enveredar pelo tema.

“Sem dúvida. Não são estes dados em concreto, dado que filmei a Sombra no final de 2019, mas dados muito semelhantes a estes relativos a Portugal e que se tornam assustadores quando analisamos a realidade europeia ou mundial”, adianta, em declarações ao i, o realizador que depois de ter vivido em Amsterdão e estudado na SAE Amsterdam – tendo emigrado aquando da morte da mãe –, regressou a Portugal e começou a trabalhar como realizador de documentários sociais e culturais para canais de televisão portugueses (RTP, SIC, Económico TV, entre outros). 

“A vontade de abordar este tema surgiu durante a pesquisa para o meu primeiro filme que falava de tráfico de seres humanos. Após lançar Carga voltei a essa investigação e aprofundei-a com o apoio da Associação Portuguesa de Crianças Desaparecidas que me colocou em contacto com familiares de casos como aquele que pretendia retratar”, lembra, declarando que as conversas “foram sobretudo focadas nas mães dado que já tinha definido que a personagem central do novo filme seria uma mãe em busca do seu filho”.

Segundo Farinha, a redução do número de desaparecimentos está “seguramente” relacionada com o novo coronavírus. Dos 1011, 868 jovens desaparecidos tinham entre 14 e 17 anos, 90 tinham entre 11 e os 13 anos e 53 crianças tinham até 10 anos. Apesar de parecer haver uma tendência decrescente, estes números continuam a ser alarmantes. E tal levou a que, durante a pesquisa, Bruno tenha ficado surpreendido com os desaparecimentos que acontecem anualmente em território nacional.

“Acho que ficamos sempre surpreendidos porque por mais informação que tenhamos existem sempre coisas que encontramos na pesquisa que são bastante complicadas de aceitar ou de acreditar que possam acontecer num país como Portugal”, diz o também argumentista que, em 2014, escreveu e realizou a curta-metragem Boy que ganhou diversos prémios, entre eles o Rising Star Award 2015 no Canada International Film Festival. 

“Ainda assim acho que o maior impacto é quando os números ganham um rosto e falamos com famílias que ainda hoje esperam pelo regresso de crianças desaparecidas há muitos anos. Ao longo de todo o processo de produção do filme foi verdadeiramente assustador perceber que muita gente em Portugal não tem noção que os casos de desaparecimento de menores são mais frequentes do que aquilo que pensam. A ideia imediata que lhes vem à cabeça são os casos do Rui Pedro e da Maddie, mas existem muitos mais”, lamenta, indo ao encontro da perspetiva de Farinha. 

Isto porque o responsável da PJ deixou claro que nestes dados “não estão todas as crianças desaparecidas” em território nacional, pois, muitas das vezes, os números da PSP e da GNR não integram as estatísticas. Para a existência de “uma radiografia exata sobre o que se passa neste grupo”, urge levar a cabo um melhoramento do apuramento de dados. Será que ao longo da realização do filme, Bruno se cruzou com famílias e histórias que passaram despercebidas na comunicação social? 

“Nem todos os casos chegam à comunicação social. Ou se chegam acabam por surgir e desaparecer muito rapidamente, o que deixa uma sensação de impotência muito grande nas famílias porque na verdade elas só querem uma coisa: que o rosto de quem procuram continue a ser visto. Acho que mais do que os números serem preocupantes é dramática a forma como a sociedade no geral lida com a tragédia. Todos nós vemos estes casos enquanto eles estão nas notícias, quando desaparecem esquecemo-nos deles e a verdade é que a busca continua”, critica, reconhecendo que os principais fenómenos que conduzem ao desaparecimento de crianças e jovens são a exploração sexual e o tráfico de seres humanos. Em Portugal, têm existido casos sem resolução que são associados aos mesmos, como o de Maddie, mas também outros com motivos menos comuns como o de Joana Cipriano. Por outro lado, o desaparecimento mais antigo de que se tem conhecimento foi o de Hélder Alexandre Ferro Pagarim Cavaco, cujo paradeiro é desconhecido desde 28 de janeiro de 1990.

Como é que, entre todas as histórias, decidiu inspirar-se mais profundamente na de Rui Pedro? “Na verdade, a personagem principal embora tenha uma inspiração maior na Filomena Teixeira, mãe de Rui Pedro, vai também buscar influências a outras famílias com quem falei até porque os sentimentos vividos pela personagem central do filme são transversais a todas as famílias: uma dor, uma esperança e um amor que não acabam”.

Devido a esta infeliz universalidade, Sombra estreou mundialmente na competição do Festival de Cinema Barcelona – Sant Jordi, onde recebeu o prémio de melhor obra, atribuído pela Associação Catalã de Críticos, e o galardão “Filme-História”, entregue ao “melhor filme pelos seus valores históricos”. Depois de ter estreado no Festival Internacional de Cinema de Xangai, na China, e no Festival de Cinema Ischia, em Itália, no dia 30 de outubro chegou ao Reino Unido por meio do Raindance Film Festival, que decorrerá até ao próximo dia 6 de novembro. Bruno está nomeado para Melhor Realizador e Ana Moreira, a protagonista, para Melhor Performance. “O filme tem sido muito bem recebido internacionalmente. É sempre uma alegria enorme ver algo que foi criado com tanto amor e cuidado poder viajar e chegar a tanta gente. O facto de tanto eu como a Ana estarmos nomeados foi uma notícia incrível, portanto sinto que tudo o que vier a mais será positivo. Na verdade, o que mais desejo é que o filme e esta história possam viajar o mais possível”, descortina o primeiro, enquanto a segunda, nomeada lado a lado com Lúcia Moniz e Michael Caine, transmite que “é muito habitual o nosso cinema ser valorizado internacionalmente” e não a surpreende que Sombra esteja nomeado porque “reúne todos os elementos técnicos e artísticos para concorrer a um festival deste calibre. ”Gostaria de um dia ver o nosso trabalho valorizado da mesma forma em Portugal”.