Morreu Christian Boltanski, o artesão da memória

Morreu Christian Boltanski, o artesão da memória


Morreu esta quarta-feira, aos 76 anos e na sequência de um cancro, Christian Boltanski, um dos mais conceituados artistas plásticos da atualidade.


Nascido em Paris, em 1944, de ascendência judaica, irmão do conhecido sociólogo Luc Boltanski e casado com a também artista Annette Messager, Boltanski ficou conhecido pela forma como trabalhou ao longo dos anos o tema da memória e, em especial, a relação desta com a Solução Final – holocausto, com o seu sentido religioso, é um mau termo para descrever a indústria de morte que os alemães montaram durante a 2.ª Guerra Mundial. Começando na década de 60 do século passado, Boltanski foi próximo, durante os primeiros anos, de Jean de Lac, um outro artista francês, e de Anette Messager, com quem trabalhou em conjunto, e contemporâneo de um conjunto de artistas franceses cujo grupo ficou conhecido como  nouveau réalisme – Daniel Spoerri, um dos mais interessantes, deu-nos os seus Tableau-Piège, quadros feitos da desordem dos restos de uma mesa.

As suas obras mais conhecidas são, sem dúvida, aquelas em que utiliza imagens encontradas, ampliando-as, por vezes, até se tornarem dificilmente visíveis, ou as diversas instalações que fez com peças de roupa amontoadas. As primeiras, como, por exemplo, 364 Suisses Morts, em exposição no Museu Coleção Berardo, ganham muitas vezes uma aura religiosa ou fantasmagórica: a luz crua incidindo sobre estes rostos desconhecidos, tantas vezes desfocados devido à ampliação da imagem, lembram ora esse motivo religioso, para que concorre a fraca luminosidade, ora uma dimensão fantasmagórico, à semelhança das figuras que projeta na parede – Ombres, à semelhança de diversas outras instalações, é composto por figuras pequenas espalhadas no chão da galeria que, iluminadas por focos de luz, projetam sombras fantasmagóricas, Les Draps são fotografias iluminadas tapadas por um pano branco, como se se tratassem, de facto, de fantasmas 

Da mesma forma que facilmente se parte das peças coloridas de roupa amontoadas para as conhecidas imagens da Solução Final – para uma exposição no Grand Palais, em Paris, a pilha de roupa tinha 10 toneladas -, o uso das fotografias ampliadas, com pequenas lâmpadas por cima ou iluminadas de uma outra forma, não pode deixar de conferir uma dimensão religiosa a esta obra. Mas é preciso compreender que essa religiosidade que parece surgir como um efeito das obras de Boltanksi é bastante difusa, popular ou mesmo kitsch, apostada numa emocionalidade directa. A arte parece retornar a uma dimensão cultual com todas essas roupas e estas imagens fotográficas, mas esta dimensão cultual parece andar próxima de uma religião popular – com certos motivos medievais. As imagens, as roupas, as figuras projetadas no teto ou nas paredes, tudo isso lembra relíquias, objetos que conservam uma ligação imediata, direta, com a pessoa a quem pertenciam.

Mas tudo isto, os motivos religiosos, a dimensão fantasmagórica de certas peças, a longa meditação sobre a Solução Final – a ligação da imagem à morte, bastante glosada quando Boltanski começa a trabalhar – é contrabalançado por um humor, tantas vezes soturno, sem dúvida, negro – judaico, talvez -, que nunca deixou de se libertar da obra de Boltanski e que, em última análise, acaba por colocar sob suspeita as ligações demasiado fáceis que sobre ela se podem estabelecer. 

Os Essais de reconstituition, da década de 70 do século passado: usando um dispositivo visual próximo aos dos museus de História Natural – por diversas vezes Boltanksi falou na sua dívida para com o Musée de l’Homme, em Paris -, Boltanski junta objetos que, teoricamente, teriam feito parte da sua vida entre 1948 e 1954. São objetos da sua infância (uma outra obsessão de Boltanski é a infância), desaparecidos, mas, contrabalançando esta “reconstituição”, o que encontramos são objectos feitos de plasticina, mal feitos, como se a memória só se pudesse produzir a partir deste tipo de restos. 

Este uso de meios pobres para reactivar a memória, como encontramos nos Essais, vai ser uma constante ao longo do trabalho de Boltanski. Também da década de 70, Les Inventaires partem de uma carta que enviou a 62 museus (museus de História Natural e de Ciência, principalmente, mas também a alguns curadores) onde pedia que estes, numa das suas salas, usando vitrines e etiquetando cuidadosamente tudo, dispusessem todos os objetos de uma pessoa anónima já morta que funcionassem como “testemunhas da sua existência”. Estes objectos – chegou a contornar as suas próprias regras, usando objectos de amigos – são do mais banal que se possa imaginar: cadeiras, roupa interior, lenços, quadros, todos estes restos onde uma vida, quase no limiar do desaparecimento, ainda ecoa além da morte – numa fronteira instável, nem ainda totalmente morta nem já viva. Nestes inventários – o título é legalista, anódino – encontramos diversos motivos que vão percorrer a obra de Boltanski. Uma preocupação com o banal, com o que parece desprovido de história, que também encontramos em Les Images Modèles, Le voyage de noces à Venise ou Album de Photos de la Famille D.. Se la voyage, produzido em conjunto com Annette Messager, explora os clichés das viagens de núpcias através de um conjunto de imagens estilizadas, Les Images Modèles e Album de Photos – este último é composto por fotografias pessoais do galerista Michel Durand – demonstram tanto essa preocupação com o banal, mostrando, na realidade, que este é de difícil apreensão, como também este efeito imediato, direto, que Boltanski vai perseguir em diversos momentos: é preciso que qualquer pessoa reconheça e se reconheça nessas imagens estilizadas.

Um outro motivo maior que se encontra ao longo de toda a obra de Boltanski é uma aparente ausência de história que estas imagens acabam por adquirir – tanto no sentido em que elas parecem encontrar-se à margem dos acontecimentos maiores do tempo como, também, no facto de não conseguirmos reconstituir quase nada a partir delas. Uma das formulações mais interessantes que Boltanski usa para descrever o seu trabalho é o de “pequena memória”:

“A grande é gravada em livros, mas a pequena tem tudo que ver com coisas minúsculas: trivia, piadas. Parte do meu trabalho tem sido uma tentativa de preservar esta última porque muitas vezes, quando alguém morre, essa memória desaparece. No entanto, é ela que faz as pessoas diferentes umas das outras, é ela que as faz únicas. São muito frágeis”

É esta pequena memória que tantas vezes encontramos em Boltanksi – evanescente, à beira do desaparecimento, frágil e periclitante. São pequenos restos de uma vida, necessariamente anónima, que cabe a nós tentar reconstituir sabendo, no entanto, que temos sempre uma fraca força messiânica (para convocarmos uma conhecida formulação). É o ar destas vidas, digamos assim, os objetos que sobrevivem por pouco tempo.

Mas esta pequena memória cruza-se, muitas vezes, com a grande, com a história. Quando foi decidida a construção do Memorial do Holocausto – a obra ficará ao cargo de Peter Einsemann, que começará por trabalhar com artista norte-americano Richard Serra, depois de uma extensa polémica – Boltanski foi convidado a apresentar uma proposta, mas rejeitou com o argumento que já tinha feito o seu próprio memorial. Referia-se a La Maison Manquante, que de memorial tem pouco. Esta obra consiste em dois momentos diferentes: Boltanski começou por colocar placas, nas paredes laterais de dois prédios, com o nome dos habitantes de um edifício que já não existe – desapareceu num dos bombardeamentos a Berlim na 2ª Guerra Mundial – e, posteriormente, nas ruínas de um antigo museu, mostrou a documentação que resultou de um extenso trabalho de investigação. Não parece haver aqui memória nenhuma, apenas o trabalho meticuloso de reunião de informações sobre vidas anónimas que, no acaso do tempo, se cruzaram com a história – e esse cruzamento, como facilmente se intui, só pode ser catastrófico, acabando por adquirir uma dimensão desesperante.

Se Boltanski foi um dos artistas mais interessantes dos últimos decénios isso deveu-se ao facto de as obras dele nunca terem estabilizado um sentido qualquer, oscilando tantas vezes entre caminhos divergentes, antagónicos ou mesmo contraditórios. Les Abonnés du Téléphone, por exemplo, demonstra bem esta dissimetria: é um conjunto de listas telefónicas de todo o mundo e apenas isso, nada mais do que nomes, moradas e números de telefone. Tem aquela aridez, aquela neutralidade, que estas informações burocráticas costumam ter. Mas é aqui que entra a imaginação: observando aquele conjunto de informações reduzidas ao mínimo, nada, de facto, se pode saber, mas quem pegue numa das listas telefónicas, seja esta da sua cidade ou de outra, pode sempre imaginar todas aquelas vidas reduzidas a meia dúzia de elementos. 

Mas, ao mesmo tempo há este humor – negro, soturno – que nos sacode. Menschlich é, à semelhança de tantas outras obras, um conjunto de fotografias ampliadas (1200), que Boltanski selecionou de trabalhos anteriores. Nestas encontramos, lado a lado e sem sabermos quem é quem, assassinos e vítimas. O título, seco, irónico, é “Humano”. É a história, é o tempo, mas cheia desta “desordem, estupidez e crueldade” – de onde não se retira qualquer lição, qualquer moral.