Isso é que é preciso!


É uma das mais deliciosas frases da língua portuguesa, intraduzível na medida em que o significado aparente esconde toda uma vontade de atirar à tromba do destinatário um pano encharcado. Tal qual a discussão do Orçamento do Estado.


E ao sétimo ano a discussão do orçamento do Estado tornou-se mais interessante, ao ponto de ter devolvido audiência aos telejornais. O Presidente da República, sempre pedagógico, explicou às criancinhas e lembrou ao povo que sem orçamento aprovado não haverá Governo. Alimentados diariamente durante os confinamentos com três temporadas completas de quatro séries diferentes, os portugueses desataram a imaginar a trama dos próximos capítulos da novela política.

Não são os únicos. Pelas lideranças partidárias há quem trace cenários e treine poses em frente ao espelho, antecipando anúncios de decisões graves “Portugueses! Nesta hora difícil…”. A actual liderança do PS não enjeitará o papel de vítima, na esperança de rapar ao PCP e ao Bloco os pontos percentuais necessários para ganhar umas eleições antecipadas. A jogada é arriscada, podendo traduzir-se numa vingança da história: um PS vencedor, sem maioria absoluta e sem maioria de esquerda, abriria caminho a uma geringonça “fascista”. A destra geringonça sentaria no Governo, com o PSD, os dois novos partidos de direita, Chega e Iniciativa Liberal que, ao contrário do PCP, não têm pruridos governativos e não apoiarão um Governo de que não façam parte.

A entrada do Chega no Governo forneceria aos partidos à esquerda uma agenda política comum (“Fascismo nunca mais!”), fácil e com garantia de sucesso baseada na triste história contada por Esopo, da rã – in casu o PSD – e do escorpião – o Chega, unidos por um contrato contra natura. Uma pugna contra um governo “fascista” permitiria uma renovação suave e consentida da liderança do PS, abrindo caminho para um XXIV governo constitucional, de esquerda, maioritário de um só partido ou assumindo, finalmente, uma coligação governamental à esquerda.

Esta possibilidade dependeria do funcionamento do mecanismo tradicional da vacina política administrada pela realidade aos partidos extremistas. No caso português a passagem do Chega à governação traduzir-se-ia na sua fagocitação pelo PSD. Já o ideário “chegano” apregoa o contrário: será o Chega a absorver o PSD. Aceitam-se apostas.

O Supremo Magistrado da Nação terá algum cuidado com a redacção do conteúdo das notas de rodapé da história. Entre ficar para a posteridade como o melhor amigo (político) de António Costa ou o Presidente que empossou um Governo que integrava o Chega, son coeur balance.

O tempo, esse grande escultor, não ajuda. A continuação da geringonça por mais um ano desgastará ainda mais o PS (foi atingido, há muito, o limite físico da remodelação) e dará tempo à nova liderança do PSD para se instalar e denunciar, no estertor da pandemia, a ausência de programa político do Governo. PCP e Bloco consideram, não sem razão, que uma defenestração de Costa permitirá nas próximas eleições manter a pureza de esquerda e a actual representação parlamentar de comunistas e bloquistas, mesmo que o PS deixe de ser Governo.

O primeiro-ministro em funções não tem, ainda, preocupações com o desenho da imagem para a posteridade. Acha que ainda terá hipóteses de a compor quer em Portugal quer fora de portas. E terá, provavelmente, noção de que a sua actual imagem, empunhando a bazuca, passa no teste do espelho. Esta expressão de sensatez é contrariada pela humana vontade de condicionar a sucessão, agora à maneira moderna, orientando uma sucessora.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990