All Things Must Pass. Tudo vai passar, menos o legado de George Harrison

All Things Must Pass. Tudo vai passar, menos o legado de George Harrison


Depois de anos em que foi abafado pelos seus colegas dos Beatles, o primeiro disco a solo de George Harrison, depois de sair da famosa banda, tomou o mundo de assalto. 


O final dos Beatles deixou uma marca profunda no mundo, mas especialmente a George Harrison.

Conhecido como o “Beatle calado”, Harrison estava farto do caótico estilo de vida da banda mais famosa de todos os tempos e de estar na sombra de dois dos mais aclamados compositores de canções de sempre, os “irmãos mais velhos” John Lennon e Paul McCartney. O seu desejo mais profundo era abandonar os “Fab Four”.

Apesar de McCartney ter sido o primeiro Beatle a abandonar o “barco”, “Harrison já tinha partido de corpo e alma há muito”, descreve Greame Thomson no seu livro George Harrison: À Porta Fechada.

O guitarrista já tinha embarcado em novas aventuras musicais, tinha participado na tour do grupo americano Delaney & Bonnie and Friends, essencial para ganhar mais confiança enquanto músico independente, e criou dois discos a solo, Wonderwall Music, uma banda sonora que mistura música ocidental e oriental, e Electronic Sound, um projeto de eletrónica experimental, mas isto era apenas uma amostra do que estava para vir.

Depois de anos em que as suas músicas foram rejeitadas por Lennon e McCartney, Harrison estava numa missão de aproveitar todas estas peças e lançar um trabalho que silenciasse todos aqueles que alguma vez duvidaram do seu talento. 

Desta missão, resultou o álbum triplo All Things Must Pass, um disco lendário, lançado em 1971, aclamado pela crítica e comercialmente foi o disco número um das tabelas londrinas durante oito semanas, e, agora, está a ser celebrado com uma reedição luxuosa, preparada pela sua família, para assinalar o seu 50.º aniversário (apesar de, devido à pandemia, só estar disponível para os fãs depois de completar a 51.ª primavera).

All Things Must Pass é muito mais do que um álbum “Pós-Beatles”. É um disco que influenciou gerações e com um som que se tornou num marco da música pop e rock. Quem diria que tinha sido criado pelo rapaz que quase ficou de fora dos Beatles por só ter 15 anos?

 

Emergir das sombras

Apesar de ter sido responsável por introduzir o grupo de Liverpool à música folk, devido à sua paixão por Bob Dylan ou pelos Byrds, à música clássica indiana e ter composto temas memoráveis como Here Comes the Sun, Something ou Within You Without Out, “George era o bebé do grupo. Não tinha muito voto na matéria”, pode ler-se no livro de Thomson. 

“Nos Beatles, o seu trabalho era tocar guitarra”, disse Tony Brawell, um dos confidentes mais antigos dos Beatles, entrevistado para À Porta Fechada. “Nunca ninguém se voltava e dizia, ‘Raios partam, que bela cena!’ Era só o trabalho dele. Nunca ninguém disse que ele era fantástico”.

Foram estas constantes recusas que levaram George a dedicar-se à sua carreira a solo. 

Bastava de recusas e obstáculos que quase impediram o mundo de belas canções como While My Guitar Gently Weaps, que só entrou no álbum depois de Harrison ter convidado o seu amigo Eric Clapton, virtuoso guitarrista, na altura, membro dos Cream. Estava na altura de George assumir o seu destino e mostrar ao mundo que não era apenas um “acompanhante” de Lennon e McCartney.

Quando Harrison entrou em estúdio, pouco depois do lançamento de Let It Be, o último álbum dos Beatles, marcado pela grande tensão entre os seus membros, All Things Must Pass “já estava completo na sua cabeça”, disse à revista Rolling Stone o filho do guitarrista, Dhani Harrison, um dos principais responsáveis por esta reedição. 

“Ele tinha pensado sobre [criar um disco a solo] há muito tempo e já tinha sido bastante paciente, enquanto Beatle e como pessoa. Quando chegou a altura de começar a trabalhar, ele sabia exatamente aquilo que estava a fazer. Não ia para um estúdio mostrar o que estava a fazer. Ele estava pronto”, conta o filho, que nasceu oito anos depois do lançamento deste disco.

Quando, efetivamente, o músico mostrou ao produtor, o tão influente quanto controverso Phil Spector, que morreu em janeiro deste ano, o que este se recorda é de o material ser “infinito”, pode ler-se no livro The Music of George Harrison, de Thomas MacFarlane, notando ainda uma relação positiva de “quantidade e qualidade”, algo natural, o músico já andava a acumular canções, como Hear Me Lord ou a faixa que partilha o nome com o disco, desde 1966, tudo contribuições rejeitadas para entrarem em discos do seu antigo grupo.

Depois de decidir grande parte das músicas que fariam parte do alinhamento do disco, restava decidir quem iria participar no seu disco. Uma coisa era certa, depois da experiência traumatizante dos últimos anos com os Beatles, Harrison queria algo diferente.

Inspirado pelo tempo passado com um dos seus heróis, Bob Dylan, que estava a trabalhar com os canadianos The Band, em 1968, e pelos concertos que fez a apoiar o duo Delaney & Bonnie, que frequentemente convidavam amigos, como Clapton, os irmãos Allman ou Leon Russell (um colaborador frequente dos Beatles), Harrison queria emular este espírito livre, fraterno e de partilha criativa na sala de estúdio, que foi montada em Friar Park, a mansão de 25 hectares onde o músico morava.

Este era o espaço perfeito para receber as dezenas de músicos que participaram no álbum triplo, que entravam e saíam descomprometidos no estúdio, traziam refeições vegetarianas para partilharem nos intervalos das sessões e participavam em sessões de meditação, Harrison era um devoto praticante de rituais religiosos hindus e fazia parte do movimento Hare Krishna, uma espiritualidade que influenciou o seu trabalho e a sua vida.

Os nomes que surgem citados na lista de “colaboradores” deste disco são autenticas coqueluches do rock nos anos 1960, como Eric Clapton, Billy Preston, o icónico guitarrista Peter Frampton, o compositor e pioneiro do sintetizador na música rock, Gary Wright, o baixista dos Manfred Mann e habitual colaborador dos Beatles, Klaus Voormann, os futuros membros dos Derek and the Dominos, Bobby Whitlock, Jim Gordon e Carl Radle, o saxofonista dos Rolling Stones, Bobby Keys, membros da aclamada banda Badfinger, entre muitos outros.

Como se não fosse suficiente, Harrison ainda contou com a participação de dois ex-Beatles, Ringo Starr, que participa em grande parte das músicas, e John Lennon, assim como da sua esposa, Yoko Ono, que batem palmas na música I Remember Jeep, um instrumental criado de improviso.

Foi neste espírito de partilha e liberdade que foram criadas as faixas de All Things Must Pass, que contaram com a produção inconfundível de Spector, que utilizou a sua influente técnica da “parede de som” onde, através da utilização de vários instrumentos musicais, como as guitarras elétricas, tocadas em uníssono, conseguia produzir um som mais denso e cheio, algo que se assemelhava a uma orquestra.

As músicas do disco variam em diversos temas, a primeira faixa do disco, I’d Have You Anytime, foi escrita a meias com Dylan, na sua casa perto de Woodstock, e, a par de If Not For You, são as únicas músicas do disco onde Harrison partilha os créditos de composição, é uma tentativa de o músico pedir ao seu herói para pedir “entrar no seu coração”. 

Um dos tópicos mais proeminentes são as experiências espirituais e ensinamentos religiosos do artista. Em Beware of Darkness este avisa para os perigos das tentações que podem desviar uma pessoa do seu propósito na vida, “in the dead of night / beware of darkness, enquanto em All Things Must Pass o músico canta sobre a efemeridade da vida humana, “all things must pass / all things must pass away”, recorda-nos.

O final amargo dos Beatles também é o tema de um vasto leque de canções, como a “supersónica” Wah-Wah, a música mais “selvagem” do disco, onde Harrison reflete sobre o facto de se sentir desrespeitado pelos seus pares, ou a belíssima Isn’t It A Pity, com o cantor a lamentar a forma como os Beatles, apesar de em tempos se considerarem unidos como irmãos, se maltratarem mutuamente, “Isn’t it a pity? / Now isn’t it a shame? / How we break each other’s hearts and cause each other pain”.

Além das canções, o terceiro disco do álbum, conhecido como Apple Jam, foi dedicado ao espírito das sessões de improviso em Friar Park e contém quatro faixas instrumentais e a música It’s Johnny’s Birthday, uma canção dedicada ao 30.º aniversário de John Lennon.

 

Deus no coração e problemas no tribunal

Apesar do número “infinito”, como diria Spector, de canções neste disco, talvez a mais memorável seja My Sweet Lord, música que chegou ao número um em tabelas de todo o mundo e que foi aclamada pela Rolling Stones como uma das 500 melhores músicas de sempre. 

Inspirado pela beleza e minimalismo de músicas gospel como Oh, Happy Day, nomeadamente pela versão do grupo Edwin Hawkins Singers, ou por músicas pop focadas na religião, como Spirit in the Sky de Norman Greenbaum, o ex-Beatle quis criar uma música que mostrasse como este se sente em relação à sua espiritualidade expressas de uma forma que qualquer pessoa, independentemente das suas crenças, pudesse compreender. 

Para tal, Harrison optou por escrever uma letra simples e repetitiva onde fala sobre como pretende ter uma ligação direta com Deus: “I really wanna see you / Really wanna be with you/ Really wanna see you, Lord / But it takes so long, my Lord"

Esta frase foi inspirada nos ensinamentos de Swami Vivekananda, um dos pensadores mais prestigiados na introdução do hinduísmo no Ocidente, que defendia que “se existe um Deus, devemos vê-lo. Se existe uma alma, devemos conseguir interpretá-la”.

Esta não seria a última referência a religiões orientais, com o músico a contrapor a expressão “aleluia”, tipicamente utilizada na religião cristã e judaica, com “hare Krishna”, termo hindu que pode ser interpretado como “salve Deus”. Apesar de críticos acusarem Harrison de estar a blasfemar e de incongruência, o músico defende que esta justaposição servia para mostrar que estas frases “significam o mesmo” e que é possível ser espiritual sem aderir ao sectarismo.

Apesar de antes do seu lançamento existir um certo receio sobre o sucesso deste single, George temia que uma declaração de fé tão vocal pudesse alienar ouvintes, a música foi um sucesso mundial e influenciou uma geração de músicos rock e pop a abraçarem a religião de uma forma mais aberta, seja de origem ocidental ou oriental.

All Things Must Pass foi o maior sucesso comercial de Harrison, no entanto, mal houve oportunidade para o tocar ao vivo, pouco tempo depois da sua publicação, o músico iria virar a sua atenção para o Bangladesh.

Depois de organizar o pioneiro concerto de beneficência, Concerto Para o Bangladesh, cujos lucros foram enviados para ajudar os refugiados do Este do Paquistão, a produção do espetáculo e do disco-concerto iriam ocupar imenso tempo a Harrison que, quando regressou aos concertos, já All Things Must Pass tinha perdido o fulgor do seu lançamento e o músico estava a preparar o seu sucessor, Living in the Material World.

Outro fator que manchou para sempre a icónica música foi as acusações de plágio que acusavam My Sweet Lord de ser uma cópia de He’s So Fine, um êxito do “girl group” the Chiffons, tendo acusado o artista de infringir os direitos de autor desta música.

Este processo arrastou-se numa longa batalha legal, tendo George e Phil Spector confessado que, dada a popularidade deste tipo de bandas na altura, que foi possível que a música os tenha influenciado de forma não intencional.

O resultado deste processo fez com que Harrison fosse forçado a pagar à editora Bright Tunes 75% de todos os lucros do single, o que totalizou cerca de 1,6 milhões de dólares (cerca de 1,3 milhões de euros).

 

Cumprir um desejo

Apesar da marca que o processo legal deixou na vida de Harrison, em diversas entrevistas este queixou-se de estar cansado da batalha legal e de todo o dinheiro “desperdiçado” em tribunais e advogados, é indubitável que este foi um álbum que estabeleceu a “fasquia” do que deve ser um álbum nos anos 1970 e, ainda hoje, é uma influência para diversos músicos. Artistas como Nina Simone, Brian Wilson, Elton John, Sting, James Taylor, Ravi Shankar ou Jim James gravaram a sua versão da música.

A celebração do legado do “Beatle calado” continua com o lançamento massivo da sua obra-prima, para assinalar o 50.º aniversário do disco, que chegou às bancas no dia 6 de agosto, e que colocou o falecido músico, Harrison partiu em novembro de 2001, pela primeira vez no Top 10 da Billboard 200 desde 1971 

Esta reedição, produzida pelo seu filho Dhani, com produção musical de David Zonshine e mistura do engenheiro Paul Hicks, vai ser vendida em diversos “níveis de luxo”. 

A mais impressionante é a versão “Uber deluxe box set” e conta com uma caixa de madeira artesanal, dois livros, um álbum de 96 páginas compilados pela viúva do ex-Beatle, Olivia Harrison, com imagens inéditas e páginas do diário pessoal de George, e uma crónica de 44 páginas da produção deste disco, um marcador de livro feito da madeira de uma árvore que se encontra em Friar Park, diversas miniaturas do guitarrista e dos gnomos a replicar a pose da capa de All Things Must Pass, ilustrações de Klaus Voorman, uma cópia do livro Light from the Great Ones do guru indiano Paramahansa Yogananda, um colar composto por sementes de rudraksha e, claro, muita música, com oito LPs, cinco CDs, um disco áudio Blu-ray, que contem um total de 70 músicas, onde estão incluídas as faixas Cosmic Empire, Going Down To Golders Green e Mother Divine que ficaram fora do disco original, 47 demos e inúmeras gravações do estúdio, 42 destas chegam pela primeira vez ao público. 

Esta luxuosa edição pode ser encomendada no site de Harrison por 1029,99€. As restantes edições variam entre os 20€ e os 231€.

Quando o seu disco mais celebrado foi lançado, Harrison torceu o nariz à produção de Spector. “Como é que alguma vez pudemos gostar disto assim”, cita Greame Thompson, recordando a reação do músico quando este trabalhava na primeira reedição de All Things Must Pass, em 2001, que se queixava da exagerada reverberação e “grandiosidade” com que algumas músicas foram tratadas.

Até à data da sua morte, George Harrison trabalhou para lançar a versão que lhe parecia mais coerente e correta daquela que foi a sua obra-prima, agora, graças ao trabalho do seu filho e de Paul Hicks, parece finalmente ter chegado à versão definitiva.

“Trazer maior clareza sónica a este disco foi sempre um dos desejos do meu pai e era algo em que estávamos a trabalhar juntos até à sua morte, em 2001. Agora, 20 anos depois, com a ajuda das novas tecnologias e do extenso trabalho de Paul Hicks, realizámos este desejo e apresentamos este lançamento muito especial do 50.º aniversário da sua talvez maior obra de arte. Todos os desejos serão realizados”, revelou Dhani.