A condenação de R. Kelly, o monstro que cantava para ninguém acreditar

A condenação de R. Kelly, o monstro que cantava para ninguém acreditar


Depois de décadas de alegações de abusos sexuais com contornos escabrosos cometidos pela estrela de R&B contra menores de idade, Kelly foi considerado culpado de estar à frente de uma rede de crime organizado e tráfico sexual.


O julgamento que na segunda-feira se concluiu em Nova Iorque, condenando o popular cantor de R&B por crime organizado e tráfico sexual foi um longo braço-de-ferro em que se provou a enorme dificuldade que a justiça tem para pôr termo à impunidade de que gozam, nos nossos dias, as celebridades. Depois de um quarto de século em que se foram sucedendo as alegações de várias mulheres de que tinham sido vítimas de abusos sexuais por parte do cantor que tem hoje 54 anos e que foi em tempos um dos maiores nomes da música pop, foram precisas seis semanas e nove horas de deliberação do júri para que o Tribunal Federal do Distrito Leste de Nova Iorque desse como provadas todas as nove acusações contra R. Kelly por crimes de crime organizado, suborno, coerção e transporte de mulheres e raparigas menores para envolvimento em atividades sexuais ilegais, nos EUA, ao longo de duas décadas. O cantor que dominou as tabelas de vendas na décade de 1990 com êxitos como “I Believe I Can Fly” deverá passar o resto da vida na prisão.

“Robert Sylvester Kelly serviu-se da sua fama, popularidade e de uma rede de pessoas que tinha ao seu dispor para atrair, cercar e explorar raparigas, rapazes e jovens mulheres para obter gratificação sexual”, disse a procuradora Elizabeth Geddes ao júri nas suas alegações finais, na passada quarta-feira. “Ele criou um enredo com base em mentiras e manipulação, ameaças e abusos físicos para dominar as suas vítimas. Usou a sua fortuna e a sua celebridade para que os seus crimes fossem ocultados estando à vista de todos.”

O artista de R&B multiplatina foi descrito como um predador que soube arquitectar uma complexa rede infligindo todo o tipo de traumas nas vidas daqueles que viviam na sua órbita ao longo de décadas, mas a procuradora vincou que isto só foi possível porque Kelly foi auxiliado por um vasto elenco de personagens que “serviram como facilitadores da sua conduta criminosa”. Além das acusações de extorsão, o Ministério Público serviu-se de uma lei (Mann Act) que agrava particularmente a moldura dos crimes de tráfico sexual se este ocorrerem entre diferentes estados, acusando o músico de oito violações. A estratégia dos procuradores levantou alguma perplexidade, considerando-se que a acusação de extorsão de acordo com uma moldura prevista para pôr cobro a organizações mafiosas era uma abordagem invulgar e algo precária, mas havia já sido útil num processo recente, quando, em outubro passado, Keith Raniere foi condenado a 120 anos de prisão por liderar uma espécie de culto chamado Nxivm, no qual um harém de “escravos” sexuais haviam marcados com as suas iniciais na pélvis e coagidos a ter sexo com ele. 

Enquanto o veredicto era lido, e sabendo que enfrenta uma pena que pode ir dos dez anos a prisão perpétua, Kelly manteve-se imóvel e inexpressivo na sala de audiências, vestindo um fato azul, por trás de óculos e com o rosto ocultado por uma máscara. O julgamento que assim chegava ao fim é tido como um teste decisivo da inclusividade do movimento #MeToo, que tem encorajado as vítimas de abusos sexuais a denunciarem aqueles que, devido à sua influência e poder, gozam de uma espécie de imunidade face a estes crimes cuja prova é sempre difícil. Esta foi a primeira vez na chamada era MeToo em que a larga maioria dos acusadores num julgamento eram mulheres negras.
Oronike Odeleye, co-fundadora da campanha #MuteRKelly, que foi bem-sucedida no seu esforço para ver o repertório musical de Kelly deixar de tocar nas rádios e nos espaços públicos, disse que a condenação foi o culminar de um esforço para que um coro cada vez maior de vozes fosse finalmente ouvido. “Este é o ponto culminante de um movimento em que tantas mulheres ao longo de tanto tempo fizeram de tudo para que as suas vozes fossem ouvidas. Nunca tivemos verdadeira propriedade sobre os nossos corpos. Mas estamos num momento em que as mulheres negras já não aceitam que esse seja o preço de se ser negra e mulher na América.”

Durante estas seis semanas de julgamento, foi ficando cada vez mais clara a diferença face ao anterior processo criminal que Kelly enfrentou, em 2008, tendo os procuradores de Chicago apresentado uma gravação em que o músico foi filmado a ter relações sexuais e a urinar sobre uma adolescente menor de idade. Mas Kelly acabou absolvido das 14 acusações depois de a vítima se ter recusado a testemunhar em tribunal. Esse fracasso da justiça terá, no entanto, novos desenvolvimentos, com o músico a aguardar um novo julgamento por obstrução da justiça no Illinois, com os procuradores a alegarem que ele subornou uma das vítimas e os seus pais para que estes prestassem falso testemunho em tribunal.

Após ter sido absolvido, a carreira de R. Kelly continuou a florescer, vendendo mais de 75 milhões de álbuns em todo o mundo e mantendo colaborações com muitos outros grandes nomes da indústria musical, como Justin Bieber, Mariah Carrey ou Lady Gaga, que entretanto veio expressar o seu apoio a “quem quer que tenha sido vítima de abusos sexuais”. Foi só nos últimos anos, com o MeToo a ganhar cada vez mais força, que começaram a aparecer as primeiras fendas na armadura que protegia Kelly, e, assim, um número crescente de mulheres apoiadas pelas suas famílias estão agora a tomar as suas posições e prestar testemunho, com o aumento do escrutínio a resultar na série documental “Surviving R. Kelly” (2019), que foi para o ar na Netflix, e que conduziu à investigação federal que levou, por fim, à acusação, julgamento e condenação do músico. Depois disso, a imagem que Kelly cultivou de um sex symbol que através de poderosas letras e melodias contagiantes redefiniu o R&B já não colava.

No decorrer do julgamento, obrigados a contornar os detalhes do anterior caso, os procuradores não tiveram, no entanto, dificuldade para desmontar peça por peça o mito que o músico criara à sua volta, como alguém que, a partir de origens humildes, cresceu nos bairros depredados e violentos de Chicago e acabou por vender mais álbuns do que os U2 ou até Madonna e os Rolling Stones. Todo este sucesso, permitiu-lhe dirigir os holofotes enquanto, nas sombras e muitas vezes nos bastidores dos seus concertos, Robert Sylvester Kelly capturava os seus jovens fans, manipulando-os com a promessa de ajudá-los nas suas carreiras musicais.

Foram ouvidas ao todo 45 testemunhas, embora a maioria destas tenha apenas ajudado a evidenciar a teia de perversão e abusos que o músico foi urdindo com a ajuda daqueles que estavam na sua folha de pagamentos. As acusações relacionavam-se com eventos que envolviam apenas seis mulheres, tendo cinco delas testemunhado. A sexta era a cantora Aaliyah, que morreu com 22 anos num acidente de avião em 2001. O casamento de Kelly com Aaliyah, em 1994, quando ela tinha 15 anos e ele 27, foi uma das primeiras revelações que permitiu levantar o véu sobre a complexa urdidura que permitiu a Kelly manter relações com raparigas menores de idade ao longo de décadas. Foi a acusação de extorsão o que permitiu aos procuradores terem margem de manobra para trazer à atenção do júri factos ocorridos há muito tempo, incluindo os detalhes sobre a relação com Aaliyah. E foi um antigo tour manager de Kelly quem confirmou os rumores de que este subornou um funcionário público para conseguir uma identificação falsa para Aaliyah para que o matrimónio pudesse ser celebrado. E a pressa de Kelly em casar-se prendia-se com os seus receios de que ela estivesse grávida de um filho seu e que ele pudesse vir a ser processado por violação de menores.

Kelly abdicou do direito de testemunhar em sua defesa, o que daria aos procuradores a oportunidade de o confrontarem com factos que poderiam levá-lo a encharcar ainda mais os lençóis. Quanto à defesa, a estratégia da equipa do músico passou por descredibilizar os seus acusadores, pintando-os como um bando de oportunistas, mentirosos e fans obcecados que estavam a agir por ressentimento, isto depois de terem mantido relações sexuais de forma consensual. Os advogados tentaram depois conquistar o júri mostrando que Kelly sempre foi um parceiro altruísta e romântica que tratava as mulheres à sua volta como membros da sua família, celebrando-as e permitindo que gozassem do seu luxuriante estilo de vida. 

Enquanto Deveraux L. Cannick, advogado de Kelly, defendia que os testemunhos ouvidos ali não passavam de obras de ficção e invocou o exemplo de Martin Luther King, para dizer que se os jurados absolvessem o seu cliente estariam a dar provas do tipo de coragem que definiu o movimento dos direitos civis, a acusação demonstrou que Kelly se serviu dos tradicionais preconceitos contra as mulheres ao longo de décadas para continuar a agir impunemente, e a procuradora Nadia Shihata sublinhou que “as vítimas de Kelly não eram nem groupies nem gold diggers (interesseiras), mas sim mulheres, irmãs e algumas também mães, e que as suas vozes merecem ser ouvidas”.

No fim, o júri não deixou margem para dúvidas quanto à sua posição, fazendo fé nas dezenas de mulheres que descreveram em tribunal um sistema repressivo a que foram submetidas enquanto coabitavam com Kelly ou algum dos seus associados, desde terem de se lhe referir como “Daddy” a estarem dependentes da sua autorização para poderem alimentar-se ou usar a casa de banho. Muitas testemunharam também que quando não obedeciam eram severamente punidas, desde serem espancadas até, no caso de uma das mulheres, ter sido forçada a espalhar fezes no rosto e a comê-las.