Houve duas mensagens enviadas pelas autoridades aos cidadãos durante esta pandemia que se mostraram totalmente absurdas. A primeira foi a de que “vai ficar tudo bem”, como se o país fosse alguma vez ficar bem com o número de mortos a ultrapassar os 17.000 e uma crise económica sem precedentes, com incumprimento generalizado de contratos, encerramento de empresas e desemprego a disparar. A segunda foi a de que cada português deveria ser um agente de saúde pública, controlando não apenas o seu próprio comportamento, mas também o comportamento dos outros, mesmo sem estar investido das competências legais para o fazer. Essa mensagem estimulou um ambiente de delação generalizada e de atitudes discriminatórias, a que já não assistíamos desde o tempo do Estado Novo.
Surge agora um novo passo, instituído através da Resolução do Conselho de Ministros 91-A/2021, de 9 de Julho, a qual passou a estabelecer que nos concelhos com risco mais elevado, aos sábados, domingos e feriados, bem como às sextas-feiras a partir das 19:00 h, o funcionamento de estabelecimentos de restauração, para efeitos de serviço de refeições no interior do estabelecimento, apenas é permitido para os clientes que apresentem certificado digital Covid da União Europeia, ou sejam portadores de um teste com resultado negativo. Da mesma forma, o acesso a estabelecimentos turísticos ou a estabelecimentos de alojamento local, independentemente do dia da semana ou do horário, depende da apresentação, pelos clientes, no momento do check-in, de certificado digital Covid ou de um teste com resultado negativo. Foi ainda publicado o Decreto-Lei 56-B/2021, de 7 de Julho, para sancionar com coima quer os clientes que não apresentem os referidos certificado digital e teste, quer os responsáveis que não os solicitem e verifiquem.
Este novo regime é absolutamente discriminatório para os clientes de restaurantes e hotéis. Salienta-se, em primeiro lugar, que o número da população portuguesa totalmente vacinada não chega ainda a 40%, pelo que a maioria da população não tem acesso a esse certificado, estando assim o país a estabelecer uma verdadeira discriminação sanitária das pessoas, privilegiando as que já estão vacinadas. Já os não vacinados terão que sistematicamente realizar testes de diagnósticos, sem o que serão privados do acesso a certos estabelecimentos comerciais. Esta discriminação é tanto mais injusta, quando a vacinação não depende da escolha do próprio, mas do lugar em que as autoridades de saúde o colocam na fila para esse efeito.
Para além disso, a determinação da recolha de certificados e testes nos estabelecimentos comerciais implica converter simples empregados de hotéis ou de restaurantes em verdadeiros agentes de polícia sanitária, encarregados de proceder à vigilância epidemiológica das pessoas que frequentem os seus estabelecimentos, recolhendo para esse efeito os seus dados de saúde. Ora, nos termos do artigo 9º, nº1, do Regulamento Europeu de Protecção de Dados é proibido o tratamento de dados pessoais, relativos à saúde, apenas sendo legitimado o mesmo, nos termos do nº2, i) do mesmo artigo no caso de “motivos de interesse público no domínio da saúde pública, tais como a proteção contra ameaças transfronteiriças graves para a saúde ou para assegurar um elevado nível de qualidade e de segurança dos cuidados de saúde e dos medicamentos ou dispositivos médicos, com base no direito da União ou dos Estados-Membros que preveja medidas adequadas e específicas que salvaguardem os direitos e liberdades do titular dos dados, em particular o sigilo profissional”. Não nos parece que as novas medidas estabelecidas correspondam a este requisito, mas em qualquer caso desrespeitam seguramente o art. 29º, nº2, da Lei de Execução do Regulamento Europeu de Protecção de Dados, a Lei 58/2019, de 8 de Agosto, o qual dispõe que “nos casos previstos nas alíneas h) e i) do n.º 2 do artigo 9.º do RGPD, o tratamento dos dados previstos no n.º 1 do mesmo artigo deve ser efetuado por um profissional obrigado a sigilo ou por outra pessoa sujeita a dever de confidencialidade, devendo ser garantidas medidas adequadas de segurança da informação”. Manifestamente que os empregados de hotéis e restaurantes não preenchem estas características, não sendo profissionais qualificados para a recolha de dados de saúde.
Tenho referido que esta pandemia tem vindo a pôr em causa as regras básicas do Estado de Direito em Portugal. Agora entrámos na fase da segregação sanitária e da ausência de tutela dos dados de saúde das pessoas. Vejamos o que se vai seguir.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990