Bart “o” Belga montou em Nice dois restaurantes de especialidades gastronómicas do país de Hergé e Franquin (que é também o de Brel, Magritte, Simenon, Yourcenar…), arredondando os proventos com um tráfico modesto de cannabis e um pouco de pó branco, quando calha.
Uma vez instalado, teve, porém, de lidar com as exigências da “Trindade”, organização mafiosa que pratica a extorsão, e todos os outros crimes de catálogo, liderada por um velho magnata cuja fortuna se fez alegadamente em torno das corridas de cavalos e apostas, um proxeneta rufia, destinatário de tráfico de carne branca oriundo do Leste, e um empreiteiro que evolui no mundo legal, corrompendo os agentes do Estado.
O aviso é feito com um assalto meio simulado a um dos restaurantes, perpetrado por três homens embuçados. Mas ninguém contava que um velho que por lá passara a comprar uma “mitraillette”, típica sanduíche belga, depois de agredido por um dos sicários, neutralizasse todos como se fossem meninos de escola. Trata-se de Vadim Koczinsky, o protagonista do álbum de hoje.
Quando os comunistas tomaram o poder em Varsóvia, o jovem Vadim fugiu e alistou-se na Legião Estrangeira, tornando-se atirador de elite. Chegada a idade da reforma e tendo enviuvado, Vadim acomoda-se num lar confortável, graças às poupanças, empregando o remanescente num seguro de vida para o neto, depois de a filha, casada com um indivíduo suspeitoso de traficâncias, ter sucumbido às drogas, algo por que Vadim responsabiliza o genro. Os dias passavam-se amargos mas tranquilos no lar, até que o idoso é notificado que a conta bancária está a zeros, por burla do gestor.
Obrigado a deixar a casa de repouso, vendo-se acolhido num albergue para sem-abrigo, ciente de que Sacha ficou sem o seguro de vida, acabará por aceitar a proposta de Bart van Coppens, que a tudo assistira no seu restaurante: “O Belga” não é tipo para deixar-se ficar, e vê no aposentado o homem que irá executar os chefes da “Trindade”. O velho aceita, com condições, e será ainda posto à prova antes de dar conta do trio de bandidos que domina a cidade. O pior são as malditas artrites, que lhe paralisam os dedos de quando em vez.
Monsieur Vadim é um herói inusitado, uma máquina de matar espondilítica, porém com consciência: não é assassino de inocentes, e tem um hábito que cumpre religiosamente, a telenovela diária, um pastelão intitulado As Conchas do Amor, o que provoca estupefação, tornando-o alvo de ironia. Como se vê, uma personagem cheia, posta numa situação que não imaginamos consentânea com utentes de lares e centros de dia.
O argumento, de Gihef e Didier Mertens, é cru: ajustes de contas com amputações sortidas, curros onde se encerram as jovens mulheres traficadas, forçadas à prostituição; mas não cede a um maniqueísmo fácil: a conversa fortuita de Vadim com um dos homens que no dia seguinte terá na mira é um dos vários bons momentos desta BD.
O desenho expressivo, rugoso e com um apurado sentido do movimento de Morgann Tanco, está à altura da escrita de Gihef e Mertens, sendo por sua vez servido na justa medida pela paleta experimentada de Cerise (o casal Cynthia Englebert e Gianluca Carboni).