Não sei se a sorte (ou neste caso a extrema falta dela) pode ser convocada para justificar a brutal sucessão de cataclismos naturais que têm assolado o Haiti nas últimas décadas, alguns deles potenciados pelas alterações climáticas e outros consequência do descuido da humanidade com o equilíbrio do planeta em que vivemos.
Estes fenómenos de destruição têm ocorrido num país que tem vivido em sucessiva crise política, alternando entre regimes despóticos e frágeis tentativas de alguns arremedos de Estado de Direito. No início do passado mês de julho, o Presidente haitiano Jovenel Moise foi assassinado, supostamente por mercenários estrangeiros e em circunstâncias ainda muito nebulosas, quando preparava um referendo para aclarar a interpretação da constituição do país, no que se refere à contagem dos mandatos presidenciais.
Visitei o Haiti em missão oficial em dezembro de 2017. Pelas minhas funções de representação política e também pelo gosto que tenho em conhecer mundo, já estive em mais de uma centena de países, muitos deles pobres e com graves carências, mas nenhum me marcou tanto como o Haiti e a pobreza extrema que por ele campeia.
Agora que mais um terramoto acelerou a derrocada, é fundamental passar para outro patamar da ajuda internacional. Porque não fazer do Haiti um piloto avançado da coligação global que precisamos para a assegurar a sustentabilidade e a sobrevivência da nossa própria espécie, em condições de dignidade e diversidade? As manifestações de solidariedade e os auxílios humanitários tradicionais, ainda que muito importantes, já não chegam como resposta.
O Afeganistão em geral e Cabul em particular, nunca estiveram nem nas minhas rotas de viagens oficiais nem profissionais ou particulares. Não é por isso, no entanto, que sinto menos o fragor da derrocada da tentativa da coligação ocidental liderada pelos Estados Unidos de, como efeito colateral da intervenção para capturar Bin Laden, agora retrospetivamente desvalorizada por Biden, proporcionar a criação de instituições capazes de funcionarem com respeito pelos direitos humanos num contexto de soberania.
A retirada das forças americanas destapou uma realidade cruel. A oportunidade de criar os alicerces de um Estado de Direito foi delapidada em conflitos, rivalidades e movimentos de captura da riqueza e poder pelos diversos senhores da guerra. Impressiona a forma como os talibãs tomaram cidade após cidade e entraram no palácio presidencial sem resistência e como aparentemente nada disto foi previsto nem mitigado no plano de saída.
Sou a favor da laicidade dos Estados, da liberdade, da tolerância e da aceitação da diversidade e do respeito pela igualdade de géneros. Sei que na derrocada afegã ficaram soterrados muitos sonhos de quem provou o sabor da liberdade individual ainda que sob múltiplos constrangimentos. Por outras razões, foram também muitos os sonhos de dias melhores soterrados no Haiti. Não posso disfarçar um travo amargo nesta crónica estival. Uma das primeiras em muito tempo, em que não é faço nenhuma referência à “mãe de todas as derrocadas” que nos assola desde o inicio da década. É tempo da comunidade internacional construir o futuro com solidez.
Eurodeputado do PS