Kiev e a Guerra em Donbass. O nosso inimigo comum

Kiev e a Guerra em Donbass. O nosso inimigo comum


País recente, este é também um país profundamente ferido, forçado a enviar a sua geração de ouro para as fileiras, sem sequer escolher entre os militares de vocação e os meramente convocados em nome do patriotismo e da existência de um mal representado pelo “inimigo comum”. Não podem estar em paz os povos que vivem…


“Veja, Senhor Presidente, que a Crimeia não é a Abecásia”, era como os homens próximos de Vladimir Putin, o Presidente da Federação Russa, o aconselhavam nos meses que antecederam a anexação formal da península da Crimeia.

Dentro da Catedral de São Volodymyr, em Kiev, assistimos a uma celebração diária da Igreja Ortodoxa Ucraniana, mais leve e menos fervorosa do que os longos ritos russos que vimos em Sófia. Findo o ofício, os fiéis beijam os ícones do cristianismo como que despedindo-se, e o som dos sinos mistura-se com o reboliço vindo do exterior. A avenida do poeta Shevchenko foi temporariamente vedada, e uma frota de carros negros, escoltada por vários carros da polícia ucraniana, dirige-se a toda a velocidade para o Hilton. Um deles ostenta uma bandeira que faz parelha com os estandartes que desde esta manhã surgiram discretamente presos aos postes das principais avenidas da cidade: é a bandeira da Geórgia, com as suas cruzes vermelhas de Jerusalém.

Quando chegamos ao Hilton, já Salome Zourabichvili, a Presidente da Geórgia, entrou e subiu ao seu quarto, e apenas conversamos com a equipa que a acompanha, que nos distribui máscaras que simbolizam a amizade entre a Geórgia e a Ucrânia. É uma amizade com percalços, que a visita de estado ao Presidente Volodymyr Zelensky pretende consolidar, depois de um hiato de 15 anos.

Muito aconteceu às duas ex-repúblicas soviéticas durante este período. No que respeita à Geórgia, agravou-se a situação na Abecásia e na Ossétia do Sul, na sequência da Guerra Russo-Georgiana, em 2008. Sem qualquer controlo da situação de facto, a Geórgia mantém governos no exílio para ambas as “repúblicas”, reconhecidas por cerca de meia dúzia de países que seguiram o exemplo da Rússia. A Federação Russa, que apoiou os separatistas, continua no terreno, no contexto dos “acordos bilaterais” celebrados. Sobre o tema, fala-se pouco: não tem espaço nos nossos noticiários, e apenas me vou mantendo ao corrente, através dos jornais sírios, de alguns encontros entre o Presidente da Abecásia e Bashar Al-Assad, em Damasco. A Síria reconheceu-lhes a independência em 2018, não querendo eu dizer que se tratou de moeda de troca por qualquer tipo de favor militar.

Sei, isso sim, que a Crimeia não é a Abecásia. Como Donetsk e Luhansk, a chamada “Donbass” (que significa “Bacia do Rio Donets”), não são a Abecásia. No leste da Ucrânia, vivem muitos russos étnicos, o que torna o tema ucraniano muito mais complexo, e dificulta a sua resolução definitiva. Vladimir Putin defende-se, o que fez ainda há dias, afirmando estar a proteger os russos que habitam esses territórios, que a Ucrânia pretende entregar de bandeja aos governos de Washington, Paris e Berlim. A alternativa russa consiste em promover o estabelecimento de repúblicas independentes, controladas pelos separatistas de cada uma das províncias, vassalos de Moscovo – uma alternativa “abecasiana”.

Por outro lado, o poder do exército ucraniano permitiu ao país aguentar, a esforço, uma guerra que dura há sete anos, desde o Euromaidan, em 2014, e que continua a matar a um ritmo de mais de uma pessoa por semana, ritmo esse que vem crescendo em 2021.

É neste contexto que Salome Zourabichvili e Volodymyr Zelensky se encontram, para discutir soluções para dois países aparentemente sob ocupação estrangeira, e cujos conflitos armados mais não têm conseguido do que ceifar vidas às portas da “Europa”, sem que haja solução à vista, porque nenhum cessar-fogo celebrado em Minsk vale enquanto tal. A apresentação por ambos os países da pretensa candidatura à União Europeia não tirará aos conflitos o estatuto de notas de rodapé das páginas internacionais dos jornais europeus, feitas de destaques lentos como tanques de guerra, e mais frequentes de cada vez que a Rússia promove exercícios armados no que considera ser a sua fronteira, para lá enviando tanques e homens…

A política aos políticos. Na era de Saladino, já se relatava: “Os soldados empenham-se na guerra enquanto os povos estão em paz, e o mundo fica para quem o conquistar”. Porém, em Donbass, onde as batalhas continuam, que povos, e que paz?

“Quando agradecerem, façam-no em ucraniano” Este é o ponto de partida e o ponto de chegada da nossa viagem pela Ucrânia. As cidades, as vilas e as aldeias estão repletas de memoriais aos soldados caídos na guerra, a maioria deles jovens com menos de trinta anos, e também aos civis que, uma vez mais na história do mundo, preferiram tombar com as suas casas e as suas memórias, nas cidades onde nasceram e cresceram, a escapar para zonas seguras. País recente, este é também um país profundamente ferido, forçado a enviar a sua geração de ouro para as fileiras, sem sequer escolher entre os militares de vocação e os meramente convocados em nome do patriotismo e da existência de um mal representado pelo “inimigo comum”.

Não podem estar em paz os povos que vivem na incerteza da remessa dos caixões dos seus mortos, a partir de uma guerra a leste. As famílias vivem, mas existe uma guerra. Os pais trabalham, mas existe uma guerra. Os filhos vão à escola, saem à rua, divertem-se na noite, mas existe uma guerra. As praças iluminam-se em festa, as fontes simulam piscinas para os mais novos, os espetáculos de música e cores adentram-se pela noite, o ruído ouve-se de fora dos restaurantes, e os teatros de ópera recebem encenações do Lago dos Cisnes e concertos de Puccini, mas existe uma guerra.

Corajosa pátria, esta que não parou de sofrer desde tempos remotos, que viu a sua cultura e a sua língua oprimidas pelos grandes impérios de setecentos e oitocentos, tal como pelas conhecidas atrocidades de novecentos, que encheram Kiev de fantasmas. Ainda não acabou.

“Na Ucrânia, sabemos falar russo por subserviência ao poder central soviético. Porém, quando agradecerem, façam-no em ucraniano: dyakuyu. O meu filho já não aprende a língua russa e, como ele, os novos filhos da terra. Não somos russos”, diz-nos uma jovem ucraniana, com idade para ter comandado um dos protestos de 2014. É de identidade nacional que falamos, junto à Catedral de São Nicolau, no Mosteiro Pokrovsky. Foi um governante da Rússia a lançar a primeira pedra; talvez coubesse a um outro guardar hoje as pedras no saco.

Veja, Senhor Presidente, que esta terra de epitáfios e de velas, conjunto de culturas mutiladas e unidas sob o signo da cruz bizantina, vire-se mais para Este ou para Oeste, é a Ucrânia.