Sempre que, como agora, chegam ao conhecimento público novas investigações criminais com relevância pública e com implicações no sistema político, económico e financeiro nacional, adensa-se e espalha-se uma mesma perplexidade entre os pensadores e comentadores que pontificam nos media portugueses.
Poderia dizer que a essa perplexidade se evidencia, precisamente, também, quando e se as notícias de abertura de investigações criminais, relativas a casos da mesma índole, entretanto publicitadas, tardam ou não surgem.
Não é dessa pequena, mas, mesmo assim, significativa incoerência que quero, contudo, aqui falar.
A perplexidade que, desta vez, emergiu, não sem algumas contradições evidentes, relaciona-se antes com a dificuldade de a investigação criminal conseguir diferenciar, desde logo, o que são apenas atentados à ética da política e da boa governação democrática, do que são já os atos qualificados pela lei penal como crimes.
Foi procurando acompanhar tais perplexidades e as reflexões que, a seu propósito, foram recentemente evidenciadas, que me veio à memória, de novo, o agora tão citado brocardo «à política o que é da política, e à justiça o que é da justiça».
Ora, a este propósito, há mesmo que fazer um compasso de espera reflexivo e procurar entender se é possível, e em que medida, estabelecer tal distinção de responsabilidades.
Como pensar, rigorosamente, estes dois planos de avaliação dos atos potencialmente reprováveis.
Em primeiro lugar, é necessário relembrar que a previsão legal de uma dada factualidade como crime só se justifica quando o seu desvalor ético se constitui, ante a sociedade, como suficientemente grave e merecendo, por isso, mais do que uma simples censura moral, política ou social.
Logo, antes mesmo de, sobre tal factualidade, dever incidir um juízo de natureza criminal – com as consequências que dele derivam – a situação que se entende como reprovável e contrária à vida decente em sociedade foi já alvo, fatalmente, de um juízo social negativo.
É a importância de tal censura social que determina se um ato deve, ou não, ser criminalmente punível e não o contrário.
É, pois, num plano de precedência lógico-temporal que devemos apreciar a oportunidade da censura política e, só depois, também, a da possível censura criminal.
Diremos, assim, que, se a censura e a sanção política – enquanto práticas socialmente assumidas – se exercerem, atempadamente, com rigor e efetividade, a intervenção judicial de natureza criminal encontrará, inevitável e felizmente, menor espaço e oportunidade para se manifestar.
Acresce que, na vida moderna, e mais especificamente no que diz respeito à criminalidade económica e financeira, nem sempre é fácil estabelecer fronteiras seguras entre o que é e o que deve ser apenas política e socialmente reprovável, e o que, além disso, é já criminalmente condenável.
As leis correm lentas atrás da vida, dos procedimentos administrativos e das práticas mais inovadoras dos negócios financeiros e nem sempre os conseguem definir e prevenir em tempo com a precisão necessária.
O problema da distinção entre o puro plano ético de reprovação e o plano criminal adensa-se, ainda, quando – como acontece no mundo atual – o regime político, social e económico admite – e incentiva, mesmo – a participação de entidades destinadas, no essencial, à realização do lucro próprio, nos projetos das entidades, institucional e constitucionalmente, encarregadas de realizar apenas o bem comum.
Falo, claro, do papel da iniciativa privada, vocacionada, naturalmente, para o lucro próprio, na realização dos projetos políticos destinados, por essência, a assegurar interesses supra individuais.
Estamos, em tais casos, perante deontologias sociais distintas à partida, cuja compatibilização posterior se mostra – tanto no plano moral, como, sobretudo, legal – sumamente difícil.
E, aqui, queiramos ou não, entramos já, necessariamente, numa discussão política e ideológica.
Uma discussão sobre a virtualidade da lei enquanto instrumento que, supostamente, nas sociedades atuais, deve assegurar, antes do mais, um equilíbrio entre éticas não coincidentes e permitir fazer valer, concomitantemente, valores distintos, contraditórios, quando não antagónicos.
Daí que, cada vez mais, a lei penal procure abranger, sem as especificar muito, factualidades limite.
Razão pela qual, frequentemente, também, os efeitos exemplares que a sociedade espera da sua aplicação se defraude.
E, pelo mesmo motivo ainda, muitas investigações criminais tendam a avançar, um pouco às apalpadelas, varrendo tudo e procurando, depois, separar o pouco trigo do muito joio, até encontrarem as mais restritas condutas que a lei, efetivamente, quer punir.
Esse é, porém, o preço a pagar pela confusão essencial que o sistema que, em geral, nos governa a todos – e que se refinou com as políticas neoliberais – introduziu na vida das nossas sociedades.
Não é fácil, com efeito, compatibilizar, no plano ético e moral, a eleição do lucro privado com a realização do bem comum.
Mais difícil é, ainda, censurar, coerentemente, comportamentos que se orientam, no fundamental pela lógica económica prevalecente, mas que contradizem, simultaneamente, o discurso político e social que, ainda, é difundido como o moralmente mais correto.
Por isso, a avaliação política das práticas ética e socialmente assumidas como reprováveis, que se desenvolvem no plano dos movimentos económico-financeiros e, mais ainda, no das parcerias público-privadas, se esvanece quase sempre e remete, não sem algum oportunismo, para a prévia apreciação judicial do que é ou não é crime e, só depois – e não antes, como deveria – proclama o seu veredicto moral.
A investigação judicial e a censura penal que, eventualmente, dela emane, correm, assim, o risco de funcionarem, sobretudo, como artifício indispensável e como justificação social imprescindível a uma inicial atitude de indiferença ética e à subsequente inação da política ante os atos moralmente condenáveis, que, também, costumamos situar no espaço da vida onde sobreleva a chamada criminalidade económico-financeira.
O risco que decorre desta estratégia de deslegitimação e anulação recíprocas dos juízos políticos e judiciais – deste impasse – consiste no descrédito dos instrumentos políticos de controlo democrático e, também, nos do Estado de Direito.
A fricção e a consequente erosão da eficácia pública destes dois planos de responsabilidade e censura social podem, porém, vir a ser fatais para a Democracia.