De tempos a tempos, do outro lado da vida, por uma nesga que fica aberta junto dos sepulcros, ergue-se uma sombra que causa algum espanto entre os vivos. Numa arte que vive de enterrar o sonho na realidade, é natural que se espere que haja ainda revelações e descobertas, livros perdidos, queimados, roubados, deitados fora, que, por algum acaso, possam regressar. E a edição tornou-se perita em farejar espólios de autores desaparecidos, porque em grande medida os leitores precisam cada vez mais ser arrancados ao seu estupor e sacudidos com grandes promessas, a de elos perdidos, a de obras terríveis que se recusaram a juntar-se às outras no esquecimento que vai roendo mesmo as mais célebres, quando as modas modas passam e as emoções se atenuam. (“Ao cabo de uns anos de esquecimento a obra de imaginação não passa de uma festa fora de moda…”, escreve Céline em “Morte a Crédito”). Ainda em março deste ano se noticiava o aparecimento de 75 folhas escritas pela mão de Marcel Proust as quais se julgavam perdidas, uns inéditos do período em que o autor esboçava a sua obra-prima, “Em Busca do Tempo Perdido”, o que levou a Gallimard a anunciar que os leitores poderiam enfim deitar mãos ao “graal proustiano”. Mas desta vez não se trata de mais outra sombra, não apenas o eco de um desses gritos que se extraviaram, nesta viagem que é feita duramente e com grande esforço, pela escrita, no Inverno e na Noite. Se procuramos uma passagem no Céu onde nada brilha, como diz a canção das sentinelas suíças, que surge na epígrafe de “Viagem ao Fim da Noite”, as seis mil páginas manuscritas de Louis-Ferdinand Céline, roubadas há 77 anos, e que correspondem à época mais produtiva do autor (1919-1932), são, de facto, um desses tesouros literários com os quais já ninguém se atreve a sonhar. Por outro lado, como registava com a sua mortal ironia Jules Renard no seu diário, a posteridade deve ser olhada com as maiores suspeitas. Afinal, “porque é que as pessoas hão-de ser menos estúpidas amanhã do que são hoje?” De resto, nenhum tempo como este é mais ingrato para com a natureza própria da arte e das suas nobres danças, em nenhum baixaram tanto “as temperaturas a que o espírito se aquece”, e um autor que nunca fez outra coisa senão atacar e ridicularizar a vasta impostura com que se anima o ambiente de conservatório cultural que tomou conta da literatura, há muito que é encarado com uma mistura de desdém e perturbação. Entre as coisas da literatura só resiste já um entusiasmo miserável. A ela, como notou Jean Dubuffet, já só são pedidos raciocínios sobre temas tão primários, tão chatos, tão ociosos, que os literatos parecem ser essas figuras bastante ridículas que, em troca de umas côdeas de atenção, se sujeitam a vir debater sociologia e civismo. A Céline isto trazia, apesar de tudo, uma sensação consoladora, era como ser absolvido, mesmo se dedicara à literatura as suas horas mais robustas, mais violentas e também animadas, reconhecer que na vida actual esta já nada significava era uma forma de enterrar tudo do mesmo modo, as coisas melhores com as piores.
Com estas décadas em cima, no entanto, é fácil notar que são sempre em maior número as notícias sobre inéditos, breves ficções narrativas à volta de algo que se julgava perdido e que terá um valor inestimável, tudo o que sirva para animar as hostes com a perspectiva de escavações arqueológicas, segredos arrancados da cripta, rumores de provocar calafrios, papéis com o pendor dos ossários… mas nada mais que isso. Não se conta que alguma coisa de mais profundo no nosso entendimento venha a alterar-se com base nesses textos. Mesmo em França, um país literário. “Prestígio das Letras, das Ciências, das Artes… Isso não existe”, garantia Céline numa das últimas entrevistas que deu, em junho de 1958, a Georges Cazal. “Só existe o prestígio da guerra que se acaba de ganhar, e da que esperamos vir a ganhar. O que conta é a força. A minha conclusão desiludida… há que refundir completamente a moralidade das pessoas.” Por agora, e até os textos virem a lume, faz-se por aí uma grande barulheira, mas, depois, quando já é possível lê-los, calam-se todos. Já não interessa mergulhar nas coisas a fundo, especialmente se dão trabalho. Assim, continuam para aí a maioria das obras que escreveu Céline, ignoradas “as suas demiúrgicas epopeias”, como as classificou Jean Dubuffet. Por isso todo o alarido que se gerou por uns milhares de páginas inéditas terem sido descobertas não deixa de ter alguma piada. Mas se Céline não convinha antes, muito menos convirá agora. Esse que nunca nos serviu uma literatura de repouso, que desancava forte e feio na turba dos puristas que trocam o ócio por umas indignadas coceiras, permitindo-se ferozes recitações em defesa da moral.
O que há agora é muita pressa em vir publicar os inéditos, uma vez que dentro de dez anos a obra cai em domínio público e, então, já será bem mais difícil tirar algum lucro com a descoberta. Nos últimos 15 anos, este acervo esteve nas mãos de um antigo crítico teatral e jornalista do “Libération”, Jean-Pierre Thibaudat, que diz que os manuscritos lhe foram confiados por um leitor seu, que, sendo também de esquerdas, além do desejo de permanecer anónimo, a única coisa que exigiu foi que o jornalista não revelasse os manuscritos antes da morte da viúva de Céline, Lucette Destouches (e esta sobreviveu-lhe quase seis décadas, só morrendo em 2019, aos 107 anos), e isto porque o horrorizava a perspectiva de que ela viesse a lucrar com os papéis. Aqui, é preciso fazer um parêntesis, e explicar que, entre os milhares de páginas que este autor escreveu se encontram algumas centenas verdadeiramente odiosas, os célebres panfletos anti-semitas que publicou entre 1937 e 1941, e se o próprio viria a reconhecer muitos anos mais tarde que se arrependia de os ter escrito, como George Steiner reconheceu na crítica que publicou nas páginas da New Yorker à biografia de Céline da autoria de Frederic Vitroux, “é possível entender os desabafos antissemíticos de Céline como paródicos, como uma espécie de brincadeira que se descontrolou”. Se é indesmentível que ressoa em longos panfletos como “Bagatelles pour un massacre”, “Les Beaux Drapes” e “L’École des cadavres” se intima a civilização ocidental a eliminar todos os judeus e a erradicar da humanidade até a sombra deste povo, Steiner não deixa de ir para além daquilo que entende ser “uma parvoíce perturbada, a travessura de uma criança vândala”, e nota como em Céline “vemos o ódio a funcionar como manancial da imaginação e da eloquência desenfreada”, admitindo que, nesta ou naquela passagem, “deparamo-nos com momentos de genialidade estilística e de exaltação verbal que nos atingem como fragmentos bruscos de luz vindos de uma latrina”. E aqui, num belíssimo aparte, lembra como Coleridge mencionou a breve cintilação da luz das estrelas no seu bacio cheio até cima. Seja como for, o certo é que no resumo que se propõe para a consciência geral, essa que se junta alegremente ao coro repetindo “as mais estafadas e tolas cançonetas da sociologia e do patriotismo”, a Vida acaba por ter de se contentar com nove linhas de crime e uma de tédio, como notou Céline. Ele sabia bem como se tornou difícil refazer a vida, ganhar de novo clientela, aqui ou em qualquer outro sítio. “De tantas coisas nos hão-de-acusar (a bem dizer, de quase tudo), uma após outra, que nesta balbúrdia de invectivas e afrontas em nome disto e daquilo, tudo o que fizemos ou vamos fazer acaba por ir dar ao mesmo. A digestão do público faz-se à custa de acusações (…) A inércia é o sono da raça. Assim, tem der ser, sem dúvida. Quem a perturba terá que as ouvir boas. Qualquer revolta é mais biológica do que trágica, mais entediante do que inquietante.”
Não é de esperar, por isso, que nos tempos mais próximos as percepções se alterem, e a obra de um dos maiores escritores franceses do século XX mereça a absolvição, acabando por se lhe reconhecer a sua enormíssima força. E lembre-se como Philip Roth, também ele judeu, às tantas admitiu: “Céline é o meu Proust!” Explicando que, mesmo que o seu anti-semitismo tenha feito dele uma figura intolerável e abjecta, ao lê-lo se sentia obrigado a suspender a sua consciência enquanto judeu, e que conseguia fazê-lo porque esse ódio aos judeus não se encontra no coração dos seus livros. Para Roth, Céline sempre foi um libertador. Com um ouvido capaz de apanhar aquelas vibrações e variações que afectam tudo, reviram a terra, há na sua escrita um génio verbal nutrido da vulgaridade toda do mundo, desses detritos de uma humanidade menor mas que grita, que na sua agonia difusa encontra ainda embalo, inspirando-lhe as suas fórmulas-choque e imagens provocatórias, um pensamento que sentiu mais a necessidade de ser vigoroso do que claro… “Aquilo fala-nos, então, com uma estranha linguagem de esfolado vivo.” E ele que, depois de ter sido forçado a abandonar o liceu para ajudar no sustento da família, ele que, ferido na Primeira Guerra, numa arriscada missão para a qual se voluntariou, saiu dela inválido a 75%, mas conseguiu superar o lado mais degradante dessas sovas físicas com que a maioria paga a sobrevivência neste mundo, atirando-se aos estudos, determinado a tornar-se médico, ele que foi obstetra por uns tempos, e começou depois a trabalhar nos dispensários de Clichy, Bezons, Sartouville onde atendeu os mais pobres. E foi ali, entre velhos e putas, gente muito maltratada pela vida, os vendedores ambulantes e os rapazolas desempregados, os donos de lojecas sombrias e antigas, ali testemunhou o que essa lepra que vai invadindo paredes e casas e que corrói até a alma, uma decrepitude taciturna e inexorável como uma condenação, que descreve nas páginas do romance “Morte a Crédito”. Mas esse período que tanto o marcou foi-lhe útil enquanto escritor. “Eu o meu fraco é gostar de ouvir boas histórias”, admite. Num outro texto, anotava: “esquisitas coisas nós aprendemos sobre as almas”. E ainda lembrava que “se a nossa música dá para o trágico, lá tem as suas razões.”
Foi também por esses dias, que Céline mais foi beber no ‘argot’ (calão) da sua época, inventando aquele seu estilo irrascível, aquela onda de ressaltos e ecos que abre passagem seguindo os abalos de um pensamento cru e quente, e criou assim “essa língua completamente artificial, ou seja inteiramente literária”, no entender de Julien Gracq. E para Céline o argot era um repositório de todo o ódio sentido na carne por uma gente que só pode cuspir sobre a sua própria sombra… “Não, o argot não se faz com um glossário mas com imagens saídas do ódio, o ódio é que faz o argot. O argot é feito para exprimir os verdadeiros sentimentos da miséria (…) O argot é feito para o operário poder dizer ao patrão que o detesta: vives bem e eu vivo mal, exploras e andas num grande carro, vou dar cabo de ti…”
Assim, antes de nos juntarmos a esse coro radiante com o aparecimento das tantas páginas inéditas, convém que se tenha alguma noção do que estas representam, porque Céline não foi mais um desses que se alistam para vir engordar o esquema da “mistificação que anda a cavalo na literatura” (Dubuffet), foi antes um grande sabotador, alguém que não estava muito interessado nas grandes teses, no romance de ideias, que não se dividia entre os modos da liturgia que ocupava os seus contemporâneos, que sempre vinham falar em nome do bem público. À cabeça, tínhamos Sartre e Camus. Aí se ajuizava sobre o que devia esperar-se sobre o papel da literatura, enquanto a ele só lhe interessava provocar estragos, desmanchar tudo, e a declarar a fetidez desses impulsos para o heroísmo, a transcendência ou o escapismo. Como nos diz Steiner, “Céline transforma a dinâmica complexa do fiasco político e social em cheiro, em som, em toque de pele e tecido”. O eminente crítico, nota como o seu estilo particular e as suas obras “estão imersos numa gargalhada negra de proporções rabelaisianas”. E acrescenta que, “nesta hilaridade ciclópica, vê-se o regozijo infame de um estudante de Medicina diante do seu primeiro cadáver”. Com os seus ritmos internos e excreções de órgãos inventados mas bastante plausíveis, com esse magma das profundezas que forma a crosta da linguagem, com o seu enérgico abuso da elipse, ele não está interessado em entreter, mas em inventar um novo fôlego, algo que realmente afecte a nossa sensação e consciência do mundo. Mas ele que o explique nas suas próprias palavras: “Este estilo é feito com uma certa forma de forçar as frases a saírem ligeiramente do seu significado habitual, de fazê-las sair dos gonzos por assim dizer, de deslocá-las e forçar portanto o próprio leitor a deslocar-lhes o sentido. Mas muito pouco! Oh! Muito pouco! Porque tudo isto, se o fizermos à bruta, dá raia, raia. É coisa que pede, pois, um recuo, uma sensibilidade enormes; é muito difícil de fazer porque se tem de andar à volta. À volta de quê? À volta da emoção.”
Os manuscritos que agora reapareceram, haviam sido pilhados do apartamento do escritor em Montmartre, isto depois da prudente decisão de deixar a França, acompanhado por Lucette, em junho de 1944, logo após o desembarque aliado na Normandia. Nunca cansou de lamentar-se da enorme perda que sofreu naquelas anos. “Eu cá fui o mais tanso dos franceses… Ficaram-me com tudo quanto eu tinha e lixaram-me os manuscritos, deitaram-nos pela retrete abaixo. Fui um anjinho.” Lembre-se que ele viu a sua carreira médica abalada pela de escritor, tendo sido forçado a abandonar o dispensário de Clichy depois da publicação dos panfletos anti-semitas, e, não tendo conseguido instalar uma clínica em Saint-Germain-en-Laye, viu-se obrigado a exercer medicina a bordo do cargueiro Chella. Jean Dubuffet vinca que a hostilidade a respeito de Céline surgiu, na verdade, muito antes de ele ter manifestado pontos de vista sobre um qualquer campo político, e o facto é que o autor viria a reconhecer perto do fim que, nesses anos, e face à animosidade que a sua obra foi gerando, se deixou levar pelo seu orgulho, e foi assim que, durante a ocupação alemão, o vimos regozijar-se nessa atitude odiosa, ficando do lado do que quer que escolhesse o invasor. Por trás do seu ânimo enraivecido, havia afinal um desejo de vingar-se. “Acho que fui humilhado por tantos homens durante tanto tempo, tão abominavelmente e de uma forma tão estúpida, que a doença do orgulho acabou por me atacar”, reconhecia numa carta ao seu amigo Eugène Dabit. Isto levou-o à ignomínia, a uma revolta em que pretendeu agredir todos os valores que a nação francesa procurava salvar. Céline não se limitou, por isso, a ser passivo perante os invasores, chegou mesmo a fazer uma viagem a Berlim em 1942, e, depois, para fugir a um possível fuzilamento, acompanhou a retirada dos alemães e refugiou-se, com outros franceses colaboracionistas, incluindo altos representantes do governo de Vichy, no milenar castelo alemão de Siegmaringen. Ninguém lho perdoou, e a derrota alemã deixou-o sem ter para onde ir. Acabou por fugir para a Dinamarca, onde foi preso. O cárcere, onde permaneceu até 1948, salvou-o de humilhações piores, quando a maioria dos intelectuais colaboracionistas foram marginalizados ou mortos, e depois de ser libertado viveu sob o regime de residência vigiada. Só regressaria a Paris depois da amnistia de 26 de abril de 1951. No ano anterior, havia sido julgado e condenado, por contumácia, a um ano de prisão e ao pagamento de 50 mil francos de multa, tendo sido ainda declarado em estado de indignidade nacional. Metade de todos os seus bens, os da altura e os futuros, ficavam sujeitos a confiscação. Mas se lhe foi permitido regressar ao seu país, passou a última década da sua vida como um proscrito, a maior parte dos anos em Meudon, continuando a exercer medicina junto de poucos clientes, recebendo a visita dos ainda mais raros amigos e admiradores, enquanto o anúncio de qualquer novo livro seu era motivo para a imprensa o afogar em mais outra maré de insultos, nessa chicana que sempre foi útil para esses intelectuais que se portam como “chuis à paisana” provarem a sua lealdade e conseguirem, em troca, ver o seu trabalho agraciado.
Voltando aos papéis, é certo que estes virão desafiar também os livros que já se conhecia, já que, além de um novo romance, “Londres”, e de um conjunto importante de sequências inéditas do romance incompleto “Casse-Pipe” (do qual se salvaram apenas meia centena de páginas, às quais se juntam agora outros 30 capítulos, num total de 400 páginas), o qual é visto como o elo perdido entre “Viagem ao Fim da Noite” (1932) e “Morte a Crédito” (1936), há ainda um manuscrito deste último descrito como “fascinante” por François Gibault – um dos dois representantes de Lucette Destouches e autor da mais completa biografia de Céline, publicada em três volumes entre 1977 e 1985 –, por conter uma série de “variantes e arrependimentos” que obrigarão a uma revisão profunda do texto final. Depois há ainda uma novela de juventude inédita, "La Vieille Dégoûtante", entre outros esboços de textos que nunca foram publicados, mas Thibaudat, que passou a última década e meia a decifrar e inventariar este “tesouro”, que inclui ainda correspondência, fotografias, desenhos do pintor e gravador Gen Paul, amigo do escritor, entre outros materiais, destaca como o “mais espantoso dos inéditos” agora recuperados, um relato intitulado “Guerre”, ao qual Céline se referiu em 1934 como fazendo parte de um tríptico a que chama “Enfance-Guerre-Londres”.
Todo este material foi avaliado em cerca de um milhão de euros, e a intenção de Thibaudat era entregá-lo a uma instituição especializada em arquivos literários, mas depois de ter contactado um advogado e os dois representantes legais da viúva de Céline, Gibault e uma amiga pessoal da ex-bailarina, Véronique Chovin, estes processaram o ex-jornalista por receptação de bens roubados, isto apesar de ter sido sua a iniciativa de entregar os manuscritos sem exigir nada em troca. Entretanto, Gibault e Chovin fizeram saber que, embora tenham sido contactados por outras editoras, pretendem entregar o material à Gallimard, editora histórica de Céline. Entretanto, e depois de a Biblioteca Nacional de França ter adquirido em 2001, por 1,8 milhões de euros o manuscrito de “Viagem ao Fim da Noite”, os representantes de Céline anunciaram que iriam doar àquela instituição o manuscrito de “Morte a Crédito” depois de se ter concluído o trabalho de edição.