Na semana passada escrevi que «… na UE nem sempre é evidente que uma coisa é a comunicação rápida de pedidos e respostas ou de elementos de prova necessários às investigações e outra, bem diferente, é a necessidade de coordenação das investigações que decorrem em diferentes países da Europa, ou fora dela, por parte das autoridades judiciárias que as tutelam.»
Este é, de facto, o grande equívoco que ocasionará – se ignorado e não deslindado com rigor e sapiência – soluções que nada remedeiam e podem, inclusive, fazer retroceder o caminho de compreensão e confiança mútua que se vem desenvolvendo com cautela, mas com empenho coletivo, entre as autoridades judiciárias dos Estados-Membro da UE e entre as destes e de muitos países terceiros.
Muitos são, de facto, os problemas jurídicos que importa resolver quotidianamente – que são efetivamente solucionados todos os dias – e que se não reduzem a saber quem é a autoridade judiciária competente de um dado país, para onde enviar e executar um mandado de detenção europeu (MDE) ou uma decisão europeia de investigação (DEI).
Saber, por exemplo, se há condições para perseguir criminalmente um nacional, por um crime praticado contra outro nacional no território de um outro país onde tal crime não foi participado, nem investigado, ou acusado, não é simples.
Importa conhecer e entender bem, entre outros aspetos, a lei vigente nos dois países, à época dos factos, saber como e quando ocorre a prescrição do direito à queixa e a do procedimento criminal, em ambos os países, e a influência que o regime de tais prescrições, no território do país onde foi praticado o crime, possa ter no do Estado da nacionalidade do criminoso e da vítima.
Abordei esta situação, apenas para que se compreenda como não basta, para que um processo possa prosseguir linearmente num dado país, trocar documentos, cópias de leis e elementos de prova entre autoridades nacionais distintas.
É preciso, também, uma troca de opiniões jurídicas, que vai muito além dos dados que se permutam através de plataformas digitais.
Até para selecionar os dados que são relevantes e importa partilhar, é necessário um diálogo informado entre autoridades judiciais dos países envolvidos.
E estas, não raro, não falam a mesma língua.
O mesmo se diga das condições e da prioridade na execução de um MDE quando, por exemplo, os crimes cometidos por alguém o foram em períodos contínuos e em territórios de Estados distintos e que têm contra o autor das mesmas investigações paralelas, podendo estas abranger, ou não, todos ou parte dos factos ocorridos em alguns desses Estados.
Só um diálogo direto entre autoridades judiciárias nacionais, tendo em vista a coordenação precisa dos processos de inquérito e um acordo jurídico sobre as condições, o momento e lugares da procedibilidade de tais crimes, pode, com efeito, resolver as muitas dúvidas e obstáculos legais que – mesmo que só aparentes – sempre se evidenciam quando há investigações transfronteiriças ou autónomas, mas paralelas.
A discussão das diferentes lógicas jurídicas que enformam os distintos regimes legais é um trabalho constante e delicado, que congrega os magistrados de diversos países destacados no seio da Eurojust e que, através desta, convoca, necessariamente, também, o contributo das autoridades judiciárias nacionais respetivas.
Um tal diálogo só pode ocorrer, porém, quando os procuradores ou juízes de instrução dos Estados envolvidos encontram um espaço institucional comum e o apoio experimentado nesse tipo de diálogo dos seus colegas na Eurojust.
Talvez esse trabalho de verdadeira filigrana jurídica não seja visível de fora da Eurojust e, em muitos casos, nem sequer seja percetível e valorado devidamente no seu seio.
Todavia, é ele o único que justifica a existência desta agência europeia, que, verdadeiramente, em nada se assemelha, na sua estrutura, nos seus procedimentos operacionais e nos seus objetivos, a outras agências e unidades orgânicas da UE.
Não se assemelha, nem tem, necessariamente, que se assemelhar, pois lida, através de verdadeiros magistrados aí colocados pelos Estados-Membros, com autoridades judiciárias nacionais, todas elas autónomas e independentes do poder político nacional ou europeu.
A Eurojust, em rigor, não investiga, mas contribui, com a sua iniciativa, apoio e aconselhamento jurídico, para o sucesso das investigações desenvolvidas nos diferentes Estados da UE e nos que com ela colaboram.
Neste aspeto, tal atividade tem tudo de judicial e nada de executivo.
Por isso, o seu trabalho – mesmo que juridicamente delicado, muito intenso e necessariamente rigoroso e especializado – raramente pode, com verdade, ser invocado para exibir resultados espetaculares e erguer os troféus mediáticos que alguns tanto gostam de ostentar.
O seu trabalho não é, no entanto, por isso, menos relevante para a justiça europeia e mundial e não deve, assim, deixar de ser apoiado e promovido, tanto a nível europeu, como a nível de cada país.
A centralidade do seu papel –dentro e fora da UE – constitui um trunfo dos valores humanistas europeus no contexto da realização mundial do Estado de Direito.
Do seu continuado aperfeiçoamento e do dos seus instrumentos jurídicos e materiais resultam – mesmo que não se deixem ver com facilidade – muitos avanços nas mais diversas investigações judiciais em matéria criminal.
Assente num fórum permanente de membros nacionais, adjuntos e assistentes de todos os Estados da UE – também eles verdadeiras autoridades judiciárias nacionais -, contando, ainda, com a colaboração dos inúmeros magistrados de ligação que ali estão sediados e, bem assim, com uma extensa rede dos pontos de contacto em muitos países, a Eurojust intervém, perseverante e conscienciosamente, na realização da Justiça na Europa e em todo o mundo.
Pensar prescindir dela, ou procurar mudar-lhe a sua cultura judiciária plural, fundada na independência das autoridades judiciais dos países que a integram e com ela colaboram, será um erro: um erro que a Justiça, na Europa e fora dela, pagará caro.