Talvez por ter entrado em férias e ter começado a descontrair.
Talvez por a pandemia parecer, de novo, estar a regredir.
Talvez por as regras de contenção estarem, gradual, mas responsavelmente, a atenuar.
A verdade é que senti, como há muito não acontecia, uma sensação de voltar a viver um tempo normal.
Digo bem: de viver um tempo normal.
Viver um tempo normal será, também, não tenho dívidas, a aspiração presente de todos os portugueses: será, portanto, uma aspiração de futuro.
O que os perturba, hoje, e não lhes permite uma vida normal, será, porventura, aparentemente, distinto.
Uns agitam-se, sobretudo, em função de medos induzidos, hipotéticos, inventados até, e, por isso, nem sempre presentes: o alegado aumento do crime, a propalada imigração avassaladora, os crescentes desmandos dos ciganos, a nuvem de corrupção, que – descobriram recentemente -ensombra o Estado e lhes dizem ser, só agora, dominante.
Outos, inquietam-se, porém, com problemas mais palpáveis, que sentem na carne e que, diretamente, lhes respeitam: a saúde própria ou de familiares, os despedimentos massivos, a precariedade dos empregos que restam, os salários diminutos que não compensam os investimentos que as famílias fizeram em licenciaturas, mestrados e doutoramentos, as pensões reduzidas, os subsídios sociais que não chegam para uma sobrevivência decente, os apoios que o Estado rateia às empresas de modesta dimensão e que deles, verdadeiramente, carecem por causa da pandemia.
Estes portugueses tanto podem ser professores, como trabalhadores de empresas de aviação, bancários, empregados de restaurantes, como, ainda, recém-licenciados à procura de um primeiro emprego, músicos, enfermeiros, médicos, cientistas, investigadores ou, ainda, donos de empresas ligadas ao turismo, à restauração e à cultura.
O regresso a uma vida normal aparece, assim, como uma aspiração quase generalizada dos portugueses.
Ela traduz-se, grosso modo, em melhores e mais acessíveis condições de saúde, em habitação digna, trabalho estável e, consequentemente, num rendimento justo e compatível com as qualificações de cada um, capaz de proporcionar, portanto, com regularidade e previsibilidade, uma vida decente para todos.
Uma vida que inclua, também, tempo para estar com a família, férias anuais revigoradoras, confraternização laboral, disponibilidade regular para conviver com os amigos e, com eles, intervir na vida que a todos respeita, e desenvolver, ainda, atividades culturais e desportivas.
Uma vida humana e, como tal, socialmente preenchida, tanto no plano pessoal, como cívico e espiritual.
É nessa normalidade renovada que, de momento, os portugueses depositam a esperança, apesar dos dramas artificiais alimentados por pequenos, mas já velhos, provocadores, que alguns media promovem e vendem como novidade requentada, mas que, em rigor, nada dizem sobre a realidade vivida pelos portugueses e, sobretudo, nada propõem para resolver os problemas quotidianos que os afetam.
Querer uma vida normal é, assim, por vezes, um desígnio verdadeiramente revolucionário, e isso é perigoso para quem promete um mundo novo, sem ser sério.
Por tal razão, há os que, permanente e propositadamente, empolam medos e catástrofes hipotéticas, procurando evitar que os portugueses comecem, de novo, a discutir objetivos concretos e soluções realistas e alcançáveis para os resolver.
A expectativa da normalidade da vida contrasta, visivelmente, com os intuitos dos que tudo fazem para que ela não aconteça e não tenha futuro.
O passado é tudo o que têm para oferecer como proposta: o seu passado de privilégios e de poder.
Num magnífico romance – que recomendo – chamado «Hotel Europa», Ilja Leonard Pfeijffer, o holandês que o escreveu, diz, a certo passo, com rara clarividência: «É uma ideia sedutora achar que a solução para os problemas atuais está em atrasar o relógio do tempo para o tempo em que os problemas não existiam. É esse o chamariz para o populismo de direita, cujo cerne é a nostalgia. Criam-se descontentamento e medos, alimentados e aumentados, para, de seguida, se apresentar um passado idílico e idealizado como solução.»
Um futuro que almeja uma vida normal é algo que não se deve confundir, portanto, com o fatalismo do passado.
Partindo das circunstâncias que existem e que sabemos que podem ser sempre melhoradas, um tal futuro, que se quer normal, exige, isso sim, a concretização de uma vida decente para todos e não apenas para os do costume, como antes acontecia.
A normalidade da vida a que se aspira reside, pois, num desejo humanista de justiça e num investimento concreto na sua realização quotidiana, contínua e crescente.
Se isso for percetível à maioria dos portugueses – se eles sentirem que estão a trabalhar, não apenas para remendar o passado, mas sim para construir um futuro melhor para todos – não haverá medos artificiais, alimentados ou empolados, que os desmoralizem e impeçam de lutar por uma vida normal e com futuro.
Um futuro que seja de todos e de cada um, à sua maneira.
É por isso que os que antes estiveram, e ainda hoje estão, do lado da Constituição – e muitos são, e de várias tendências – não podem deixar-se encantar por melodias passadistas tocadas por músicos pífios, mesmo que, por acaso, sorridentes.
É do lado da Constituição, e não do outro, que se encontram as soluções que ajudaram já, e vão ajudar ainda outra vez, a fazer um futuro melhor e mais decente para todos.