“Choose life…”, é o início do monólogo que todos conhecemos de Trainspotting, o icónico filme, lançado em 1996, inspirado pelo livro com o mesmo nome, editado três anos antes, mas será que conhecemos o seu autor? Irvine Welsh, escocês de gema, encantou gerações com livros como Filth (1998), Ecstasy (1996), Porno (2002) ou The Acid House (1994), onde contava aventuras sobre a vida dos jovens nas ruas de Edimburgo, refletindo sobre o seu estilo de vida niilista num país afetado por uma depressão económica e como as drogas eram usadas como um escape e acabavam por assumir o controlo das suas existências. Falámos com o escritor, não devido aos seus trabalhos na área da literatura ou do cinema, mas no papel de professor. Sim, o escritor que uma vez imaginou “a pior sanita da Escócia” agora vai ensinar os “estudantes” que se inscreveram na sua Masterclass, que vai decorrer no festival de cinema Fest, em Espinho, que começou no dia 4 de outubro e irá durar até 11 de outubro. Esta aula, que vai decorrer no dia 9 de outubro, às 15h30, pode ser a oportunidade de perceber como é que um dos escritores britânicos mais conceituados das últimas décadas consegue pôr as suas ideias por escrito… Ou não. Como o próprio admite, ele é um ‘sacana preguiçoso’.
As suas histórias causam um forte impacto devido ao seu realismo, exacerbado pela ação se passar nas ruas da Escócia, portanto, gostava de saber onde é que você traça um limite entre a realidade e a ficção nos seus trabalhos?
Esse é um exercício que não costuma acontecer. Simplesmente escreves as histórias sem saber muito bem de onde é que elas estão a vir. Por vezes, és influenciado por acontecimentos verídicos, mas outras vezes é puramente a tua imaginação. Pessoalmente, não gosto de expor pessoas reais nos meus livros. Se existir um caso em que alguém diga algo que considere interessante, em vez de usar literalmente aquilo que a pessoa disse, tento adaptar para o texto. Vou usar apenas a influência dessa pessoa, mas não deixo que seja algo de causa e efeito.
Alguma vez teve problemas pessoais por uma pessoa pensar estar inserida num dos seus trabalhos?
Todos os meus amigos pensam que estão inseridos nos meus trabalhos. Às vezes ficam ofendidos e, por vezes, até ficam mais ofendidos se não estiverem inseridos nos livros. As pessoas são muito egoístas e narcisistas e pensam sempre que estamos a falar sobre eles, quando nem sempre é o caso. Mas nunca tive grandes problemas, nunca fui banido de um ambiente sobre o qual tenha escrito, por exemplo. Já os meus livros não posso dizer o mesmo, foram banidos em alguns locais de Inglaterra, como em Southampton, onde foram retirados das prateleiras. Se não estou em erro, também foram banidos na Rússia e na Grécia, mas geralmente isso não é algo que aconteça.
Quando o imagino a escrever, imagino-o a dissecar todos os locais e experiências que já viveu. Com a pandemia e a obrigatoriedade de estar confinado dentro de casa, isso não impactou negativamente a sua escrita, uma vez que estava impossibilitado de ter estes encontros?
De todo. Foi uma experiência ótima. Foi das melhores coisas que me aconteceram. Tinha tanto trabalho para fazer em que precisava de me sentar e colocar em prática. Quando és um escritor inventas todo o tipo de desculpas para não trabalhar. Vais à rua, encontras-te com os teus amigos e acabas por não ser produtivo. Ter tido oportunidade para trabalhar um bocado mais e começar a trabalhar em projetos que tinha parados foi muito bom.
Apesar de ter gostado de estar em casa, não sentiu falta desse contacto pessoal com a realidade que costuma colocar no papel?
Não, foi bom livrar-me de todas as pessoas. Claro que senti falta da minha família e amigos, mas foi bom poder concentrar-me puramente em escrever. A minha namorada mora na mesma rua que eu, por isso não tivemos problemas em encontrar-nos. Se tivesse que voltar a confinar isso não me ia incomodar porque ia continuar a adiantar trabalho.
Abordando agora a Masterclass que vai dar no festival Fest, em Espinho, gostava que explicasse um pouco o que é que vai ensinar e falar nessa aula.
A ideia do termo Masterclass é algo que me mete alguma confusão, parece que vai estar um guerreiro Jedi em cima de um púlpito a ensinar truques sobre a força. É muito difícil dar uma aula sobre cinema porque é um processo muito colaborativo. Certas pessoas no cinema, especialmente os realizadores, são exaltados como grandes autores, quando, no entanto, todo o processo de realizar um filme surge de uma combinação de diferentes talentos de diferentes pessoas e de um processo bastante industrializado. É muito difícil para uma pessoa oferecer a sua própria visão, quer seja um realizador ou o argumentista, e todas as relações entre estas pessoas significa que vão existir burocracias diferentes. Todos os filmes onde trabalhei foram processos diferentes, porque colaborei com pessoas diferentes, portanto, é um jogo interessante onde tentamos fazer passar as nossas ideias.
Então vai ensinar como lidar com esse processo cansativo e confuso?
Existe a crença de que há uma espécie de plano que é moldado por duas ou três pessoas, mas não é assim que as coisas vão operando. Tu escreves o argumento, mas depois surgem os produtores que analisam o texto, oferecem notas e pedem para fazeres algumas alterações. Depois surge um realizador que vai pegar no teu trabalho, filmá-lo e colocar o seu próprio carimbo e identidade nele. E, claro, também existem os atores, que se guiam pelo texto, mas interpretam-no à sua maneira e com os seus maneirismos, que podem nem ser aquilo que o realizador pretendia. Por fim, existe o editor, que de certa forma assume o papel de realizador, e começa a cortar e a juntar as várias partes do filme. Portanto, a ideia de que uma pessoa consiga fazer a sua visão destacar-se e triunfar perante todas estas experiências é um dos principais temas desta aula.
Para além de argumentista, você já desempenhou outras funções, como a de produtor. Irá também falar sobre essas experiências?
Todas as funções que tive em filmes foram sempre diferentes. Já trabalhei como produtor-executivo, tendo de falar com financiadores e arranjar dinheiro para produzir o filme, mas noutras ocasiões era apenas um “rapaz do chá” glorificado e apenas tinha o título pomposo e recebia um dinheiro extra para estar calado e dizer que estava tudo bem com o projeto.
E em termos de escrita, não vai revelar os segredos jedi para o sucesso aos seus alunos?
Não existe propriamente nenhum segredo. Vou ser franco e admitir que o único conselho que tenho para oferecer às pessoas é que se sentem e comecem a escrever. Não existe nenhum tipo de atalhos senão esmagar um teclado até sair um trabalho do qual se sintam orgulhosos. É a triste realidade deste trabalho. Eu próprio procurei os meus atalhos. Sou um sacana preguiçoso, se existisse algum atalho eu já o teria encontrado.
Então diria que o seu processo de escrita tem muito pouco glamour?
Sim, sento-me, escrevo e vejo o que é que sai poucas horas depois.
Uma parte muito interessante dos seus trabalhos é a relação com a música, costuma ouvir discos enquanto escreve?
Regra geral, sim, pelo menos quando escrevo os primeiros esboços do trabalho. Quando já estou no processo de edição, costuma ser um processo mais silencioso, porque estou a tentar juntar vários textos e a tentar que façam sentido. No primeiro rascunho do trabalho procuro inserir o máximo de informação e sensações possíveis.
Existe algum tipo de música que prefira ouvir enquanto escreve?
Honestamente, não tenho grande preferência. Gosto de ouvir música com a qual não estou muito familiarizado ou que, normalmente, não fosse ouvir, para que não seja diretamente influenciado por ela.
Já explicou que gostou de estar em casa durante a pandemia, mas, agora que as restrições estão a ser levantadas e com toda a loucura que vai surgir do regresso à “normalidade”, acha que este ambiente pode servir como inspiração para um novo livro?
Espero que sim. É muito bom poder voltar a envolver-me com o ambiente e as pessoas que costumam entrar nos meus livros.
Quando escreveu o Trainspotting, as pessoas que surgiam nesse livro eram de uma geração completamente diferente da atual. Sente que esse livro em particular podia ter sido escrito agora ou sobre a juventude atual?
Diria que sim. Estou a escrever um livro agora sobre miúdos mais novos que são obcecados com videojogos e tecnologias. É uma experiência muito diferente, não é algo que eu ou os meus contemporâneos tenham vivido, mas gosto de me observar e analisar os seus comportamentos e perceber como os tempos mudaram.
Não tem medo que, ao escrever sobre uma geração mais jovem, possa não perceber os seus comportamentos e oferecer uma visão errada da realidade?
Existe essa possibilidade, posso ser mal compreendido, mas acho que os jovens também não se compreendem uns aos outros. Hoje em dia, já ninguém se compreende. Esta situação é um daqueles casos em que eu tento simplesmente trazer para cima da mesa uma opinião diferente. Claro que existem pessoas mais qualificadas do que eu para escrever sobre este assunto, mas não vejo ninguém interessado a chegar-se à frente. Não vejo nenhum livro interessante ou brilhante de jovens escritores que me deixe surpreendido e é algo que devia acontecer.
Então tem que ser você próprio a escrever sobre a juventude?
Sim, vou ter que mergulhar na minha juventude outra vez. Tem sido um processo divertido. Existem muitos jovens na minha família e costumo perguntar-lhes: ‘O que é que vocês fazem? Estão sempre enfiados nos computadores, o que é que estão aí a fazer?’ Claro que não gostam e mandam-me só ir dar uma curva.