Vírus e as migrações

Vírus e as migrações


Durante o século XX, e até à queda da União Soviética, os bacteriófagos eram muito estudados nesse país como alternativas a antibióticos.


Por onde andaram os nossos antepassados? Viemos todos de África? Somos o fruto de cruzamentos de diferentes povos? Todos nós já pensámos, com mais ou menos frequência, nestas questões. Curiosamente as respostas podem estar onde menos esperamos… em nós próprios e em algumas entidades que nos acompanham permanentemente e que fazem parte do nosso microbioma (conjunto de vírus e bactérias). Essas entidades são os bacteriófagos.

Os bacteriófagos – vírus que infetam e se replicam em bactérias – são as entidades mais comuns na biosfera. Estas entidades, com uma concentração de 1031 (por exemplo, a atual população mundial é de 7.9 x 109, de acordo com dados de outubro de 2021), encontram-se em maior quantidade que todos os outros organismos (incluindo bactérias) combinados entre si.

Durante o século XX, e até à queda da União Soviética, os bacteriófagos eram muito estudados nesse país como alternativas a antibióticos. Foram propostos como uma possível terapia contra as bactérias resistentes a antibióticos. Esta investigação permaneceu esquecida até aos últimos anos, tendo ressurgido novamente devido aos graves problemas atuais de resistências a antibióticos. Nas últimas décadas, os bacteriófagos têm sido também propostos como potenciais indicadores de contaminação fecal em águas e como indicadores dos níveis de tratamento em Estações de Tratamento de Águas, fazendo parte da Nova Diretiva da Água destinada ao Consumo Humano (Diretiva (EU) 2020/2184).

Estas entidades não param, no entanto, de nos surpreender com novas aplicações: estudos recentes sugerem que o conjunto de vírus (viroma) do trato gastrointestinal humano é bastante estável quando comparado com outros ambientes, sendo que a dinâmica de interação bacteriófago-hospedeiro se reflete no código genético do bacteriófago.

O bacteriófago crAssphage, de cross-assembly bacteriophage, foi descoberto em 2014 através de análise computacional do metagenoma fecal humano. Um estudo recente focou-se na investigação da origem, evolução e epidemiologia de crAssphage. Neste estudo foram analisadas sequências de 67 países em seis continentes (34% dos países do mundo), bem como amostras de primatas do Novo e do Velho Mundo. O estudo demonstrou que existe uma completa co-linearidade dos genomas de crAssphage nos primatas do Novo e do Velho Mundo, sugerindo que a associação deste bacteriófago com os primatas já poderá ter milhões de anos. Os resultados do estudo a nível mundial demonstraram que, como seria de esperar, as sequências do mesmo país, localização e data de colheita são mais fortemente agrupadas. Existem, no entanto, algumas surpresas: uma estirpe de crAssphage foi encontrada disseminada mundialmente, em países tão diversos como a Dinamarca, França, Alemanha, Israel, Itália, Japão e Estados Unidos, mostrando o dinamismo populacional das últimas dezenas de anos, em que as fronteiras são facilmente cruzadas e em que todos viajamos através do globo, quer em negócios como em lazer. Os resultados apresentados neste estudo demonstraram ainda haver uma forte ligação entre crAssphage detetados em Portugal e crAssphage detetados em África, no Centro da Europa, Hong Kong, China e Oeste da Califórnia, uma indicação das migrações que ocorreram ao longo dos tempos e um reflexo da nossa história mais ou menos recente.

Estes bacteriófagos que também são encontrados em primatas, evoluíram connosco desde há milhões de anos, tendo, portanto, potencialmente acompanhado a evolução da espécie humana.

Estes estudos permitem estabelecer relações populacionais e padrões migratórios, podendo ser possível perceber as linhas evolutivas do ser humano, tudo através de um microrganismo que nos acompanha silenciosamente há milhares de anos. Estes nossos amigos silenciosos que levamos connosco possuem informações inestimáveis sobre os nossos hábitos, e a nossa história individual e comunitária.

Investigadores do Laboratório de Análises do Instituto Superior Técnico