Porque o fim dos tempos é cada minuto de cada dia, alguns dos melhores escritores contemporâneos livraram-se dos condicionalismos dos géneros literários, e, num mundo sufocante e frio, em que quem escreve muitas vezes se dá conta de que “a única coisa que ainda é sonora é ele próprio”, a dúvida vai tomando conta de tudo, estilhaçando o alinhamento tradicional do enredo, até a própria organização que a escrita produz se tornar o grande ponto de referência. Ora, com ela impõe-se a tarefa de trazer de volta a sensação e o gosto do tempo, os dias, e assim toma conta essa crónica que a todos o momento se debate para que algo fique de fora do processo geral de dissolução, a tudo isso que, hoje, nos sabe a burocracia e a tédio. Na falsidade que nos oferecem os nossos sentidos, resta-nos essa música que soa do cair de corpos infalivelmente desastrosos. “Será que inventámos o céu com o único fim de fazer cair os corpos?”, perguntou Jean-Luc Nancy. Sem grande fé em coisa nenhuma, resta-nos viver às apalpadelas no escuro, fazer da literatura essa religião que dispensa a fé. Antonio Tabucchi (1943-2012), esse “escritor português de expressão italiana”, como é lembrado afectivamente, reconheceu em tempos que as coisas fora do sítio exerciam sobre ele “uma atracção irresistível, quase como uma vocação, uma espécie de estigma pobre”. A sua religião era mais feita dessas lições que se retiram de pequenos equívocos sem importância, de certas funções geométricas que organizam os acasos, da sombra que o passado nos oferece como leitura, em que o vemos como em cenas de caça, sem nunca largar as suas presas.
Originalmente publicado em 1986, O Fio do Horizonte seduz-nos para o que seriam os restos de uma trama policial, tombada pela decomposição do cadáver, em que, em vez das moscas, restasse ao espírito do morto pervagar e assombrar-se a si mesmo com vagas impressões metafísicas. O método usado é o da postergação indefinida. E Tabucchi mostra-nos como, à medida que o tempo nos desfigura, vamos contestando essa lei que nos obriga a ser um, mas não para sermos mais, e sim menos. O desejo é o de se ser nenhum. E com ele vai dando de si o sentimento do nosso equilíbrio moral. Além de um consumado leitor de Pessoa, Tabucchi também estudou os surrealistas, e nesta breve novela aproveita-se de certas mutações, sombras que se lançam a partir de uma premissa algo nebulosa, para que a linha narrativa não se imponha de forma severa, antes prossiga num registo ocioso, exalando angústia e magia.
O seu tradutor para o francês e amigo, Bernard Comment contou num obituário que Tabucchi se definia de bom grado como “um roubador de histórias”, isto pela forma como a sua ficção se alimentava de bocados de frases que captava na rua, bocados de destinos também, essas impressões que nos dominam, detalhes ou gestos que geram a sua própria mecânica. Tinha dispersas por uma série de cadernos uma infinidade de anotações, nascendo as suas narrativas invariavelmente de longos períodos de exame, afinando a atenção, deixando-a surpreender-se pelo acaso. “No fundo, acreditava na sorte”, diz-nos Comment. “E a inspiração era nele da ordem da visitação: anjos, benéficos ou maléficos, vinham ter com ele para lhe entregar histórias.” Nesta novela, a certa altura o protagonista põe-se a pensar nisto mesmo, “na força com que os factos se reproduzem e em quanto de nós próprios vemos nos outros”. Este funcionário de uma morgue que busca obsessivamente a identidade de um cadáver, acaba por se dar conta que, naquela investigação de que se ocupa, há “um modo seu de cumprir-se: um modo diferente e aparentemente incongruente que no entanto seguia uma lógica implacável como uma geometria desconhecida”. É um corpo de um jovem de barba espessa e nariz afilado aquele que lhe aparece na morgue, e que, estando ali no gelo com ele, o provoca, intrigando-o a sensação de se tratarem dos restos mortais de alguém que não parece ter deixado rastro, um passado. Carlo Nobodi é o nome. Chegou já morto ao hospital na sequência de um assalto, não estando claro se fazia parte do grupo de assaltantes ou se foi apenas alguém que teve o azar de ser apanhado na troca de tiros com a polícia. A busca de Spino, o protagonista, leva-o a desenhar círculos no vazio, enquanto da breve vida do tal Nobodi não resta grande coisa – uma velha fotografia, um casaco que teria pertencido ao seu pai… “‘E tu?’, disse-lhe Spino, ‘quem és tu para ti? Sabes que se um dia quisesses sabê-lo tinhas de procurar à tua volta, reconstruir a tua identidade, rebuscar em gavetas velhas, recuperar testemunhos de outras pessoas, marcas espalhadas sabe-se lá por onde, perdidas? Está tudo às escuras, tem de se ir às apalpadelas’.”
Nesta novela, o cadáver vem dar sentido a esse peso que está contido no corpo de cada um de nós. Como sublinha Jean-Luc Nancy “o corpo é o facto de pesar”. E explica como, antes de tudo, o corpo já pesa em si mesmo: “desceu sobre si mesmo, sob a lei dessa gravidade própria que o impeliu até ao ponto em que se confunde com a sua carga. Ou seja, com a sua espessura de muro de prisão, com a sua massa de terra amontoada no túmulo, ou com o peso viscoso de espólio, e por fim, com o peso específico de água e osso – mas sempre, mas antes de mais, carregando a sua própria queda, caído de um qualquer éter, cavalo negro, cavalo do mal.”
Numa nota à margem, já no final da novela, o autor diz-nos que cabe na invenção do nome do seu protagonista, Spino, uma homenagem a Spinoza. E regista que este era sefardita “e, como muitos dos seus, trazia no olhar o fio do horizonte”, esse que é “um lugar geométrico, porque se desloca à medida que nos deslocamos”. E conclui, dizendo que desejaria que, por um sortilégio, “o meu personagem o tivesse alcançado, porque também ele o tinha no olhar”. E numa passagem a meio da novela, anota: “ei-lo de novo que vagueia em busca de nada, as paredes destas vielas parecem prometer-lhe um prémio que não consegue alcançar, como se constituíssem o percurso de uma espécie de jogo da glória cheio de casas vazias e de truques em que ele deambula esperando que o dado pare em breve num número que dê sentido a tudo”.
Mas então o que resta? Aquela cidade junto ao mar que lembra Génova, essa cidade como “um brinquedo de que é um alívio desabituar-se”, um mundo poroso que não se deixa deter, mas apenas acompanhar por um pedaço. Daí que nos vão surgindo nestas páginas inúmeras descrições cautelosas, “pequenos vãos escuros habitados por gatos, cancelas de pátios em que se vê um tanque, uma bicicleta enferrujada, sardinheiras e manjericos plantados em latas de atum”. Com as suas personagens deliberadamente triviais, neste relato Tabucchi indaga sobre a distância que separa os mortos dos vivos, lançando a sua malha e arrastando pormenores subtis, referências vagas, elípticas, carregando o texto de ironias, premonições e desilusões. Às vezes parece que estamos a ouvir chamadas cruzadas a altas horas, meditações de seres solitários que resvalam para intrigas algo frias, modos de entreter um pessimismo que gosta, contudo, de ser embalado num onirismo delirante e até, por vezes, consolador. Falando da obra do seu amigo, José Cardoso Pires falou da forma como nela há uma solidão que se prolonga em memória, vincando ainda a mágica serenidade desta escrita. “Para mim o que conta nas rotas literárias de Tabucchi é que ele, dispersando as suas personagens por horizontes universais, as concentrou em dimensão fechada como pequenos mundos em si mesmos que se alimentam de memória e distância. Daí o subtilíssimo fio de ironia que os marca, a sua ternura magoada, tantas vezes: eles são, acho eu, unidades latentes a pulsar na sua e na solidão do infinito.”
Tabucchi, por seu lado, disse que por vezes tinha a sensação de não fazer mais que pôr ordem naquilo que lhe era ditado pelo espanto. É notório um gosto de se embalar a si mesmo, frases empurradas por suspiros, cada oração limada e temperada, tudo aproveita a esse passar a limpo do sonho ao texto. “Se não se tiver a coragem de ir para além das aparências”, regista às tantas o protagonista desta novela, “nunca se vai entender coisa nenhuma, fica-se obrigado a jogar toda a vida sem saber porquê e mais nada”. Ficção da própria ficção, este universo rege-se mais por um discreto enlevo, a vida íntima de certas ruas, esse modo de fracturar a vida e as lembranças em personagens verticais ou esquivas, baças. A literatura como um eco que assume contornos mais firmes que aqueles em que se inspirou. Esta escrita empresta ao mundo espessura, uma elegância carregada de mágoa, aludindo vagamente ao fantasma que a persegue, tentando entretê-lo, arrastá-lo para um jogo. Como se alguém se tivesse esquecido de um disco a tocar na divisão do lado e, com a janela aberta, isso fosse o suficiente para dar corda a uma manhã inteira. A prosa é, assim, sobretudo, uma questão de cadência, um monólogo eternamente reatado, que não se limita a sorver o ar a haustos, mas toma das coisas essas impressões que já a vista parece recriar de tanto estar habituada às variações literárias. O que fica, apesar de toda a dolência e desamparo, é essa defesa do acaso que nos dá um tempo livre, o puro fluir que se desencadeia a partir do momento em que estamos aptos a deixar-nos levar, a reconhecer “a nossa impossibilidade de perceber os verdadeiros nexos”, deixando para trás “a grosseria e a arrogância com que unimos as coisas que nos circundam”. Só assim, só quando nos invade este cansaço imenso que arrasta também uma espécie de vergonha, só então nos dispomos verdadeiramente a existir num equilíbrio com as coisas em que a sua mera sucessão adquire essa subtil mecânica que nos faz sentir parte das boas histórias. Nem precisa de acontecer nada, basta sentir em cada minuto esse balanço próprio do fim dos tempos. “Quando a noite caiu ligou o rádio sem acender a luz e ficou a fumar na obscuridade olhando para as luzes do porto pela janela. Deixou correr o tempo, agrada-lhe ouvir o rádio às escuras, deu-lhe sempre uma sensação de estar longe. Depois o campanário de San Donato bateu as onze e ele despertou. Lavou a loiça e arrumou a cozinha à luz de uma vela porque temia a violência da luz eléctrica. Saiu eram onze e meia, fechou a porta à chave e deixou a chave debaixo do vaso de flores do patamar (…)”