“O mundo é como a impressão deixada pela narração de uma história”, assim nos diz a epígrafe de um dos livros de Roberto Calasso, “Ka”, desentranhada de um tratado em sânscrito – o Yoga Vasistha, poema com cerca de 28 mil estrofes, provavelmente composto em Caxemira, entre os séculos VIII e XIII. Para o escritor e editor que morreu na passada quarta-feira, aos 80 anos, não é que o mundo tenha sido feito para acabar num belo livro, mas há algo que só os livros podem conter e que é decisivo para o desencadear de uma certa consciência do mundo. Assim, desde logo, este italiano que foi descrito pela Paris Review como “uma instituição literária de um homem só”, tinha pouca paciência para as profecias que há meio século falam da morte do livro impresso, lembrando que o nosso repertório de gestos é limitado e que os objectos que inventamos são tentativas mais ou menos felizes de adaptar o mundo às características inevitáveis desses gestos.
Ora, a leitura não é simplesmente uma actividade esporádica, em busca de alguma emoção em falta na vida que se vai levando. Para alguns, para os verdadeiros leitores, a leitura implica uma exploração para lá dos limites de quem se é, da sua época, das circunstâncias a que um homem se vê amarrado. O verdadeiro leitor, segundo Calasso, tinha de ter em si pelo menos uma fracção do jovem Pierre Bayle, como este foi descrito pelo génio malicioso do grande crítico francês Sainte-Beuve: “Língua, filosofia, história, antiguidade, geografia, livros galantes: lança-se sobre tudo isso, à medida que estas matérias o vão seduzindo.” E estas palavras saíam da sua boca: “Seja pelo motivo que for, nenhum amante volúvel trocou tantas vezes de amante como eu troco um livro por outro.” Por sua vez, Calasso era um defensor da leitura selvagem, daqueles leitores que, em vez de se darem ares e só quererem livros de um certo nível, eram igualmente vorazes com os chamados livrecos, esses que abarcam todos os géneros, que exploram com uma paixão imoderada e um registo indistinto o ocultismo ou a arqueologia, que tanto se enrolam em aventuras românticas bastante frívolas como se perdem no Egipto, tanto se entregam à pornografia como à parapsicologia, ao tarô, à biografia ou às intrigas arrepiantes e às novelas policiais.
Para Calasso era evidente que “todo o verdadeiro leitor segue um fio (embora possam também ser cem fios em simultâneo), e de cada vez que abre um livro, recupera esse mesmo fio e emaranha-o, enreda, desata, amarra, prolonga…” O mundo não se alcança, assim, simplesmente por se viver nele, mas é preciso reconhecer esse outro lado que nos chega pelas histórias que cercam o que há de invisível, esse lado mítico que tanto interessava a este homem que há muito se tornara uma inescapável referência do mundo editorial europeu.
Com uma erudição que em vez de esmagar arrebatava, “como um sussurro ou como um mensageiro com o passo ligeiro”, Calasso esteve sempre do lado do fascínio, dessa vigorosa paciência que entretece os vínculos mais profundos, e, deste modo, estava comprometido com o desejo de cativar de novo a imaginação para a importância dos deuses, esses “hóspedes eminentes mas incontroláveis, que se deve espiar com discrição”. Na sua prodigiosa obra de ensaísta, elevando a escrita ao prazer constante de traçar linhagens, articular saberes e vivências, Calasso foi um narrador compulsivo que se aventurou tentando imprimir de novo na experiência humana um fulgor mitológico. E com esse pressentimento de que “a cada passo encontram-se aqueles que estão acima de nós”, reconheceu como só nos livros persistiam ainda essas aparições fascinantes e aterrorizadoras. “Esta, dir-se-ia, tornou-se a condição natural dos deuses: aparecer nos livros. E muitas vezes em livros que poucas pessoas abrem. É talvez um prelúdio à extinção? Só em aparência. Porque, entretanto, todas as potências do culto migraram para um só acto, imóvel e solitário: o acto de ler. Devido a um imane deslumbramento, o mundo, obscurecido pela intoxicação telemática, coloca-se questões vazias sobre a sobrevivência do livro, enquanto o fenómeno grandioso que está perante os nossos olhos, e não é referido, é outro: a altíssima, inaudita concentração de potência que se concentrou, que se concentra, no puro acto de ler.”
Em Schlegel, Calasso colheu a mais bela definição de mitologia, como “o mais intricado enredo do espírito humano”, e a Nietzsche e ao seu tom de ultimato, foi buscar este aviso peremptório: “Sem mito toda a civilização perde a sua sã e criativa força de natureza: só um horizonte delimitado por mitos pode fechar com unidade todo um movimento de civilização.”
E se ele foi em grande medida um pensador desta orfandade moderna, deste vazio que foi deixado depois da expulsão dos deuses, que significou também que se perdeu a verdadeira admiração pelos grandes feitos, pelos actos heroicos, perdendo-se o fio da épica, nunca alinhou com esses que, tantas vezes por afectação, assumem uma postura hostil e pessimista. “O mundo – chegou a altura de o dizer, embora a notícia vá ser desagradável para muitos – não tem nenhuma intenção de se desencantar por completo, porque, se conseguisse, iria aborrecer-se demasiado.” Essa presença fugitiva de forças que não controlamos nem compreendemos inteiramente persiste enquanto estratégia para nos lançarmos na roda dos simulacros, nesse esforço de enfrentar os aspectos da existência que nos ultrapassam. Como escreve num dos ensaios do livro “Os quarenta e nove degraus” (trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo, Cotovia, 1998), “quando contemplamos à nossa volta o espectáculo do mundo, estamos já dentro de um mito. E podemos compreender porque é que as histórias míticas, mesmo quando chegam até nós fragmentadas e mutiladas, nos parecem familiares e diferentes de todas as outras histórias. Essas histórias são uma paisagem, a nossa paisagem, são simulacros hostis e convidativos que ninguém inventou, que continuamos a encontrar, que esperam apenas que os reconheçamos. Por isso, agora podemos confessar o que era, o que é, o antigo terror que as fábulas continuam a provocar. Não é nada de diferente do terror primordial: o terror do mundo, o terror perante os seus mudos, enganosos, ardilosos enigmas. O terror perante este lugar da constante metamorfose, da epifania, que inclui acima de tudo a nossa mente, onde assistimos ao incessante turbilhão dos simulacros.”
Em tempos, o poeta Joseph Brodsky falou numa entrevista sobre “os vorazes apetites metafísicos” do amigo, descrevendo Calasso como o caso fenomenal de alguém que absorve absolutamente tudo: “A mente deste cavalheiro é nada menos do que a história da civilização em miniatura. Ele é um crisol: ele mistura Este e Oeste, extrai essências, e o seu alcance é infinito. Eu diria que Calasso é último dos homens do Velho Continente com quem a conversação se revela sempre algo absolutamente compensador.”
Nascido em Florença, em 1941, nesse ano que, segundo ele mesmo, terá sido o mais desesperado da história da Europa, quando os nazis tinham tomado Paris e estavam convencidos de que a vitória era o cenário mais provável, Calasso nasceu no seio de um clã com resolutas convicções progressistas, uma família da alta burguesia que se movia há muito nos círculos intelectuais, sendo três as profissões às quais estavam dedicados: a edição, a investigação e a docência universitária. O avô materno, Ernesto Codignola, dava aulas de Filosofia na Universidade de Florença e estava empenhado na reforma do ensino, tendo fundado a Scuola Città, um centro pedagógico que persiste até aos dias de hoje naquela cidade. Codignola fundou também um selo editorial de publicações académicas, a Nuova Italia, que se mantém como herança familiar, sendo dirigida por um primo de Calasso. Foi na biblioteca do avô que ele fez as primeiras descobertas, essas que cultivaram nele a infatigável curiosidade que o fez mergulhar nessa floresta que se tece entre a ordem e o caos, onde cada grito expande a perspectiva. E foi nesse ambiente instigante que Calasso viveu naquela cidade em grande parte dedicada à vida cultural. Mas isso foi depois da guerra, porque os primeiros anos da sua vida foram ensombrados pela perseguição movida pelos fascistas ao seu pai, Francesco Calasso, um professor de Direito que passou algum tempo na prisão juntamente com outras figuras ligadas à resistência, isto num acto de retaliação depois de o filósofo Giovanni Gentile ter sido assassinado por ser partidário do regime. Embora tenham sido os próprios descendentes de Gentile a intervir para que Francesco fosse libertado, nos meses que se seguiram a família buscou refúgio em Amesterdão, e, entre as suas primeiras recordações, Roberto lembrava-se do ambiente sufocante dos meses que passou escondido num sótão de uma família amiga, num episódio evocativo da experiência vivida por Anne Frank.
Mas esse interlúdio depressa ficou para trás, e em breve a família estaria de volta a Florença, onde Calasso gozou não só de absoluta tranquilidade nos anos da sua juventude, deixando desde cedo os seus professores estarrecidos com o seu génio precoce, e que, sem ter dos pais qualquer pressão para seguir este ou aquele caminho, soube valer-se do privilégio de viver numa casa cheia de livros, bastando-lhe atravessar a rua para prosseguir as suas expedições na biblioteca do avô, beneficiando ainda do imenso acervo do Gabinetto Vieusseux, a gigantesca biblioteca do Palazzo Strozzi, onde se ambientou à atmosfera de um típico clube inglês – e isto porque o seu pai pertencia ao conselho de directores da instituição, sendo outro dos membros o poeta Eugenio Montale. Em 1954, a vida de Calasso não sofreu grandes perturbações quando a família se mudou para Roma, tendo ingressado no distinto liceu Tasso, beneficiando da vida cosmopolita da capital italiana, tendo nesses anos de adolescência desenvolvido uma grande paixão pelo cinema.
Na aura que se cristalizou à sua volta, um episódio ganhou particular relevo, contando-se que teria lido as três mil páginas de “Em Busca do Tempo Perdido” numa edição da Pléiade que concentrava os livros em três volumes, isto com apenas 13 anos, depois de uma lesão num joelho o ter confinado à cama numas férias do Natal. Mas o seu entusiasmo pela literatura ia além de Proust e dos simbolistas franceses, e não demorou a subir o rio, devorando os clássicos da Antiguidade, o que o instigou a aplicar-se no estudo do Latim, ao qual se dedicou durante oito anos, tendo estudado também o grego durante cinco. Foram esses os prolegómenos para a famosa sessão do bacharelato em que defendeu uma tese sobre a tragédia grega, pejada de inermes citações e densas notas de rodapé que provocaram um tremendo abalo entre o painel incumbido de o examinar.
Foi em Roma que Calasso conheceu aquele que viria a ser o seu mentor na aventura editorial, Roberto Bazlen. Com Luciano Foà, este tinha criado a Adelphi, tendo os primeiros livros com aquele selo sido lançados em 1963. Bazlen morre em 1965, não sem antes ter idealizado aquele que deveria ser o programa da editora, o qual inspirou Calasso que viria a assumir a direcção daquela casa em 1971. Depois de a editora ter demorado a tornar-se rentável, tendo buscado o apoio de uma série de homens de negócios que tiveram a visão necessária para segurar aquele que viria a transformar-se num baluarte da edição europeia, fugindo ao rígido cânone da Einaudi, que tinha dominado a vida intelectual italiana no período que se seguiu à guerra. No início da década de 1990, a Adelphi tinha alargado bastante o horizonte da edição a obras que não se confinassem aos valores da esquerda que a editora de Giulio Einaudi promovia, mas, com a sua rigorosa gestão financeira, viria a tornar-se imensamente lucrativa, gerando lucros que seriam hoje astronómicos para uma pequena editora apostada em publicar apenas obras que exigiam muito do seu público.
Nos muitos ensaios que dedicou ao tema da edição, Calasso promove a ideia da “edição como género literário”, e defende que uma verdadeira editora deve ser pensada como uma longa serpente feita de páginas, sendo cada segmento desta um livro. Essa serpente também pode ser pensada como um imenso livro, um livro que contém diversas formas ou géneros literários, composto por vários estilos, épocas, mas que desenha de forma contínua o seu rastro, acrescentando novos capítulos, constituídos por livros e diferentes autores. Calasso aproveita, assim, a lição de Bazlen, prosseguindo o seu intuito de buscar esses “livros únicos”, livros que exprimem da forma mais justa experiências que definem uma abordagem e uma voz, e que na sua articulação criam esse livro “perverso e polimorfo”. O catálogo de uma editora torna-se, deste modo, a mais perfeita harmonia de contrastes, gerando um laço de cumplicidade entre pessoas que não se conhecem, o qual se baseia na repetida experiência de não verem as suas expectativas defraudadas. Assim, o catálogo torna-se também a mais eloquente autobiografia do editor. Mas Calasso vai mais longe, e vê na leitura uma espécie de defesa do cérebro individual, desse pensamento perceptivo e silencioso que não se deixa arrastar nem substituir pela função da colmeia que faz da sociedade um imenso e capilar cérebro que funciona em rede e que produz um novo ruído de fundo dentro do qual se diluem as especificidades que singularizam o indivíduo.
Tendo deixado como principal legado esse rastro tão fundo que traçou ao buscar o tipo de livros que constituem experiências sobre o conhecimento, e que, como tal, podem ser transmutadas enquanto experiências daqueles que os lêem, Calasso manifestou por diversas vezes o seu entusiasmo por esse efeito de colonização que os livros exercem sobre o espaço onde vivemos, livros que compramos sem ter para eles um prazo, um destino certo. Livros que podem permanecer entregues ao seu mistério ao longo de anos, até décadas, antes de se tornar claro porque razão em certo momento julgámos necessitar deles. Nesse entreacto, acontece muitas vezes que o livro poderá ter deixado de estar disponível, até nos alfarrabistas, isto devido ao baixo valor comercial desses empreendimentos que, muitas vezes, respondem mais a impulsos entusiásticos e ousadias de editores que secretamente congeminam falências admiráveis. Mas, então, o livro ali à espera do seu tempo e do seu precipício, e com eles, quando os abrimos, nascem em nós essa estranha sensação, “a suspeita de se ter antecipado, sem saber, a própria vida”. Essa biblioteca de livros capazes de nos rechaçar, de dizer que ainda não chegou a sua hora, é importante também como desenho de um futuro mais ou menos longínquo, de uma série de possibilidades por vingar, desfechos imprevisíveis, insondáveis aberturas para se espreitar algo que, estando já ali, permanece invisível.
Voltando à imagem da serpente feita de livros, nesse movimento que ondula através dos séculos, atravessando e fortalecendo a vida da imaginação, deve também ser vincado o papel que têm enquanto vértebras que servem de articulação a este fascínio diante da tradição literária a própria obra de Calasso, a qual, sendo constituída por uma série de explorações que podem ser lidas de forma independente, na verdade constituem uma espécie de enciclopédia, com volumes que mantém entre si vínculos bastante firmes, começando pelo livro “A Ruína de Kash”, publicado em 1989, e no qual explora a relação entre os mitos e o despontar da consciência moderna. Seguir-se-ia o único volume deste magnum opus até hoje publicado entre nós, “As Núpcias de Cadmo e Harmonia” (edição da Cotovia, com tradução de Maria Jorge Vilas de Figueiredo). Este livro viria a tornar-se um inesperado bestseller, e tendo sido traduzido em mais de 15 idiomas, deu a conhecer a uma vasta audiência um género bastante original que prova que o futuro do romance passa menos pelos protocolos da ficção do que pela exultante deriva do ensaio, criando uma densa nebulosa que se serve tanto dos mitos como da biografia de personagens históricos, de elementos da crítica, da filosofia, numa tessitura dramática que não deixa de integrar os elementos dispersivos da marginália, numa sofisticada malha que entretece teoria e citações num organismo que respira e parece ter vida própria.
Como escreve Andrea Lee num artigo da New Yorker, além de explorar ideias, os livros de Calasso invocam o espírito de lugares, períodos culturais ou personalidades. “Embora pareçam debruçar-se sobre assuntos extremamente heterógenos, cada livro se liga aos outros pelo seu amplo estilo universalista (…) e estes volumes, no seu conjunto, formam uma distinta constelação que nos revela o universo interior de Calasso.” E a romancista norte-americana que escreveu um longo perfil dedicado a este “príncipe dos livros”, defende que, na base de todo o seu trabalho como escritor e editor está essa ideia de um cosmos em tensão, essa enorme serpente capaz de abraçar toda a História. E cita uma passagem de “Ardor”, livro em que Calasso se entrega a uma profunda meditação sobre a filosofia contida nos textos do antigo povo védico: “Aquilo que não se manifesta é bem mais vasto do que tudo aquilo que é aparente. O invisível é bem maior do que o visível. E o mesmo se passa com a linguagem… E é apenas porque a linguagem lança uma sombra bem mais vasta do que ela própria, e inacessível, que a palavra falada retém e vê renovada a sua magia.”
Ao longo da sua vida, Calasso nunca se cansou de lembrar e homenagear o seu mentor, e no próprio dia da sua morte chegaram dois livros de memórias seus às livrarias italianas, sendo um deles dedicado à sua infância em Florença (“Memè scianca”) e o segundo, “Bobi”, a Bazlen e à editora que ligariam para sempre os seus destinos. Num ensaio que lhe dedicou faz muito, integrado no livro “Os quarenta e nove degraus”, diz-nos que “na velha querela entre o homem do livro e o homem da vida, Bazlen representava o homem do livro que está todo na vida e o homem da vida que está todo no livro. Citava muitas vezes uma frase que se descobriu nos cadernos de anotações depois da sua morte: “Outrora, as pessoas nasciam vivas e a pouco e pouco iam morrendo. Agora nascem mortas – algumas conseguem tornar-se, a pouco e pouco, vivas.” E naquele ensaio adianta que “para Bazlen, a obra mais urgente devia ser: tornar-se, a pouco e pouco, vivo. Uma transformação interminável que exigia uma capacidade divinatória, não só o desejo de transformação mas a afinidade com o transformado”. E isto liga-se ao seu fascínio diante do invisível, daquilo que nos resiste, e tece os seus domínios do lado do mistério, deixando, no entanto, algumas pistas, alimentando esse pressentimento em relação ao movimento indecifrado que rege a História e faz com que, no puro decorrer do tempo, a cor dos acontecimentos e a consistência das coisas mude: “É como se o mundo, em vez de evoluir preguiçosamente, regredisse pouco a pouco em direcção às suas origens emaranhadas, onde já não subsistem – porque ainda não se cindiram – as categorias de ‘mundo verdadeiro’ e ‘mundo aparente’. Aqui estamos nós, anuncia Nietzsche – e é impossível não sentir, nas suas palavras, uma vibração irónica. E encontramo-nos num mundo em que tudo voltou a ser ‘fábula’. Como nos poderemos orientar? A que fábula deveremos entregar-nos, se já sabemos que a fábula seguinte a pode submergir? Esta é a paralisia, a peculiar incerteza dos novos tempos, uma paralisia que, desde então, todos vivemos.” Por isso, restava essa crença na narração, essa frágil mas espantosa capacidade de retomar um fio ou cem de cada vez, esse esforço de criar um movimento centrífugo a partir de um ponto vazio no seu centro, e que rege tudo à volta. E enquanto editor ou escritor, Calasso serviu nessa linha que emaranha o real e o imaginário, o visível e o invisível, cumprindo esse dever e prazer de vigília, inventando uma forma literária digna de se lançar sobre toda a vastidão do mundo, essa “totalidade compósita” que vive de esgotar cada instante, de insuflar nele um fôlego que liga o princípio do mundo ao fim do mundo, exaltando as suas dissemelhanças, estruturando esse órgão que liga o tempo inteiro e faz dele um só respiro.