Ricardo Marques, padre em Pemba, Cabo Delgado. “Continuamos a sentir um ambiente de insegurança total”

Ricardo Marques, padre em Pemba, Cabo Delgado. “Continuamos a sentir um ambiente de insegurança total”


Padre na maior paróquia de Pemba, Ricardo Marques fala de Cabo Delgado, há quatro anos debaixo de ataques terroristas. E alerta: é fácil recrutar jovens sem esperança.


Ricardo Marques tem 43 anos e é pároco desde 2015 na paróquia de Maria Auxiliadora, a maior na cidade de Pemba, na fustigada província de Cabo Delgado em Moçambique. Ao fim de quatros anos de ataques terroristas e miséria crescente, lamenta a falta de informação por parte das autoridades e fala das condições em que vive a população e de como a Igreja tem procurado ser uma voz contra o medo – e de como precisam de apoios e de voluntários em todas as áreas, mesmo agora que o foco da comunidade internacional se dirige para outros conflitos. O sacerdócio, conta, foi uma vocação tardia. Filho de Moita do Norte, em Vila Nova da Barquinha, formou-se em informática e foi professor durante oito anos. Tinha 28 quando quando entrou para o seminário na Sociedade Missionária da Boa Nova, já a acreditar que poderia fazer a diferença em África. Numa passagem sobre Lisboa, falamos sobre essa província arrasada nos últimos quatro anos, desde que o Estado Islâmico reivindicou o primeiro ataque em Mocímboa da Praia, a 5 de outubro de 2017. As estimativas apontam para mais de 1300 mortos e mais de um milhão de deslocados desde então, a maioria a passar fome, com aldeias dizimadas, uma violência irracional e traumas que vão permanecer por gerações. De férias em Portugal, para abrir horizontes sobre a forma de ajudar, apela à solidariedade com a coragem de quem acredita que a forma de semear o futuro é não pactuar no dia a dia com a exploração e a indiferença.
 
Pemba já é casa?

Já. Estou em Pemba há sete anos, desde janeiro de 2015. O povo é acolhedor, simples, sinto-me bem lá.

O que se sente nesta Lisboa, a 11 mil quilómetros?

É tudo diferente. Pemba é capital de Cabo Delgado, a província mais a norte de Moçambique. Como capital não é uma cidade grande e mesmo sendo uma capital é marcada pela pobreza, pelo subdesenvolvimento. É uma cidade que sobretudo desde 2012 se estava a desenvolver mas não de forma ordenada. Tem muitas estruturas do tempo colonial mas a maioria das pessoas vive em condições muito mais frágeis, em casas feitas de matope, uma terra argilosa, e de bambu. Normalmente são casas com duas ou três divisões. Quem entra na cidade de Pemba vê os edifícios coloniais mas quando se entra nos bairros o que se vê é isso, essas casas e a miséria em que vivem aquelas pessoas. Causa um certo impacto, sobretudo quando saímos daqui.

O que é que o impressionou mais?

Eu já tinha estado em Nampula como seminarista. Vivi em Malema, no meio do mato, durante um ano. Mas é a pobreza em que as pessoas vivem que impressiona. Todos os dias são um exercício constante de sobrevivência. A maioria das pessoas não tem trabalho. E no caso de Pemba nem têm trabalho nem têm espaço de cultivo. Basicamente existem duas formas de subsistência. Uma é trabalhar para o Estado. O salário mínimo lá será 40 ou 50 euros por mês, 4000, 4500 meticais.

Dá para quê?

Muito pouco. Um saco de arroz para uma família custa 1500, 2000 meticais. Pouco mais resta. E quando digo família são famílias grandes, 10, 15 pessoas por casa, que agora com os deslocados do conflito às vezes vai para 50, 60 pessoas por agregado. E um dos problemas de Pemba neste momento é mesmo este: só no ano passado tínhamos 150 mil deslocados em Pemba, de um milhão de pessoas que tiveram de fugir das suas casas em Cabo Delgado.

E essas 50, 60 pessoas ficam todas na mesma casa?

Naturalmente não cabem, grande parte das pessoas dorme ao sol e à chuva, com pequenas coberturas, redes mosquiteiras quando há e sujeitas ao tempo que fizer. Não há casas de banho, quando muito têm pequenas latrinas. Acresce uma grande dificuldade no acesso a água. As canalizações que existem em Pemba foram feitas há 40 ou 50 anos por uma organização italiana mas nunca foram atualizadas para o aumento da população, que aconteceu sobretudo a partir de 2013. Até aí a cidade era como outras vilas, meio mato. O crescimento que foi exponencial não teve apoio de infraestruturas. A maior parte das famílias não têm água em casa, as mulheres fazem grandes deslocações para ter água, as condições de higiene são muito pobres.

Quem não trabalha para o Estado, vive de quê?

Pequenos biscates ou comércio. Vendem carvão, produtos alimentares, mas tudo muito reduzido. Não dá para nada. Os grandes armazéns que existem estão na mão de grandes empresários, a maioria de religião islâmica, que em Cabo Delgado é a religião maioritária.

Isto na região mais rica de Moçambique.

Sim, em pedras preciosas, gás natural. Dizem que tem a maior bolsa de gás natural de toda a África, bolsas de petróleo, nas zonas onde aconteceram os últimos anos os ataques, onde foi encerrado o projeto da Total.

Com é que o povo olha para essa riqueza?

O que o povo pensa não posso dizer, mas tem sido muito problemático. O que conseguimos ver é que aquilo que deveria ser uma fonte de riqueza e desenvolvimento para toda uma província não é e já não era antes deste conflito. As pessoas podiam ter mais oportunidades de emprego, que permitissem corrigir as assimetrias, mas o que se vê é o contrário. A exploração é feita por empresas internacionais que não empregam locais ou se empregam é à custa de violação de direitos humanos, de exploração.

Não lhes pagam?

Muito pouco. Não temos acesso a muita informação.

Tem sido um dos problemas de Cabo Delgado, a pouca informação que é dada até sobre a evolução do conflito.

Sim, não temos dados que nos permitam perceber muito bem o que se passa. Não digo que a Igreja tivesse de ter, mas as pessoas. Tudo aquilo que aqui damos por garantido, as pessoas serem informadas do que se passa, a forma como se discute por exemplo por estes dias o Orçamento do Estado, lá isso não é público. A sociedade civil tem questionado muita coisa, por exemplo a exploração das pedras preciosas. Por lei as empresas têm de declarar, o Estado tem direito a 2,5%, mas isso é o que entra no mercado legal, não sabemos o que mais há.

As pessoas saem de Pemba à procura de pedras preciosas?

Claro, mas quando o fazem há violência, mortes. Antes destes ataques esse foi um dos grandes combates de D. Luiz Fernando Lisboa, o antigo bispo de Pemba, ao confrontar-se com a violação de direitos humanos nas explorações. A região das pedras preciosas fica a 200 km de Pemba, Montepuez, e até o acesso às instalações era difícil. As empresas dizem o contrário, que somos bem vindos, mas a partir de determinada zona torna-se muito difícil. A lei previa que a população fosse auscultada e apoiada nas deslocações mas isso nunca aconteceu. Em Pemba estamos agora a ter de novo um destes problemas, num dos bairros mais pobres junto ao mar. Nunca deram autorização de construção mas as pessoas instalaram-se lá. Agora não podem construir porque há um empreendimento que lá querem fazer. Para onde vão? Deslocam-se de novo, vão para terrenos sem saneamento, sem escola, mais longe da cidade e as pessoas com os baixos salários que têm ainda vão ter de os gastar nos transportes. E é disto que a população se queixa. Tem sido uma região ignorada, com um passado muito violento, que já vinha dantes destes conflitos. A guerra colonial, a guerra civil que se sucedeu, sempre tiveram em Cabo Delgado das manifestações mais violentas.

Todas as famílias carregam essas marcas? 

A maioria. E creio que ajuda a perceber o ambiente que se vive: percebe-se que é um povo muito marcado pelo medo.

Em que é que vê o medo?

Na nossa constante tentativa de incentivar as pessoas a denunciar violações de direitos humanos, injustiças e na dificuldade que as pessoas têm em fazê-lo por receio de represálias, de violência. E é um medo fundado. Mesmo nos bairros há situações de extrema violência, por parte das autoridades e entre as próprias pessoas. É normal uma menina a partir de determinadas horas mais tardias ser espancada ou violada. No nosso trabalho temos de ter tudo isto presente. Sei que não posso fazer uma celebração tardia porque as pessoas correm esses riscos.

Até que horas celebra?

Até às 19h30, 20h podemos trabalhar, a partir daí precisamos de mais cuidado.

Faz quatro anos este mês que Cabo Delgado viveu o primeiro ataque ligado ao Estado Islâmico, em Mocímboa da Praia. Que memória tem desse dia?

Recordo-me das imagens que recebi no telemóvel. A televisão não fala muito. Ainda hoje não percebi se faz bem ou se faz mal. Percebo que é preciso cautela na informação por causa da intervenção política e militar, algum controlo de informação, mas de alguma maneira deveria haver algum esclarecimento que até agora não temos. Em quatro anos de conflito não ouvimos um pronunciamento oficial. Mesmo agora que está a haver algum reforço da intervenção militar, lá pouco é dito. Percebe-se que há um controlo muito forte da informação tentando transmitir uma sensação de segurança mas que sentimos que não corresponde à realidade. E foi nesse sentido que a Igreja e Dom Luiz Fernando Lisboa (antigo bispo de Pemba) fizeram muita pressão ao longo dos últimos anos, o que levou à intervenção da Comissão Europeia. A Igreja não tem de intervir em áreas governamentais, mas fazemos a leitura do terreno e perguntamos porquê: o que é que se passa, porque é que as autoridades governamentais parecem sistematicamente recusar a ajuda da comunidade internacional e agora o que temos dito é que é importante que se perceba que não vai chegar uma intervenção militar para resolver o problema, porque é necessário perceber o que está na sua origem. E voltamos ao início, que são as condições em que vivem aquelas pessoas há muito tempo, condições de pobreza, de miséria.

Nesse primeiro ataque em Mocímboa da Praia, disse-se no início que era um ato isolado.

Sim, começou por falar-se de jovens descontentes e do grupo Al-Shabab, que não teria a ver com o grupo terrorista com esse nome. O que nos causou logo estranheza foi a forma como entraram a matar toda a gente e depois logo naqueles primeiros vídeos vimos os jovens a içar a bandeira do Estado Islâmico, o que no contexto de Cabo Delgado acabava por ser um fenómeno estranho.

Não havia sinais de radicalização?

Já havia, mas ao contrário do que se possa pensar esta não é uma guerra entre Islão e o Cristianismo. Depois disso atacaram todos. Tenho oito anos de Moçambique e nunca tive problemas com muçulmanos, tive até experiências muito boas. Quando aconteceu o furacão Kenneth em 2019, que foi violentíssimo em Cabo Delgado – e só não foi pior porque tínhamos tido o Idai na Beira, que nos permitiu antecipar um pouco as consequências –, a onda de solidariedade partiu da Igreja Católica e dos muçulmanos, que se juntaram. Na nossa paróquia ajudámos cerca de mil pessoas e a maioria dos donativos que recebemos não foram de cristãos, foram de muçulmanos. Portanto não é verdade que ali houvesse um desentendimento entre cristãos e muçulmanos. Quando estes fenómenos começaram tivemos ações conjuntas pela paz.

Na altura o Conselho Islâmico de Moçambique em Nampula achou que seria um ataque pontual. Que sinais é que havia de radicalização?

Alguns líderes islâmicos já tinham denunciado ao Governo uma movimentação estranha e começou-se a perceber que havia jovens que estavam a ser recrutados e treinados fora de Moçambique, no Congo, na Somália.

Aproveitando o descontentamento, a miséria.

É muito fácil recrutar. Não pensemos que muitos deles são recrutados por convicção, não são. Basta chegar ao pé de um jovem que não tem esperança nenhuma, oferecer-lhe um valor x… e este é um processo que começa muito anos de 2017. Eram conhecidos focos de radicalização, numa zona junto ao porto marítimo e outro mais fora de Pemba. Também havia outros sinais que nos faziam questionar, como a proliferação de mesquitas. Sabíamos que o dinheiro não vinha de Pemba, alguém tinha de as estar a financiar. É impossível que de um momento para o outro aparecesse uma fonte de rendimento tão grande. O que percebemos é que alguém estava a financiar aquilo.

Quem?

Tenho uma ideia, talvez a Arábia Saudita, mas não quero entrar por aí. O que penso é que este é um problema que continua a merecer um estudo mais profundo. Nunca foi só um problema de Moçambique e isso na minha opinião foi algo que se demorou a entender. Na África subsaariana temos este problema na Nigéria, na Somália, na Tanzânia. Não é um problema de Moçambique e, se o queremos resolver, é preciso envolver toda a comunidade internacional. Havia estes sinais, em outubro de 2017 há o primeiro ataque, começam a repetir-se na zona Norte e começam a estender-se até à zona de Macomia, que fica também a uns 200 quilómetros de Pemba, até chegarem muito perto da cidade. Há quem diga que tentaram entrar em Pemba mas não conseguiram. A partir de 2019 a situação agrava-se e percebemos, não por informações de lá mas por analistas daqui, aquilo que já antes todos suspeitávamos: que não estávamos a falar de grupo isolados mas de uma ligação ao Estado Islâmico. A partir daí o nível de violência aumenta exponencialmente.

Lembra-se de um momento em que tenha sentido esse descontrolo?

Não há um dia, foi progressivo. Lembro-me de um momento em que disseram que teriam sido raptados cerca de 50 jovens muçulmanos e todos foram mortos. Vimos o que era a escalada. Em 2020 acompanhámos o caso de duas irmãs da da Congregação de São José de Chambery raptadas na zona de Mocímboa e descreveram uma experiência aterradora. Foram libertadas numa intervenção da diocese de Pemba com as autoridades mas foi preciso tirá-las de Cabo Delgado. A partir daí foi uma constante de raptos, mortes e as pessoas a fugir, a maioria para o mato. Geralmente as mulheres são poupadas para o serviço, mas os homens são mortos logo ali, esquartejados, decapitados. Mortos da forma mais horrorosa possível. Há histórias de maridos que conseguiram fugir para o mato mas, passando fome, regressaram e foram apanhados pelos terroristas. Conheci um ou dois que tiveram sorte porque foram dados como mortos, baleados e esquartejados, conseguiram fugir e sobreviveram.

Eram jovens dali a fazer isso aos seus? Como?

Não sei responder, mas isso é um problema. Porque se são jovens dali, se porventura têm uma intervenção com alguém conhecido matam o conhecido, para não serem reconhecidos. A violência é sempre irracional mas se for num contexto de uma guerra convencional consegue perceber-se que se o outro ataca tenho de me defender. Aqui o que vemos é uma escalada brutal da irracionalidade. Matam toda a gente. As crianças geralmente recrutam-nas, porque é mais fácil fazer uma radicalização. Os adultos, especialmente os homens, ou há uma conversão obrigada ou não havendo essa conversão, o que é um ato de heroísmo naquele contexto, a brutalidade não tem fim.

Quantas pessoas deslocadas chegaram à sua paróquia nos últimos anos?

Como dizia, em Pemba temos cerca de 150 mil deslocados. A minha paróquia é a maior de Pemba, a paróquia de Maria Auxiliadora. Teremos recebido 20, 30 mil pessoas. Há quatro paróquias na cidade e depois há uma área onde hoje temos uma concentração maior de pessoas que é Metuge, que foi onde muitas pessoas se instalaram quando o houve os ataques mais perto de Pemba e fugiram de Quissanga e de outros locais. Temos feito ali uma grande intervenção junto com as autoridades em seis ou sete acampamentos, onde há 15 a 20 mil pessoas em cada um. Um dos grandes problemas que temos é que as pessoas nestes acampamentos continuam a viver sem condições. Onde as colocar? Uma boa parte vai para famílias de acolhimento, nas condições que já descrevi, outras são reassentadas em terrenos disponibilizados pelo Governo, terrenos sem nada.

O trabalho que faz na paróquia acaba por ser mais de subsistência material do que espiritual?

Tem de ser. Não nos querendo substituir a ninguém, o nosso raio de intervenção tem de ser vasto e sempre foi, não é de agora. Quando falamos de uma população em que a maioria vive abaixo do limiar de pobreza, com menos de dois dólares por dia, tem de ser assim. Trabalhamos com a Cáritas diocesana, que articula a resposta com o Programa Alimentar Mundial da ONU, com a Unicef, a Cruz Vermelha e na nossa paróquia acaba também por ser esse o foco a nível local. Como vamos trabalhar o lado espiritual com pessoas que passam fome?

Como é o seu dia?

Passa muito pela assistência aos doentes, a assistência alimentar, grupos de apoio psicossocial e depois a parte espiritual, com as celebrações.

Quantas pessoas vão à missa?

Durante a semana são grupos mais pequenos mas aos domingos na igreja paroquial fora da pandemia tenho 900 a mil pessoas na Igreja.

E cabem?

Nem todas sentadas, mas cabem, é uma Igreja cheia. Apesar de a religião islâmica estar em maioria, o cristianismo desde a década de 90 teve uma grande implementação também devido a migrações para a cidade de Pemba, por exemplo da etnia maconde, que é de maioria cristã.

Que limitações trouxe a pandemia?

O Governo reabriu o culto há pouco tempo mas permite poucas pessoas de cada vez, em vez de celebrar uma vez ao domingo celebro duas ou três vezes. Também houve uma menor presença nas comunidades, que foi algo que as pessoas sentiram muito. Tentamos estar muito presentes. A nossa paróquia, entre cristãos e muçulmanos, deve ter 130 a 140 mil pessoas. Em 2017 Pemba, segundo os censos, tinha 200 mil pessoas; Cabo Delgado 2,4 milhões. E por aqui dá para ver a dimensão da tragédia: quando hoje falamos de um milhão de deslocados, dá quase metade da população de Cabo Delgado que teve de fugir das suas casas. E virem mais 150 mil pessoas para Pemba foi passar quase para o dobro da população sem infraestruturas para isso. Neste momento a cidade de Pemba não tem mais espaço para ninguém. Está a alargar-se para a periferia mas tudo sem condições nenhumas.

O que diz nas suas homilias perante esta realidade?

Faço o trabalho normal de um pároco, procuro ajudar as pessoas a ter um caminho mais feliz. Não somos críticos de ninguém, e ali especificamente nem contra a Frelimo, nem contra a Renamo, nem contra ninguém, embora às vezes a posição da Igreja seja confundida com intervenção política. Da mesma forma que quando o Papa Francisco publicou a encíclica Laudato Si foi muito criticado, por tocar no interesses económicos, corporativos. A nossa preocupação é que as pessoas assumam valores humanos, éticos, e naturalmente que ao fazerem-no irão sempre mexer com os interesses de alguém. Na Maria Auxiliadora, o meu primeiro trabalho é escutar as pessoas, observar bem o ambiente. Não conseguimos fazer nenhum trabalho de relevo se não percebermos muito bem o ambiente onde estamos. Isso é válido para lá e para aqui, mas lá muito mais, porque é um ambiente complexo a vários níveis, sociais, culturais, com um passado pesado. Em Pemba confluem várias etnias – macua, maconde, muani.

Teve de aprender muito em oito anos? 

Sempre com o povo. O povo sabe ler os corações, especialmente do estrangeiro.

Como foi para eles ver chegar um padre com a sua estatura?

Quando o povo entende e aceita que estamos com o coração, acolhe. Para nós é um grande desafio e ao fim de oito anos continuo a aprender. Tinha a experiência de Nampula, mas viver no mato é diferente de viver na cidade. E em Nampula tinha estado só com uma etnia, a macua. Em Pemba são várias, com diferentes dialetos e tradições. Se eu aprendo qualquer coisa de macua, maconde vai perguntar: e nós? E depois a muani.

Dá a missa em que língua?

Na cidade em português, entendem, com exceção dos mais velhos, mas é mais próximo dos serviços. Nas comunidades já não, mas o povo ajuda. Primeiro porque o português lá é mais aberto, mais pausado e depois vamos perguntando como se diz isto, como se diz aquilo e vamos aprendendo, mas o trabalho fundamental é a presença, a escuta. Na comunidade quando há festas o padre participa, está com as pessoas e isso é o mais importante, sentirem que estamos com eles e isso foi de facto o mais limitador da pandemia.

Sentiu que as limitações foram excessivas?

As preocupações lá estão muito além da covid-19. Já nem falo do conflito, mas malária, cólera. Todos os anos morrerem centenas de milhares de pessoas com estas doenças. Aquilo que vivemos aqui no mundo ocidental com esta pandemia é o dia a dia lá. 

A discussão em torno da distribuição das vacinas da covid-19 aos países mais pobres já fazia falta nessas frentes?

É um debate que se justifica, claro, mas não podemos ser ingénuos. Não podemos só responsabilizar as autoridades africanas pelos problemas que se vivem lá, a responsabilidade também é nossa, da comunidade internacional. E o mesmo em relação aos ataques terroristas. São terroristas, com certeza, mas quem é que foi para lá explorar o gás, o petróleo, as pedras preciosas sem haver um retorno para a população? Franceses, italianos, chineses, que têm arrasado os recursos naturais e que corrompem. Há sempre quem corrompe e quem é corrompido. Há um nível de corrupção muito alto. Uma pessoa vai pela rua, encontra um polícia e automaticamente quando lhe pedem a carta de condução já se espera que meta uma nota por baixo. Está entranhado. E voltando ao que é a nossa mensagem, quando faço notar que corromper ou ser corrompido não é ético, não é moral, a resposta que muitas vezes tenho é que é normal e é isso que tentamos contrariar.

Depois de deixar de ser bispo de Pemba, D. Luiz Fernando Lisboa revelou que tinha recebido ameaças de morte do Governo moçambicano por ter falado da guerra em Cabo Delgado. Não tem medo quando faz essas denúncias?

Medo não tenho. Costumo dizer que mal seria se um padre como eu, como todos nós em Cabo Delgado, que tanto lutamos para que as pessoas aprendam a desembaraçar-se do medo, tivesse eu próprio medo. Não quer dizer que esteja alheado da realidade e tenho noção do que pode acontecer.

Alguma vez teve algum momento de tensão?

Não, tive situações próprias do ambiente de Pemba, por exemplo ter polícia secreta nas celebrações, no fundo a mesma coisa que aconteceu a D. Luiz. É preciso ter presente o contexto. Ele entra na diocese em 2014, já tinha trabalhado lá antes, conhecia bem o ambiente e quando foi ordenado bispo já tinha ideia do que se vivia na região. Dom Luiz Fernando Lisboa sempre se caracterizou por aquilo que a Igreja deve ser: a voz da verdade, a voz do povo e Cabo Delgado obriga-nos a agir assim. E note-se que quando ele fez os seus pronunciamentos públicos nunca foi contra as autoridades mas as coisas caíram mal em alguns setores.

D. Luiz Lisboa disse que o Governo tinha ignorado os problemas em Cabo Delgado. Sentem que a história poderia ter seguido outro curso? 

Se tivesse havido mais atenção a todos os sinais, se as denúncias de radicalização tivessem sido levadas a sério, talvez a dimensão tivesse sido diferente. Depois, perante a escalada de violência, se não tivesse havido tanta indiferença, talvez não tivéssemos chegado a tantos mortos, tantos deslocados. Podemos falar do terrorismo como podemos falar do ciclone Kenneth: as autoridades reagiram mas foram em meu entender lentas de mais. E as pessoas percebem isso, não é que sejam manipuladas pela Igreja. Tenho uma grande admiração pelo povo.

Sentem que hoje há alguma melhoria?

Pouca. Em meu entender, o que percebemos é que alguma coisa não está a funcionar, que há alguma falta de estratégia.

Mas a situação está mais calma? Tem havido notícia de várias localidades reconquistadas ao controlo do Daesh, desde logo Mocímboa da Praia, no início de agosto.

Aparentemente estão mais calmas. Isso é o que as autoridades transmitem mas o que vemos muitas vezes é contraditório. É como dizia: percebo a preocupação de transmitir uma imagem de segurança para não gerar o pânico. Percebe-se que por atuação das tropas do Ruanda, as zonas de Palma e Mocímboa aparentemente têm um maior controlo, mas há notícias de confrontos noutros sítios em que a situação não está tão calma assim e isso não se ouve. O discurso nos últimos quatro anos por parte das forças de segurança tem sido de que está tudo controlado e volta e meia acontece o mesmo. Portanto continuamos a sentir um ambiente de insegurança total, não sabemos.

Tem havido um apelo a um diálogo com os insurgentes. Foi um repto deixado já este mês pelo Centro para a Democracia e Desenvolvimento. Parece-lhe que é possível?

O diálogo é sempre necessário, nem poderia a Igreja advogar outra coisa, mas o problema que aqui se coloca é dialogar com quem? Não há um rosto nem se sabe ao certo quais são as motivações. A que salta mais à vista é o radicalismo islâmico, mas sabemos que há interesses económicos. Como é que se justifica que num conflito como este em que as pessoas foram arrancadas à força dos seus terrenos haja projetos para as mesmas áreas?

Mas parece-lhe que existe uma conivência do Governo?

Não digo do Governo, mas há pessoas que ganham com este conflito, seja por que modo for, até pelo tráfico de armas. Portanto o diálogo seria o ideal mas com quem? Não sei responder sobre o que será o melhor caminho. Não posso advogar uma intervenção militar…

O recurso a mercenários por exemplo…

Sim. Percebo que haja necessidade de uma intervenção, mas tem de ser bem planeada.

Há sinais de que o recrutamento para o Estado Islâmico continua a acontecer em Cabo Delgado?

Temos de o admitir. E mesmo pessoas que podem ter saído, é preciso perceber como pode ser feita a reintegração e o que por vezes ouvimos é justiça feita por mãos próprias. Como fazer o diálogo com as vítimas, reintegrar alguém que participou na morte de um familiar de um vizinho? São situações que exigem muita prudência. Temos de pensar em todas estas dimensões. Mas é natural que existam terroristas em Pemba, porque também não são ingénuos e noutras localidades, quando veem que estão em desvantagem, podem misturar-se entre as pessoas. E aí a insegurança de que falava, que se vive em Pemba e em todo Cabo Delgado.

Tem feito apelos à solidariedade, aproveitando esta passagem por Portugal. Sente que a comunidade internacional, a sociedade civil, continua envolvida?

As pessoas estão sensíveis. Sabemos que quando há um foco em algum sítio, as atenções, desde logo da comunicação social, apontam para lá. Foi o que aconteceu em Cabo Delgado em abril, maio e os olhares viraram-se todos para nós. Mas depois veio o Afeganistão e o foco passou a ser o Afeganistão.

Em que se sente essa menor atenção?

Vê-se que algumas organizações saem do terreno, há menos donativos. As pessoas gostam de ajudar mas o foco acaba por variar. E isso tem sido uma das preocupações nestes dias em que tenho estado cá e tenho encontrado muita sensibilidade e generosidade. As pessoas dão o que podem, claro que nunca é tudo o que seria necessário lá.

O que vos falta mais falta?

Tudo. Alimentação, roupa, calçado. Além da assistência de emergência tentamos em articulação com as autoridades trabalhar na promoção do desenvolvimento, investir na formação no campo da ética, social, profissional. E quando converso com as pessoas cá procuro alargar as possibilidades do que pode ser esta ajuda. Geralmente as pessoas pensam num donativo em dinheiro, que acaba por ser mais fácil do que transportar bens para lá, mas podem contribuir de muitas outras maneiras. Podem associar-se a associações no terreno, a Ajuda à Igreja que Sofre (AIS), a Oikos, a Cáritas ou através da Sociedade Missionária da Boa Nova, a que eu pertenço, e até mesmo pensar em projetos de voluntariado, tanto indo para lá ou apoiar por exemplo jovens que venham estudar para cá. Temos alguns seminaristas de Cabo Delgado a estudar na diocese de Braga, seria algo que se poderia estender. Penso que se pode fazer muita coisa interessante, lá e aqui.

Precisam de voluntários de que áreas?

Todas. Queremos dar formação na área jurídica, economia, psicologia, que lá acaba por ser assegurada por religiosos. A única coisa que têm de preocupar-se é com a deslocação. Casa, comida, organizamos. Claro que temos uma capacidade limitada, mas podemos organizar e podem organizar-se projetos com as paróquias, de geminação e mesmo com grupos de não crentes.

Morreram mais de 1300 pessoas nos ataques terroristas. Há muitos jovens órfãos em Pemba?

Muitos, a maioria. Em Pemba há muitos jovens a viver com familiares ou com desconhecidos. Às vezes quando vejo dois jovens e quero entender os laços familiares e um me diz “é meu irmão” tenho de perguntar que tipo de irmão é, se é de sangue ou não. É cultural.

Enquanto conversamos aqui em Lisboa, um homem ao nosso lado critica a forma como a Igreja lida com os casos de pedofilia. Sente que a posição da Igreja neste flagelo pode comprometer o apoio a estas missões?

Preocupam-nos muito estes problemas e sabemos que nem sempre há clareza no tratamento dos mesmos. Claro que tem impacto na Igreja e em como as pessoas veem a Igreja. Em muitos locais aquilo que é o testemunho da Igreja é um contra testemunho, e como padre entendo que há situações que temos de mudar, assumir os nossos erros. Naturalmente que pode afetar, mas o que tenho sentido da parte das pessoas e dos benfeitores é sobretudo a preocupação de aquilo que dão chegue efetivamente ao seu destino.

Mas até nestes últimos dias já ouviu alguma vez um “não ajudo enquanto a Igreja não resolver este problema”?

Não ouvi mas reconheço que é algo que temos de fazer, não por interesse, mas porque é o que temos de fazer. Ao mesmo tempo, penso que é preciso dizer que a Igreja é feita de pessoas que erram, como em todas as dimensões. Não é dizê-lo para desculpar, mas temos de conseguir reabilitar as pessoas, seja quem for.

Quando o Papa Francisco esteve em Moçambique em 2019, falou-se muito de África ser o futuro da Igreja Católica, onde o número de católicos aumenta. O que sente de diferente em África enquanto padre?

É uma Igreja nascente. A gente nunca sabe medir a fé, mas é uma fé mais vivida, mais dinâmica, mais alegre. Tudo isto será cultural mas é muito visível. Se entrarmos num nível mais profundo, as dificuldades são iguais às nossas, como mudar comportamentos.

A sua fé mudou em África?

Não consigo muito bem explicar, mas parece que sabia ao que ia. Sempre cresci num ambiente religioso e a minha fé vem daí, vem do coração. Na minha formação como seminarista e padre já fui muito orientado para estes ambientes. Sofremos com o povo, mas isso reforça a nossa presença como sinal de esperança.

Mesmo perante as atrocidades?

Não coloco a questão se Deus é culpado pelo que se vive ali, encaro a minha presença como a de outros como forma de dar testemunho de Deus. Somos instrumentos de salvação nas mãos de Deus, não somos salvadores. E quando as pessoas perguntam, onde estava Deus quando o povos sofre? Está na nossa presença, naquilo que fazemos, na nossa solidariedade. Da mesma forma que é a nossa ação que traz o conflito, a injustiça, na ânsia de querer tudo à custa dos outros. O mal é uma pergunta que vai permanecer sempre – porquê? Acredito que há coisas que só conseguiremos responder na eternidade, mas há outras que conseguimos responder: o mal acontece quando eu quero ter tudo, quando eu passo indiferente a tudo, quando o poder se sobrepõe à partilha. E nisso o conflito em Moçambique é igual ao de todas as outras guerras.

Lá, que dúvidas de fé partilham consigo?

As pessoas não fazem essas perguntas de forma explícita, mas procuram respostas tal como aqui e a resposta tem de ser pelo testemunho. Dou o exemplo de uma senhora que nos ajudou no furacão Kenneth. Não era católica, fomo-la convidando para as celebrações e pediu para ser batizada. Não houve ali uma tentativa de convencer. Da mesma forma que às vezes as pessoas se afastam porque em algum momento do seu percurso algum erro foi cometido.

Tem planos para voltar para a Portugal?

No curto prazo não. Sou missionário da Boa Nova mas somos enviados pelas dioceses, no meu caso a diocese de Santarém. Já não foi uma vez nem duas vezes que o meu bispo daqui me tentou convencer a ficar cá. Não descarto, estou convencido que mais tarde ou mais cedo terá de acontecer, mas penso que continuo a ser necessário lá. Às vezes uma pessoa tem ideia de que é um trabalho para multidões, mas não é só. Claro que temos projetos que chegam a muita gente: já conseguimos reabilitar três escolinhas, o próprio espaço da Igreja está a ser reabilitado e isto são coisas concretas que fazemos. Mas o processo passa muito pelo encontro pessoal e mais do que ser um processo para converter o outro – e às vezes confunde-se converter com convencer –, acho que o nosso papel tem ser mais ajudar cada um a encontrar o seu caminho, seja ele qual for.

E aí questões como o diálogo entre religiões tornam-se naturais.

Sim, se vou para o diálogo com um muçulmano na perspetiva de que ele tem de ser cristão, já não é diálogo. Talvez lá tenha esta experiência de uma maneira mais forte, mas acho que mesmo na Europa talvez estejamos a viver um momento diferente na Igreja porque esquecemos esta dimensão do encontro pessoal, com o projeto de cada um. As coisas são como são, mas, como lhe dizia, ao domingo lá faço uma celebração com 900 pessoas e depois vou a uma comunidade, estou com as pessoas. No primeiro domingo que aqui estive fiz cinco celebrações, andei a correr de um lado para o outro e tem sido sistematicamente assim.

Há menos padres, menos tempo.

Sim. Certamente que durante a semana haverá espaço para mais encontros, mas sinto que o espaço para o diálogo aqui é mais difícil, seja por esta pressão, seja pelo ritmo de vida das próprias pessoas que é diferente. Mas no meu entender o caminho passa por mais diálogo.

Voltará uma pessoa diferente?

Completamente. África marca muito. O que noto mais é como alguns problemas do quotidiano que aqui são uma coisa de todo o tamanho e lá acabam por ser irrelevantes.

Por exemplo?

Por exemplo a nível da Saúde. Apesar das dificuldades, que também as há, temos um Serviço Nacional de Saúde extraordinário. Claro que sei que há listas de espera e coisas que correm mal, mas tive uma apendicite aguda em Pemba e o que me salvou foi conhecer um médico cubano que me enviou para Maputo, tive de fazer duas horas e meia de avião. E foi chegar e operar.

A maioria das pessoas com apendicite morre?

Quando recuperei e voltei a Pemba passado um mês e tal, o primeiro funeral que fiz foi uma pessoa que morreu com uma apendicite. A esperança de vida anda à volta de 50 anos, há uma enorme mortalidade materna. Há muita corrupção até na Saúde. Um dos hábitos que se instalou é que a mãe que vai para dar à luz tem de ter uma nota enrolada na capulana porque a parteira vai lá e se não tiver essa nota não aceita.

Nunca coloca as notas?

Não posso fazer isso, seria compactuar com esse sistema. E foi isso que nos levou a criar na paróquia uma equipa de saúde. Por exemplo, quando entra uma pessoa no hospital que vai precisar de sangue, aqui os hospitais socorrem-se de bancos de sangue mas lá as pessoas que vão dar sangue cobram valores elevados e isso está instituído até entre os técnicos. É muito comum uma pessoa pedir-me em meticais, 3 mil, 4 mil, que é muito dinheiro lá, para os ajudar nos hospitais. E o que digo é não vou dar o dinheiro, mas podemos ajudar. Criámos esta equipa e no ano passado fizemos uma campanha e juntámos cerca de 50 pessoas que podem doar sangue e quando é preciso ligamos aos dadores, que vão acompanhados por um dos nossos membros, certifica-se que o processo é correto e que o sangue vai para aquele doente.

Mas, no dia a dia, como faz? No trânsito, como dizia há pouco…

Faço o mesmo. Já me aconteceu ser parado e aperceber-me que estava para ser multado. O polícia queria que pagasse sem dar o recibo. O que disse foi: “Eu pago mas passe o recebido”. Geralmente o que acontece nessas situações é mandarem-nos embora.

Mas acredita que isso vai mudar alguma coisa?

É uma gota de água no meio do oceano, não se muda nada de um dia para o outro, mas é a diferença entre colaborar com o sistema ou não colaborar. E aqui é a mesma coisa: queixamo-nos de tanta coisa, o que fazemos para mudar?

Às vezes porque é fácil, mais barato… 

Isso. Seguramente as coisas não vão mudar rapidamente, se calhar não mudarão nem na geração a seguir à minha mas as sementes que podemos lançar se calhar um dia poderão fazer fruto. E ali já me considero feliz se no meio de uma multidão um jovem ou uma jovem entender que pode ser diferente. Não criamos ilusões, sabemos que naquele contexto ser diferente pode fazer com que a pessoa seja caluniada, ameaçada, posta de parte. Mas é a diferença entre continuar a colaborar ou fazer a diferença. E é assim que trabalho com os jovens e olhe que tenho a casa cheia de jovens, diariamente temos 20 jovens a trabalhar.

Imaginava-se ali?

Fiz o ensino profissional, tirei o curso de técnico de informática de gestão. Fui professor, programador, trabalhei no ensino oito anos. Aos 28 é que acabo por ir para o seminário, sou aquilo a que se chama uma vocação tardia. É sempre difícil explicar porquê. Tive um percurso sempre marcado pela fé e conheci a Sociedade Missionária da Boa Nova por intermédio de um amigo de infância, que hoje também é padre. Em criança, as pessoas diziam que eu teria jeito, que podia ser padre. Mas era duas coisas que eu sempre disse que nunca seria, padre e professor. Foi as duas coisas que fiz e foram acontecendo e sempre tive este fascínio por poder ir para África.

Tinha alguma ligação familiar?

O meu pai esteve na guerra colonial mas pouco me contou. A guerra deixou marcas muito fortes em muita gente e suponho que terá sido por isso, porque esteve num dos sítios mais fortes, também em Cabo Delgado. Sabia que ele tinha estado lá mas nunca houve uma partilha profunda sobre a experiência dele. Sempre disse que fosse para procurar uma vocação diferente, seria para ser missionário. Aqui também se pode fazer a diferença, mas em África sente-se talvez mais. Aquela ideia de me sentir mais útil.

Descobriu-se uma pessoa mais corajosa ou não gosta de o pôr nesses termos?

Penso-o mais como desafio. Não vou dizer que o primeiro ano não foi difícil, que foi, mas quando cheguei tive a sorte de ter outros na frente e a inteligência de tentar perceber como fazer as coisas. Um dos grandes erros que muitas vezes cometemos é levar projetos pré-formatados, não funciona. É preciso criar equipas e para ter equipas é preciso encontrar pessoas disponíveis.

Tem hoje uma ideia diferente do processo de descolonização e da responsabilidade portuguesa?

É uma opinião meramente pessoal, não sei o que poderia ter sido evitado, mas que deixou uma ferida profunda, deixou, e isso dificulta-nos ainda hoje o trabalho a vários níveis. Penso que alguma coisa teria sido diferente se tivéssemos tido mais abertura e inteligência na altura. Talvez não tivesse causado nem tanto sofrimento ao povo nativo nem aos que tiveram de sair de lá da forma violenta como saíram.

Mas sente uma necessidade de reparação?

Talvez, nunca pensei muito nisso formalmente, mas ao nível de solidariedade claramente. Foram cometidos erros, não há nada a fazer agora, mas precisamos de mais solidariedade entre povos.