Nos 100 anos da descoberta da insulina, conversamos com António Roma Torres, antigo diretor do serviço de psiquiatria do Hospital de São João, crítico de cinema, fundador da Sociedade Portuguesa de Psicodrama e sobrinho-neto de Ernesto Roma (1887-1978), o médico que quatro anos depois de Frederick Banting e Charles Best terem isolado a molécula que mudaria para sempre a vida dos diabéticos trouxe o tratamento para Portugal. Pedimos-lhe que nos conte esta história, que é também a de um homem que viu à frente do seu tempo o papel da educação para a saúde no sucesso da medicina, uma ideia ainda hoje visionária, entusiasma-se Roma Torres, que vai cruzando o filme do seu tio com o da Medicina e o seu. Sairemos mais fortes da maior pandemia em 100 anos? Veremos.
Dava um filme a vida de Ernesto Roma?
(risos) Pois dava um filme.
É um homem que nasce em 1887, neto de um médico conhecido em Viana do Castelo, Policarpo Esteves Galeão, que morreu num surto de tifo.
Sim. Viviam em Viana de Castelo, na casa que antes foi da minha bisavó Josefa, que ainda conheci. Eram três filhos, Ernesto Roma era o mais velho, a minha avó Zulmira a do meio e um meu tio, que era oficial de Marinha, e que conheci melhor porque era mais novo. Quando eu acabei o curso de Medicina o tio Ernesto tinha já falecido, acabei por não ter tempo de privar muito com ele e fui conhecendo toda a história mais tarde. Sempre se falou lá em casa muito da Associação Protetora dos Diabéticos Pobres, que ele fundou. Mais do que começar a usar a insulina, é essa obra que é interessante na vida dele.
Indo ao início, Ernesto Roma foi para Boston em 1922, depois de ter cumprido serviço militar na I Guerra.
A insulina foi descoberta em Toronto em 1921. Em 1922 o meu tio vai para Boston, mas não à procura da insulina. Foi para fazer um estágio com um professor do Hospital Geral de Massachusetts, Richard Clarke Cabot, que era um homem famoso pela visão que tinha da Medicina e que acabaria por ser muito importante para o meu tio. Cabot era infecciologista. Naquela altura havia muitas doenças infecciosas e que durante décadas teriam ainda uma enorme mortalidade. O meu tio, já nos anos 40, viria a fazer parte da junta Consultiva para Distribuição da Penicilina, que é quando o paradigma começa a mudar. De modo que, quando chega a Boston, apanha o início dos primeiros tratamentos na Clínica Joslin, para onde os descobridores da insulina tinham enviado as primeiras ampolas.
Estava no sítio certo à hora certa.
Apercebeu-se da diferença que a insulina ia fazer na vida das pessoas. Ele não era diabetologista, não havia especialidades como há hoje. Mas os diabéticos tinham uma vida muito difícil. Não era uma doença tão generalizada como falamos hoje da diabete tipo II, mas havia a diabetes juvenil. As pessoas tinham uma vida quase se podia dizer ‘de cão’ porque o tratamento que tinham era comer muito pouco, dietas muito rigorosas – e mesmo assim morriam. Às vezes dizia-se que morriam mais de fome do que da doença. Ele vê a diferença e quando regressa a saber manejar a insulina começa a fazer as primeiras administrações em Portugal. Os médicos portugueses podiam saber da literatura mas não tinham estado lá. Não traz propriamente a insulina, que era comercializada pela Lilly, mas traz o know-how. E traz também o resto, que foi talvez o mais importante, e que tinha aprendido com Cabot: uma visão de medicina muito social. Aprendeu que, para tratar, não chegam os medicamentos, é preciso chegar às pessoas. Isso predispô-lo para a forma como encarou esse regresso a Lisboa com uma nova arma terapêutica e faz com que apareça ainda nos compêndios mundiais.
Ficou conhecido como o pai da Diabetologia Social.
Sim. Em Boston havia uma bolsa de pobreza grande e Cabot via que adoeciam mais os pobres do que os ricos e tinham mais dificuldade em tratar-se. Ensinava que o médico para tratar tinha de responder a isso, não era só os cuidados que o hospital podia fornecer, era haver uma posição moral sobre o papel da saúde, dos médicos, dos enfermeiros, no tratamento dos doentes e a necessidade de dar-lhes autonomia, aquilo a que hoje se chama literacia médica. Foi completamente precursor. O meu tio regressa a Portugal, sabe encomendar a insulina, sabe usá-la, sabe que existe uma população com posses para aceder ao tratamento mas também quem não as tivesse, e isso era um problema de saúde pública. Percebeu que havia uma série de doentes que não iam ser absolvidos, não ia haver milagre para eles.
É aí, em 1926, que funda a Associação Protetora dos Diabéticos Pobres, que mais tarde dá origem à Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal.
Sim e isso foi o visionário. Tornou sócios da associação os doentes dele no consultório…
Onde iam as pessoas com posses em Lisboa.
E não só os doentes de Lisboa, ele vinha fazer consultas ao Porto. Ia ao consultório de um colega, o dr. Ponce Leão, que tinha um consulta ao pé de estação de S. Bento, e metia-se de novo no comboio para Lisboa. Era uma viagem longa. Mas no meio da clínica, captava as pessoas com mais posses para poder tratar os diabéticos que não se podiam tratar e na altura não tinham sequer assistência do Estado.
Uma espécie de Robin Hood.
Sim, mas consentido. Nos anos 20, os hospitais eram das Misericórdias, os médicos trabalhavam lá gratuitamente e a Medicina para as pessoas indigentes, como se dizia, era uma medicina em que se fazia o possível, uma medicina caritativa. O que ele fez teve por isso um valor muito grande, porque não foi criar uma coisa caritativa, foi dar-lhes o mesmo tratamento. Montou um sistema de distribuição de insulina gratuita, por correio, para quem não podia pagar – foi por essa experiência que certamente o foram buscar para a Junta da Penicilina.
Em Lisboa tinha um colega de consultório que era na altura o segundo diretor-geral de Saúde depois do professor Ricardo Jorge, o dr. José Alberto de Faria, que também estava sensibilizado para isto e foram levando aquilo para a frente. A associação começou a crescer, ainda hoje tem um papel fantástico, muito maior do que teve na altura, e o meu tio teve a sorte de ter sucessores sempre à altura que seguiram esta escola. O dr. Sá Marques, que foi o primeiro sucessor e faleceu no ano passado. O prof. Pedro Eurico Lisboa e mais recentemente, para não me esquecer de ninguém, o dr. Nuno Castel Branco e o dr. João Governo, que já faleceram, e hoje as pessoas que estão à frente da associação e da fundação Ernesto Roma, o dr. José Manuel Boavida, o dr. Luís Gardete Correia e o dr. João Filipe Raposo. Continuam o trabalho que o meu tio desenvolveu até aos anos 70. Morreu com 92 anos. E no fundo o que foi revolucionário foi a maneira de lidar com o diabético e essa ideia de o doente tratar-se a si próprio.
Ficou famosa uma frase de Ernesto Roma: a função do médico é menos tratar o doente do que ensiná-lo a tratar-se a ele próprio. Continua atual.
Sim, apesar de a frase ter sido atribuída a Pulido Valente, com quem ele preparou um livro, era dele. As sessões de educação sobre a diabetes deles foram pioneiras. Imagine o que era pessoas provavelmente analfabetas nessa altura, que provavelmente nunca tinham tido aulas de nada e tinham aulas sobre o que era a diabetes, como se tratava. E percebiam que não era só a insulina que as ia tratar, era a alimentação, o exercício, tudo aquilo que hoje sabemos e que ele começou a promover. E tem muita graça porque ao mesmo tempo que fazia isto foi o fundador, com António Maria de Oliveira Belo e com o Dr. Albino Forjaz de Sampaio, escritor e jornalista, da Sociedade Portuguesa de Gastronomia.
Era um bom garfo?
Não comia muito, mas comia bem. Não massacrava os diabéticos com não comer, defendia o estudo da culinária e como comer bem. Lembro-me de em miúdo, nos Natais, quando ele ia visitar a mãe a Viana do Castelo e de estarmos à mesa e de ele explicar como se devia beber. O vinho devia beber-se em quantidades pequenas para apaladar a comida, mas sempre com água. Era este tipo de coisas, não eram normas rígidas, que às vezes é a cultura que hoje se tenta impor. Um tema a que sempre me dediquei na clínica foi a anorexia nervosa e cruza-se um pouco com isto, não se pode ter uma filosofia rígida em relação à comida. Todas estas vertentes para a educação para a saúde foram sendo desenvolvidas pela Associação Protetora dos Diabéticos Pobres, ensinavam os doentes a cozinhar, e mais tarde em 1973 com Dr. Baltazar Rebelo de Sousa, pai do Presidente da República, é que há um acordo para passarem a ser Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal.
Consta que Baltazar Rebelo de Sousa disse que era uma vergonha ser dos pobres, contou-nos uma vez o dr. José Manuel Boavida.
Não havia ainda SNS, mas o Estado de certa forma acaba por aproveitar o know-how da associação.
A ideia de os mais ricos pagarem o tratamento dos mais pobres é de certa forma precursora da justiça distributiva do SNS. Ele era um homem politicamente engajado?
Quando era estudante fez parte da direção de um centro académico republicano. Não sei muitos pormenores, mas penso que tinha uma intervenção modesta. Acaba o curso em 1913. O primeiro interesse dele foi sobre psiquiatria – só descobri isso muito mais tarde, já depois de ir para Psiquiatria. Fez uma tese sobe microcefalia, que foi publicada quando a APDP fez 50 anos, a partir de casos de dois débeis mentais em Viana do Castelo. Na altura quem tinha estudos sobre estas doenças orgânicas era o Miguel Bombarda, o chefe civil da revolta republicana, assassinado dias antes do 5 de Outubro. Imagino que nesse contacto também possa ter havido esse lado político. Na biografia, o que dizia era que tinham sido arguentes da tese o Miguel Bombarda, o que seria impossível em 1913 porque já tinha morrido, e o Júlio de Matos, que fez carreira no Porto, mas que era cunhado do Teófilo Braga e quando o Miguel Bombarda morre vem para Lisboa desenvolver carreira.
Já não chegou a ouvir essas histórias na primeira pessoa.
Infelizmente não tive muito contacto com o meu tio já mais velho e mesmo com os meus primos em Lisboa, e em miúdo não tinha estatuto para ter essas conversas. Era um homem mais de fazer do que publicar, como se costuma dizer. Publicou alguma coisa sobre alimentação, mas o mais importante foi a obra que deixou e que ainda hoje é visionária. Hoje em dia a Medicina tem uma visão tecnológica e aposta muito na descoberta de novos medicamentos, de novas abordagens, de conhecimento. É o paradigma e está muito bem – tem-se feito progressos fantásticos – só que à medida que há mais progressos criam-se doenças crónicas. E o problema é esse: a Medicina desenvolveu-se de uma maneira que trata muito mal as doenças crónicas. Só as trata bem quando elas se agudizam.
Não previne, a palavra que ganhou outro peso nos últimos meses.
É um círculo vicioso. E o que ele fez há quase 100 anos foi ver que era preciso muito mais que isso. Percebeu que para uma doença crónica, como ia passar a ser a diabetes com insulina, é preciso que o doente se trate a si próprio. Lembro-me de uma conversa com o prof. Pedro Eurico Lisboa e com o dr. Sá Marques num congresso sobre diabetes. Na altura já eu era psiquiatra e fiz uma apresentação sobre aspetos psicossomáticos da diabetes. Fiquei fascinado porque no primeiro slide eles mostravam uma fotografia do ‘mestre Roma’, como eles diziam, e tive a oportunidade de falar com eles sobre a visão dele e o que é tratar um doente diabético. Revi-me muito naquilo, mesmo sendo de uma área diferente, porque na altura já estava a tratar anoréticas adolescentes, eram as minhas primeiras experiências nessa patologia.
Lembro-me de o prof. Eurico Lisboa dizer que quando tinha doentes jovens que reagiam hiper-obedientes, hiper-perfecionistas, tinha de lhes dar um abanão: “Olha, tu ainda não percebeste que isto te vai acompanhar para a vida, isto não é pera doce”. Era para levar o doente a ter noção da realidade, para caírem neles. Vão conseguir viver, mas não podem pensar que se safam disto fazendo uns dias a insulina toda direitinha. E o trabalho da associação foi pioneiro na autonomia dos doentes, de uma visão não protecionista da Medicina. E quando digo que é atual é porque, já tendo sido mais do que hoje, a Medicina hoje tem o protecionismo tecnológico.
Sendo um homem que conhece a mente, uma espécie de paternalismo é uma forma subliminar de os médicos preservarem algum poder?
Não acho. Acho que a maior parte dos médicos são muito generosos, a maior parte são muito dedicados aos doentes. Agora há um poder médico e que é um poder que os próprios doentes também lhes dão.
Preferem ficar nas mãos do médico.
Ainda há uma ideia do médico como deus intocável, em relação ao qual o doente não se pode zangar. Muitas vezes os médicos, também é verdade, têm uma postura de certa forma castigadora, como se o interesse de tratar fosse mais do médico do que do doente. Indo para a minha área, hoje em dia muitos psiquiatras defendem cada vez mais, mesmo na doença crónica psiquiátrica, a necessidade de tratamentos na comunidade, na familia, em grupo e de viver a doença de outra maneira. É aquilo a que se chama hoje o empowerment. É preciso empoderar os doentes, os doentes psiquiátricos crónicos, os doentes oncológicos, os amputados. É preciso dar-lhes poder, porque se não os doentes não se tratam.
Um médico não pode ser para o doente uma pessoa tão deificada que sabe tudo, tem de ser um procurador, um treinador
Fazendo o paralelismo com a pandemia, essa co-responsabilização tem faltado?
Ainda esta semana lia uma entrevista com o prof. Henrique Barros que tocava isso. A viver uma pandemia com os meios de informação que temos hoje, que não tem nada a ver com o que havia em 1918, muito do que se faz quando se diz para usar a máscara, confinar, é muito mais dar indicações do que desenvolver uma compreensão que faça com que as próprias pessoas, neste caso não individualmente mas socialmente, se tratem. Claro que é um bocado utópico isto e tem de haver normas, leis e há pessoas que vão ter sempre mais dificuldade, mas não acompanhar isso de mais informação é contraproducente. Estamos à espera que os médicos nos digam o que fazer para fazer e depois revoltamo-nos: ‘Enganaram-nos’. Os médicos não têm muitas vezes a noção que o meu tio tinha, e que os psiquiatras também têm de ter mas alguns não têm, de que há este paradoxo: um médico não pode ser para o doente uma pessoa tão deificada que sabe tudo, tem de ser um procurador, um treinador, como costumo dizer às minhas doentes anoréticas. É uma coisa técnica: dou o know-how para elas se tratarem.
É uma ideia gira, o médico como treinador.
Costumo dizer-lhes isso porque não sou eu que as vou tratar, não há um tratatamento, um remédio para a doença, como não há uma cura para uma doença crónica ou para uma pandemia. Na anorexia, o tratamento é a própria comida e a comida é o problema. Não é falta de apetite, as pessoas têm medo de comer. E depois não é um problema só mental, envolve o corpo todo, é psicossomático. E por isso elas – digo ‘elas’ porque tem maior incidência nas raparigas, mas também são eles – têm de se obrigar a comer e por isso uso a metáfora: é como se estivessem a treinar para os Jogos Olímpicos e não sou eu que vou fazer a corrida. O que posso dizer é como é que hão de colocar o pé, como é que hão de dosear o esforço. Posso ajudar com as táticas de jogo e é preciso continuarem comigo para irem aperfeiçoando. Há fotografias dos doentes a aprenderem a cozinhar com o meu tio. Isto é ser médico, muitos farão mas outros gostavam de fazer mais. O facto de não se refletir muito sobre isto faz com que não seja a ideia dominante.
A pandemia, por ter colocado a prevenção e a saúde pública em cima da mesa, pode ser um momento de viragem para as doenças crónicas?
Devia ser mas não sei se será. Lá está, porque a sensibilidade para a saúde pública que hoje estamos a ter ainda é muito dirigista. Claro que há pessoas que desenvolvem muito isso, e fala-se muito mais hoje de literacia médica, estuda-se, mede-se, mas continua a ser muito mais importante em geral para as pessoas o aparelho novo, o genoma, o achar que conseguimos encontrar uma explicação causa-efeito para doença a nível biológico.
Com uma abordagem menos dirigista, podíamos ter resolvido a pandemia de outra forma?
Não digo isso, eu sei lá como podíamos ter resolvido isto… O que sei é que se vê uma tendência de olhar para a saúde como algo em que a tecnologia vai resolver tudo. E agora tivemos este alerta. Achámos erradamente, porque sempre estiveram aí, que já não havia doenças infecciosas que nos pudessem tornar doentes por contágio quando não estamos nada à espera. Tínhamos tido uma grande pandemia há 100 anos – o meu avô, cunhado do meu tio Ernesto, morreu na gripe pneumónica, como morreram milhares de pessoas. Morreram mais pessoas do que nesta pandemia, mais ainda se pensarmos num país que tinha então 5 milhões de habitantes. Mas mesmo depois houve outras epidemias, a da sida foi a mais visível, mas deste género houve algumas isoladas mas mesmo assim tínhamo-nos desabituado de pensar que o contágio também é uma forma de adoecer. Todos, em geral, tínhamos esquecido isso. Agora cada um tem de perceber como evitar isso, da mesma forma que temos de pensar nos problemas ecológicos. Quando se apresenta soluções de forma dirigista, às vezes há a tentação de cair-se no “se não vai a bem vai a mal”. Mesmo no tratamento individual, os médicos não deixam de pensar isso e não é por maldade, é por generosidade. Estão tão interessados, tão apaixonados por tratar os doentes que não se importam com o resto, o que importa é que dê resultado. Mas deviam importar, porque é um paradoxo: tratar assim é tratar mal e pode dar mau resultado, pode não funcionar. Nas doenças crónicas, felizmente hoje em dia há muitas associações de doentes que ajudam a dar ferramentas às pessoas. Foi o que o meu tio descobriu há 100 anos.
Ernesto Roma tinha a sociedade de gastronomia. O doutor é crítico de cinema. É a forma de cumprir aquela máxima “o médico que só de medicina sabe, nem de medicina sabe”, atribuída a Abel Salazar?
(risos) Mais ou menos, mas parece que a frase não era dele, pelo menos ficou com o mérito de a difundir. Quando me reformei em 2017 do São João, por limite de idade, fiquei com mais tempo livre e retomei essa minha outra “profissão” de crítico de cinema, que sempre me acompanhou toda a vida, na minha vida de psiquiatra e na minha formação médica e psicológica.
Ser crítico de cinema para mim não é ser aquela pessoa que sabe quais são os filmes bons e os filmes maus. Nunca dei estrelinhas, mesmo não tendo nada contra isso. Jean-Louis Comolli, que foi responsável pelos Cahiers du Cinema, tem muito essa ideia: um crítico é um espectador como outro, não é um especialista, não é um cineasta, sabe alguma coisa de como se fazem os filmes mas vê os filmes com alguma distância. Mas escrever sobre os filmes faz parte do cinema. Não somos espectadores passivos de um filme, cada um tem a sua leitura e o filme é também essas leituras. Estimular que um filme não é só um filme, são as várias leituras, é o exercício que procuro fazer em relação ao cinema. E isso tem a ver com a psiquiatria: um filme é uma forma de pensamento, há quem fale até de filmosofia. Levi Strauss escreveu sobre os diferentes pensamentos, falava do pensamento selvagem, o pensamento livre, e do pensamento do homem moderno, científico. Há um texto de Slavoj Zizek, um filósofo muito conhecido, logo no início da pandemia, a dizer que precisávamos de filmes sobre a pandemia porque o mundo vai ser diferente, para pensar isto tudo. É mais fácil esse pensamento, explicar as nuances disto tudo, através de um filme do que às vezes da linguagem do homem moderno. Havia um autor, Guatari, que dizia que o cinema é o divã dos pobres nesse sentido interpretativo. Não no sentido de dizer que o filme não é o que lá está, mas que o que lá está pode ter diferentes construções.
Usou-o na clínica?
Quando estava no hospital fiz algumas sessões sobre cinema para ajudar a pensar o que é estar doente, a vida. E uso o verbo propositadamente, porque hoje em dia pensar faz-nos muita falta. O cinema põe em conjunto emoções, pensamentos, percebemo-nos a nós próprios e aos outros. Não é uma questão de interpretação dos outros, isso é um vício. As pessoas às vezes para se justificarem dizem “não foi isso que quis dizer”. Se foi o que disseram, era o que queriam dizer, mas podem dizer outra coisa, repensar. E foi isso que procurei fazer com a crítica de cinema. Fiz 25 anos no Jornal de Notícias, depois tornou-se incompatível com a minha vida profissional e agora voltei a fazer [no Público]. Ver um filme e não escrever nada é amputar o filme de qualquer coisa e ao mesmo tempo a missão do cinema é lembrar o espectador que está aqui. As pessoas às vezes dizem “vou ao cinema para não pensar”. É uma pena. O cinema proporciona uma forma de pensar diferente da palavra. A palavra dita ainda tem performance da pessoa, mesmo estando aqui os dois no Zoom, agora a escrita, gravada, já é um bocadinho diferente e limita a forma de pensar, torna o mundo redutor.
E isso sente-se hoje, nas redes sociais, por aí fora.
O mundo atual, a forma como discutimos muitas coisas sem saber o que estamos a discutir, como nos fiamos em líderes de opinião, tem esse problema. Precisamos de pensar sem corrimão, como dizia Hanna Arendt. E o cinema foi talvez descoberto porque precisávamos de pensar de outra maneira. A evolução tornou a palavra escrita tão universal que limita a forma de cada um pensar e hoje em dia não nos atrevemos a pensar de maneira diferente. Até se costuma dizer “já está tudo pensado”. Inscreve-te neste clube, neste partido, neste grupo e está tudo pensado por ti. Numa conferência pedem-nos "venha cá para dizer isto". Nem toda a gente tolera ouvir coisas que vão saindo assim desorganizadas (risos).
A resistência a pensar/falta de tempo para pensar pode estar a favorecer mais doença mental?
Não é só mais doença mental! Ou melhor, podíamos chamar doença mental a tudo mas também não gosto de pôr os psiquiatras a tomar conta da Humanidade, não acho nada boa ideia. Tem havido uma psiquiatrização de tudo e fala-se da saúde mental mas isto é muito mais do que saúde mental, é saúde fisica. E é mais do que saúde, é felicidade, é conseguirmos manter a generosidade em relação à maneira como queremos que o mundo seja e ter a possibilidade de agir. E para isso precisamos de pensar, confrontar visões, emoções, termos tempo para falar como estamos a falar aqui do meu tio e do presente ao mesmo tempo. Estamos sempre a descobrir uma insulina qualquer. Tudo isto exige uma posição dialógica, a ideia de polifonia de Bakthin. O meu tio não tratou a diabetes com a insulina vindo dos EUA com uma postura “eu sei uma coisa que vocês não sabem”, disse “nós todos podemos fazer isto”, organizou uma rede que ainda existe e sem isso não tinha acontecido nada. Enquanto estamos vivos, temos este poder de descobrir uma insulina qualquer. Sou muito otimista com o que vamos descobrir. Acho que pessoas que sabem tudo são de estranhar. A ciência serve para saber os limites do que não sabemos, do que a gente precisa de saber. Gosto muito do prof. Sobrinho Simões, meu amigo, que diz em todas as entrevistas que não sabe, sabendo muito mais do que eu.
As doenças são também sociais, não são assim tão privadas
Ajudou a difundir em Portugal a técnica do psicodrama, usado em psicoterapia. Juntou estes dois lados, da mente e da performance.
São mais do que dois. Fui um dos fundadores da Sociedade Portuguesa de Psicodrama, lá está, uma espécie de insulina. Cada vez se investe mais na terapia de grupo e terapia familiar e quisemos com a sociedade dinamizar um pouco este método. No fundo é uma forma de comunicação criativa. Uma pessoa afirma, a outra contrapõe e nessa contracenação avança-se. A visão de Jacob Levy Moreno, fundador do psicodrama, ia além do tratamento psiquiátrico, este confronto é uma forma de o mundo ter mais saúde. Tinha uma visão de certa forma utópica de que temos de manter-nos em contacto uns com os outros e que dessa forma caminhamos. Mas mesmo na clínica ainda se está a pensar muito no psiquiatra e no seu doente, o “meu doente” – as doenças são também sociais, não são assim tão privadas. E por isso é que o tratamento de grupo é tão importante, as pessoas tratarem-se com a ajuda umas das outras. E se isso é válido como se vê na pandemia, na doença crónica e na doença psiquiátrica também. Tenho um livro sobre psicodrama que remete para um título de Zizek, sobre Lacan e Hitchcock, no meu caso Tudo o que Sempre Quis Saber sobre Psicodrama (Mas Nunca Ousou Perguntar a Woody Allen). Hoje em dia o Woody Allen, por várias razões acho, está um bocadinho proscrito no meio deste clima fraturante em que a certa altura mais vale não pensar e abater alguns. Mas o cinema dele é pensamento e a partir dos filmes, que se identificam muitas vezes mais com a psicanálise, fiz um livro meio didático sobre o potencial do psicodrama. De modo que identifico-me muito com o meu tio Ernesto Roma, porque de uma maneira diferente e não foi por imitação, cheguei à mesma conclusão: é preciso fazer mais pela saúde.
Pelo tal paradoxo.
Quando eu era estudante de Medicina falava-se do efeito iatrogénico, aquilo que nos cura também nos pode matar. E hoje temos um efeito iatrogénico na própria Medicina. O que nos cura não é para nos entregarmos a isso sem defesa nenhuma, só nos cura se houver uma relação com o tratamento, com quem nos cura, com o que se passa à nossa volta, com o que fazemos da vida. Na pandemia temos um laboratório do que isto significa. Logo que começou a pandemia escrevi um texto em que dizia “afinal estamos vivos” e acho que continua atual. Pode haver vacinas, pode já não haver pandemia, mas este confronto com a incerteza e a necessidade de pensar soluções vai continuar a existir. Assim como vamos descobrir mais insulinas, vamos descobrir mais coronavirus, mesmo que não sejam propriamente vírus.
Nesse artigo escreve que o vírus chegou de mansinho, com pés de lã. Por não sabermos ao que íamos, resistimos melhor aos primeiros meses?
Tínhamos confiança em nós próprios. Não nos mandaram para casa, foi ao contrário. Parámos, o mundo parou. Nós não sabíamos que o mundo podia parar, julgávamos que não se podia parar, que os aviões não podiam estar em terra. Foi o que quis transmitir nesse artigo. Foi uma força nossa que é quase revolucionária, foi quase outro 25 de Abril ou outro Maio de 68 ou qualquer coisa assim. Foi a gente dar conta de que temos mais poder do que habitualmente achamos que temos, de que em coisas pequenas podemos ter esse poder, não tem de ser com revoluções nem por eleições, e tudo isso é importante e é bom que aconteça de vez em quando – e agora com a morte de Otelo reviram-se as partes boas e más, as partes traumáticas e menos traumáticas desses processos, que existem sempre.
O primeiro impacto que a pandemia teve foi percebermos que ainda temos esse poder, que tínhamos poder de parar a economia. Andávamos há não sei quantos anos a ouvir que a economia é que mandava. Não tenho nada contra os economistas, nem contra os outros técnicos, mas não podemos usar a ciência para parar de fazer ciência, para não se investigar mais, para não pensar mais. Hoje em dia a Medicina baseada em evidência é uma forma de não falar sobre isso, quando temos de continuar a olhar para as coisas e a questioná-las, porque quem encontra essa evidência tem noção de que há coisas que, para lá disso, não sabe.
Percebemos que tínhamos o poder, mas depois veio o resto, também a parte económica.
Foi pior porque nos encostámos, deixámos de ter vitalidade de pensar, os cidadãos, os políticos, os cientistas. O grande desafio tem de ser pensar, como na Medicina, como evitar esse efeito iatrogénico: como encontrar soluções para não morrer da doença e não morrer da cura. Não podemos mudar o mundo para ser como sonhamos, mas podemos fazer algo mais próximo disso. No meio disto tudo, em que não tem havido suficiente resposta que nos traga sempre segurança e consolo e otimismo, tem havido muita coisa boa. Em tempos recentes nunca tivemos tão despertos para ter de pensar soluções mas a certa altura delegámos nos outros, "façam lá por nós". Temos uma certa tendência para procurar ser protegidos e a sociedade tem esse papel, mas há formas de organização de sociedade que se encantam tanto com a proteção de pessoas que entramos num caminho, lá está, paradoxal.
A proteção não deve ser o mais possível, deve ser o mínimo necessário porque isso é que faz as pessoas adaptarem-se. Essa era a visão do meu tio-avô sobre o diabético, não ia fazer tudo pelo diabético, tomar conta da vida do diabético, ralhar ao diabético. Ia ajudá-lo e estava disposto a isso
De autoritarismo.
A proteção não deve ser o mais possível, deve ser o mínimo necessário porque isso é que faz as pessoas adaptarem-se. Essa era a visão do meu tio-avô sobre o diabético, não ia fazer tudo pelo diabético, tomar conta da vida do diabético, ralhar ao diabético. Ia ajudá-lo e estava disposto a isso.
Acha que se cruzou essa linha na pandemia?
Acho que essa linha está sempre em jogo na nossa vida em sociedade e que agora nos deixa com este dilema: como é que saímos disto melhor, mais fortes, capazes de não morrer, seja da doença e da cura e destes vírus. A crise anterior, que não era vírica, já trazia a crise do capitalismo, da globalização e da organização da sociedade na proteção dos mais vulneráveis. O vírus continua a ser uma crise da globalização e da resposta à globalização. Quando tivemos de lidar com a outra crise, da qual nos saímos também bem como país, acho que às vezes nos esquecemos que foi uma crise sistémica. Pensar angustia, põe-nos numa vertigem do que está em aberto, que afinal temos poder, afinal temos responsabilidade e em vez de pensar o futuro nós gostamos mais de fixar na culpa do passado e deixamo-nos condicionar não pelo que podemos fazer mas pelo sentimento de culpa, para não ir para o inferno.
Numa cultura judaico-cristã, usamos a culpa como forma de pedagogia
Vê muito sentimento de culpa em consulta?
Costumo dizer que ninguém muda por sentimentos de culpa. Há culpas, não acho que as pessoas não tenham culpas, quem tem culpas deve prestar contas e pagar isso. Mas, numa cultura judaico-cristã, usamos a culpa como forma de pedagogia. Por exemplo o que aconteceu no Natal. Acho que os portugueses não tiveram culpa da terceira vaga, nem foram os ingleses. Fizemos o melhor que podíamos e não deu certo porque existe o vírus. Houve muito frio naquela altura, como o prof. Henrique Barros alertou esta semana que pode voltar a acontecer, e existe a globalização. São ondas. De cada vez que isto piora vamos estar a dizer que os jovens têm culpa, os velhos têm culpa, as crianças têm culpa porque os pais não as vacinam. A comunicação assim não leva a lado nenhum. A culpa existe, a gente tem de lidar com a culpa mas não podemos usar a culpa para não fazer nada.
Em que sente isso na consulta?
Um doente quando nos procura já vem cheio de culpa. Por exemplo na anorexia, vinha uma mãe e dizia: ‘Sou uma mãe galinha, já sei que não posso proteger tanto a minha filha’. Está-me a induzir a que eu diga, “pois é, a senhora é uma mãe galinha, tem de deixar a sua filha crescer”. Eu não digo isso porque não acrescenta nada, só vou carregar essa culpa, que não a deixa mudar. Se eu tentar realmente mudar e não consegui, não era possível, alivio a culpa, não há sentimento de culpa. No coletivo é a mesma coisa: dizer aos portugueses isto está pior por vossa culpa ou os portugueses dizerem ao Governo ou ao Presidente da República isto está pior por vossa culpa não muda nada.
Tem-se falado muito sobre os efeitos da pandemia na saúde mental. Está preocupado com a capacidade de resposta a nível nacional?
O problema na saúde mental é que andamos há anos a discutir as mesmas coisas. Fico contente por ter deixado algum trabalho no Hospital de São João. Ainda eu era estudante de Medicina e já havia duas facções dentro da saúde mental, uma mais comunitária e outra mais das neurociências, que a partir dos anos 90 ganhou força – foi a década do cérebro em que se ia resolver tudo, descobria-se um gene e explicava-se a esquizofrenia, explicava-se tudo. Há a filosofia das pessoas que acham que já sabemos o que ainda não sabemos e acham que sabemos porque se publicam muitos trabalhos, mas são pequenas descobertas que não são a insulina. A “insulina” em psiquiatria apareceu nos anos 50: foi a clorpromazina (usada no tratamento e doentes esquizofrénicos), o início da psicofarmacologia, mas a partir dos anos 90 não tem havido grandes novidades. Pode ser que volte a haver. Há pessoas com uma posição muito médica como solução para doença mental e outras pessoas, onde me incluo – embora eu ache que as duas são importantes – que entendem que é preciso a saúde comunitária. Mas aí depois surge a ideia que temos é de ir tratar os esquizofrénicos ao domicílio, como se fosse a Uber Eats. É uma visão que também não é tão comunitária como parece à primeira vista e que no fundo vem na linha da psiquiatria do gueto dos hospitais psiquiátricos. Escondem-se lá os doentes.
Receia que se volte aí com a domiciliação dos tratamentos, que está prevista por exemplo no Plano de Recuperação e Resiliência?
Quando saí do serviço já se começava a falar de hospitalização em casa, que se tem desenvolvido mais, é uma noção extraordinária mas na Psiquiatria terá de haver sempre uma preocupação para não haver uma exclusão. É uma doença que tem problemas e a cura tem de ser social. Os psiquiatras é que lidam com estas questões, mas toda a gente devia opinar sobre isto. Fiz a minha formação num hospital geral mas havia colegas que estranhavam, que os doentes andavam com mau aspeto, no meio das pessoas, que não eram compreendidos. Tenho imenso respeito pelo dr. Miguel Xavier, que é o diretor do Programa Nacional de Saúde Mental, e estou certo que não é isso que pretende. O meu receio é que não se esteja suficientemente atento para não fazer isto e com muito dinheiro pode haver esse risco. E o meu receio é que se gaste muito dinheiro a investigar mais uma vez e que aquilo que se faz ninguém liga muito. No São João empenhei-me em encontrar soluções de acordo com o Plano de Saúde Mental e ninguém pergunta muito o que se faz. Fez-se na altura um grande inquérito para culpabilizar os portugueses – não é a ciência, é o uso que a gente faz das coisas.
Está a falar do inquérito sobre a prevalência da doença mental.
Sim, que temos não sei quantas pessoas com com psicoses, e depois não acontece nada. Como não acontece nada ao fim de cinco anos, vamos estudar tudo outra vez. E depois empatamo-nos uns aos outros e aliviamos o nosso sentimento de culpa, porque os outros não nos deixaram fazer. Depois anunciam-se coisas que já estavam em marcha e outras que se vão fazer e não chegam a existir. Mas, dito isto, têm-se feito coisas fantásticas na psiquiatria em Portugal. A coisa melhor que se fez foi a integração dos hospitais psiquiátricos nos hospitais gerais, com serviços de saúde mental. Isto pôs-se em marcha, mas todos já deviam ter internamento. Continua a não haver internamento em todos os hospitais da região Norte. É para haver, mas não há dinheiro. Toda a gente diz ‘a culpa não foi minha’. O que fizemos até aqui foi bom, mas podemos fazer melhor e não devemos estar satisfeitos.
E está preocupado com o impacto na pandemia na saúde mental? Diz-se que será a onda mais prolongada.
Essa pergunta fez-se logo no início. A pandemia no momento em que nos apanha desprevenidos não causa depressão. Primeiro é preciso separar pandemia e confinamento, que nos afeta porque somos seres sociais. Agora é preciso ver uma coisa: ficámos muito isolados mas também andávamos muito misturados, as famílias interconectadas, e nesse sentido devolveu alguma intimidade. O vírus não é uma coisa de Deus que nos vem iluminar, mas mostra tudo isto. Nesse primeiro momento e ainda agora, mais do que depressão, é natural que haja ansiedade, porque nos sentimos em perigo. Clinicamente não tenho encontrado o aumento de depressões. Pode ser estudado, mas às vezes procurar estudar uma coisa amplia o fenómeno. Acho que ainda estamos na fase do perigo, em que a ansiedade é o mais marcante, que com o tempo que está a durar pode transformar-se em grande ansiedade e depois em stress pós-traumático. Agora a ansiedade em si é uma resposta boa: com ansiedade mexemo-nos. Se não tivermos ansiedade nenhuma, deixamos a casa arder.
Há naturalmente pessoas vulneráveis que já têm doenças de base e devem ser mais protegidas. Já eram doentes antes da pandemia. A vacina não lhes chega, têm de tratar melhor as suas doenças e aí o que fazemos é muito menos do que o que estudamos para fazer, porque achamos que o resto não se consegue fazer.
As psicoterapias, sessões de grupo.
Costumo dizer que quem não faz uma coisa sem dinheiro também não vai ser com dinheiro que vai fazer. Primeiro deviam experimentar como é que as pessoas sem dinheiro fazem. Como as pessoas montam resiliências sem gastar mais dinheiro, só com orçamento normal, como se fez no São João – o problema é que depois não se liga nenhuma porque o processo “não está bem feito”. A outra coisa é o que a pandemia vai trazer e isso só veremos mais tarde. Traz uma situação de crise que se não resolver bem pode estruturar-se em perturbações neuróticas. Há psicólogos que fazem um trabalho fantástico mas também há pessoas que dizem que tratam as coisas com psicologia do senso comum, a folk psicology, que no fundo é treta. Ajudar as pessoas em situação de crise não é o “fale-me mais sobre isso”, não é só a empatia. A empatia é importante, mas não é apoio psicológico. Fico um bocadinho preocupado quando há uma tragédia e se diz “já está a receber apoio psicológico”. Há gente que faz um apoio nesta área excelente, mas o que transmite às pessoas é que se há uma tragédia "chamem lá alguém que saiba". Os psiquiatras não sabem, os psicólogos não sabem, a certa altura as pessoas deixam de ir lá dar uma sandes. Mas, em suma, enquanto as pessoas andarem com o vírus a morder-lhes a perna, têm ansiedade, e o resto veremos depois, como o impacto de perdas de rituais como luto. Em Inglaterra, durante a guerra, diminuíram as depressões, depois aumentaram. O que precisamos para não ter tanta doença mental é pensar e agir. Cada um agir por si pode levar para o caos, mas o caos também cria ordem, que é uma ideia na base do psicodrama. Acho que ainda temos muita saúde mental a nível global e em Portugal. E temos andado muito bem mesmo na pandemia.
Mesmo com todos os altos e baixos?
Podemos ver os rankings, mas a maioria dos países já estiveram muito mal, depois estão bem, as coisas têm altos e baixos, é assim em toda a natureza e com este vírus. As várias espécies na natureza também se equilibram, onde há muitas raposas há pouco coelhos, onde há poucos coelhos as raposas passam a ser poucas. Se, como muita gente diz, vamos viver com o vírus para o resto das nossas vidas – a gripe começou assim e ainda cá anda, só se apagou agora por causa destas medidas – percebemos que a ação é importante. Antes de começarmos a anularmo-nos uns aos outros, temos de nos adaptar.
Sou psiquiatra mas acho que não podemos deitar a loucura completamente fora, o mundo sem loucura é muito mais louco do que o mundo com loucura em doses moderadas, como o sal na mesa
Voltando à minha área, a terapia sistémica descobriu que para tratar a esquizofrenia há muitas coisas que a medicação não faz, é preciso outras coisas, adaptação, que não sei se é deixar de ser esquizofrénico. Há uma visão mais radical que diz que é preciso ajudar a pessoa a sair do armário, que o mundo precisa de loucura. Sou psiquiatra mas acho que não podemos deitar a loucura completamente fora, o mundo sem loucura é muito mais louco do que o mundo com loucura em doses moderadas, como o sal na mesa, voltando ao meu tio. Temos de deixar que exista e não querer estandardizá-la e fechar em casa. Uma vez assisti a uma comunicação sobre reabilitação de psicoses, aprendiam tudo, a fazer sopa, e os técnicos que acompanhavam iam lá da casa tratar de tudo quando chegavam a casa. O que cura pode fazer mal, se as pessoas ficarem mais isoladas. Penso que ainda temos um grande caminho a percorrer. Temos várias saúdes mentais, a dos serviços de saúde, a das dependências, a que é descoberta pelas Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), que têm de comunicar. Um pai alcoólico é um problema de saúde mental, achamos nós e acha a família, que acha que o internamento deve ser à cabeça, não são os psiquiatras. Mas também pode ser um pai violento, abusador, e nessa altura a dependência do álcool, que foi um avanço ter sido declarada uma doença, de repente não é tida em conta. Quando é uma doença, tratamos mal, isolamos. Num contexto social, há uma solução jurídica, um divórcio, mas o problema é muito mais complexo do que a solução. O que a psiquiatria me ensinou é que não podemos ter respostas triviais para problemas complexos. Tem de haver respostas triviais para problemas triviais, não podemos é achar que as respostas triviais chegam para problemas complexos.
De que final gostava para este filme?
A pandemia? Não vai haver final, como num filme não há final, e por isso é que alguns realizadores voltam a fazer o filme de outra maneira. Vamos a ver e já é outro filme. Espero que sejamos mais cidadãos, uma cidadania sem medo e com mais diálogo. Na base do diálogo também está o medo. Escrevi uma peça sobre César e Cícero. A ideia de Cícero em relação ao direito é que a lei do mais forte pode prejudicar toda a gente. É nessa base que temos de estabelecer o diálogo. Acho que Portugal foi dos países que reagiu melhor à pandemia a quente, tivemos momentos visionários, o problema é deixarmo-nos ficar descansados. Temos de continuar a ser visionários. Que o bom da pandemia seja para ficar e, o mau, que a gente aprenda a lição.