Lições Brasileiras


O que se passa hoje no Brasil deve fazer-nos refletir a todos: juízes, procuradores, políticos democratas e cidadãos, em geral.


Quando, a pedido de magistrados de um país europeu, me preparava para escrever um texto para uma intervenção sobre totalitarismo, estado de direito e estado de legalidade, deparei-me com as notícias vindas do Brasil e, segundo elas, o que parece ser um confronto institucional entre dois dos poderes do Estado, previstos e regulados na Constituição desse país.

Todos nos recordamos do papel que o sistema judicial e o Ministério Público brasileiros tiveram na alteração do ciclo político que ali aconteceu, não há muito tempo.

Vimos, também, como alguns dos protagonistas dos casos judiciais, que tiveram influência nessa mudança de ciclo, ascenderam subitamente a destacadas posições políticas e como, por fim, acabaram, ingloriamente, afastados e humilhados.

Mais tarde, o mesmo sistema judicial que, por via das suas decisões provisórias, contribuíra para renovação política operada, veio a anular muitas das decisões que estiveram na base da mudança verificada.

Os heróis de ontem caíram rapidamente do seu pedestal e alguns deles – mormente alguns que integram, agora, o Supremo Tribunal Federal – passaram, alegadamente, por via das voltas e reviravoltas da política, como forças de bloqueio do atual poder.

Todos temos a consciência de que nem os juízes, nem os procuradores de qualquer país, são anjos: todos eles têm sexo.

Todos temos, também, a consciência de que nenhum deles é indiferente ao que se passa na sociedade e, mesmo que não queiram voluntariamente interferir na situação política do país – o que acontece com a maioria esmagadora deles –, não podem deixar de refletir, de algum modo, nas decisões que tomam, a sua mundividência: é quase inevitável.

Por essa razão, o sistema judicial está organizado de modo a dividir funções entre o Ministério Público e os juízes, e as decisões destes são passíveis de recurso e de apreciação por outros juízes em tribunais colegiais e de categoria superior.

É nessa cisão de funções internas ao sistema e na pluralidade e complementaridade das intervenções dos diversos órgãos judiciais que residem as garantias processuais dos cidadãos envolvidos nas contendas da Justiça.

É, pois, na diversidade funcional e na hierarquia dos tribunais que reside, também, a segurança de que nenhuma decisão judicial pode ser absolutamente determinada pelas convicções de um único procurador, de um único juiz.

O recurso à hierarquia do Ministério Público e a intervenção dos tribunais superiores não se resume, em princípio, a um mero exame técnico-jurídico das decisões dos procuradores e tribunais de grau inferior: elas tendem a verificar, também, o sentido e o equilíbrio dos valores – constitucionais – nelas plasmados.

Acontece que, em muitos casos, o efeito público de tais decisões se produz de imediato e antes mesmo de ter lugar a sua apreciação e revisão final por instâncias hierárquicas e tribunais superiores.

Dado o modelo económico dominante e o tipo de casos e conflitos (públicos, privados e público-privados) hoje submetidos aos tribunais, existe uma crescente e irremediável tendência para sujeitar um grande número de decisões proferidas no decurso da vida político-administrativa da governação a um controlo judicial.

As sentenças dos tribunais, mesmo que provisórias – mas com efeitos ampliados, de imediato, pelos media –, não podem deixar de produzir, assim, impactos profundos no desenvolvimento dos processos políticos de qualquer país.

O risco da sua instrumentalização e, mais ainda, das suas consequências imediatas – mesmo que não finais – são, pois, enormes e, muitas vezes, incontroláveis.

Juízes e procuradores devem, pois, sem receios, mas com apurada isenção e responsabilidade democrática, estar, hoje mais do que nunca, conscientes da relevância social das decisões que tomam e das consequências que delas podem resultar para a ordem constitucional.

No balanço de forças – se desacompanhado de um amplo consenso e do apoio dos setores mais democráticos da sociedade – o poder judicial tende a medir-se mal com o poder efetivo dos outros órgãos e poderes constitucionais, que, além do mais, dispõem de ferramentas mais informais e muito mais executivas e rápidas de afirmação e intervenção social.

Por isso, a ideia do exercício do poder judicial, não como fator de equilíbrio e ponderação dos valores constitucionais, mas enquanto puro contrapoder – mesmo que movido por as mais louváveis intenções de rigor – pode, em circunstâncias extremas, conduzir, exatamente, a resultados não previstos nem desejados para a democracia.

Há, com efeito, quem ainda pense que o verdadeiro poder está na ponta das espingardas.

O que se passa hoje no Brasil deve, pois, fazer-nos refletir a todos: juízes, procuradores, políticos democratas e cidadãos, em geral.

É, sobretudo, na defesa ativa e permanente da ordem constitucional democrática e dos seus princípios e valores que o poder judicial pode ter um papel relevante na consciencialização e mobilização da cidadania, de forma a que esta possa prevenir processos de derrapagem para modelos autoritários.     

 

Lições Brasileiras


O que se passa hoje no Brasil deve fazer-nos refletir a todos: juízes, procuradores, políticos democratas e cidadãos, em geral.


Quando, a pedido de magistrados de um país europeu, me preparava para escrever um texto para uma intervenção sobre totalitarismo, estado de direito e estado de legalidade, deparei-me com as notícias vindas do Brasil e, segundo elas, o que parece ser um confronto institucional entre dois dos poderes do Estado, previstos e regulados na Constituição desse país.

Todos nos recordamos do papel que o sistema judicial e o Ministério Público brasileiros tiveram na alteração do ciclo político que ali aconteceu, não há muito tempo.

Vimos, também, como alguns dos protagonistas dos casos judiciais, que tiveram influência nessa mudança de ciclo, ascenderam subitamente a destacadas posições políticas e como, por fim, acabaram, ingloriamente, afastados e humilhados.

Mais tarde, o mesmo sistema judicial que, por via das suas decisões provisórias, contribuíra para renovação política operada, veio a anular muitas das decisões que estiveram na base da mudança verificada.

Os heróis de ontem caíram rapidamente do seu pedestal e alguns deles – mormente alguns que integram, agora, o Supremo Tribunal Federal – passaram, alegadamente, por via das voltas e reviravoltas da política, como forças de bloqueio do atual poder.

Todos temos a consciência de que nem os juízes, nem os procuradores de qualquer país, são anjos: todos eles têm sexo.

Todos temos, também, a consciência de que nenhum deles é indiferente ao que se passa na sociedade e, mesmo que não queiram voluntariamente interferir na situação política do país – o que acontece com a maioria esmagadora deles –, não podem deixar de refletir, de algum modo, nas decisões que tomam, a sua mundividência: é quase inevitável.

Por essa razão, o sistema judicial está organizado de modo a dividir funções entre o Ministério Público e os juízes, e as decisões destes são passíveis de recurso e de apreciação por outros juízes em tribunais colegiais e de categoria superior.

É nessa cisão de funções internas ao sistema e na pluralidade e complementaridade das intervenções dos diversos órgãos judiciais que residem as garantias processuais dos cidadãos envolvidos nas contendas da Justiça.

É, pois, na diversidade funcional e na hierarquia dos tribunais que reside, também, a segurança de que nenhuma decisão judicial pode ser absolutamente determinada pelas convicções de um único procurador, de um único juiz.

O recurso à hierarquia do Ministério Público e a intervenção dos tribunais superiores não se resume, em princípio, a um mero exame técnico-jurídico das decisões dos procuradores e tribunais de grau inferior: elas tendem a verificar, também, o sentido e o equilíbrio dos valores – constitucionais – nelas plasmados.

Acontece que, em muitos casos, o efeito público de tais decisões se produz de imediato e antes mesmo de ter lugar a sua apreciação e revisão final por instâncias hierárquicas e tribunais superiores.

Dado o modelo económico dominante e o tipo de casos e conflitos (públicos, privados e público-privados) hoje submetidos aos tribunais, existe uma crescente e irremediável tendência para sujeitar um grande número de decisões proferidas no decurso da vida político-administrativa da governação a um controlo judicial.

As sentenças dos tribunais, mesmo que provisórias – mas com efeitos ampliados, de imediato, pelos media –, não podem deixar de produzir, assim, impactos profundos no desenvolvimento dos processos políticos de qualquer país.

O risco da sua instrumentalização e, mais ainda, das suas consequências imediatas – mesmo que não finais – são, pois, enormes e, muitas vezes, incontroláveis.

Juízes e procuradores devem, pois, sem receios, mas com apurada isenção e responsabilidade democrática, estar, hoje mais do que nunca, conscientes da relevância social das decisões que tomam e das consequências que delas podem resultar para a ordem constitucional.

No balanço de forças – se desacompanhado de um amplo consenso e do apoio dos setores mais democráticos da sociedade – o poder judicial tende a medir-se mal com o poder efetivo dos outros órgãos e poderes constitucionais, que, além do mais, dispõem de ferramentas mais informais e muito mais executivas e rápidas de afirmação e intervenção social.

Por isso, a ideia do exercício do poder judicial, não como fator de equilíbrio e ponderação dos valores constitucionais, mas enquanto puro contrapoder – mesmo que movido por as mais louváveis intenções de rigor – pode, em circunstâncias extremas, conduzir, exatamente, a resultados não previstos nem desejados para a democracia.

Há, com efeito, quem ainda pense que o verdadeiro poder está na ponta das espingardas.

O que se passa hoje no Brasil deve, pois, fazer-nos refletir a todos: juízes, procuradores, políticos democratas e cidadãos, em geral.

É, sobretudo, na defesa ativa e permanente da ordem constitucional democrática e dos seus princípios e valores que o poder judicial pode ter um papel relevante na consciencialização e mobilização da cidadania, de forma a que esta possa prevenir processos de derrapagem para modelos autoritários.