Desde que me lembro que a reforma da Justiça aflui nos discursos políticos da democracia quando se aproximam eleições.
Que a Justiça tem problemas, é consensual.
Paula Teixeira da Cruz, não há muito tempo, quando Ministra da Justiça, ensaiou a sua reforma da Justiça, mesmo que condicionada pelas exigências financeiras dos tempos da Troika.
Entre outras mudanças, contam-se a publicação dos novos códigos de processo na área da justiça civil e administrativa e, numa continuidade de propósitos, a reformulação e a superação de aspetos menos bem conseguidos da nova filosofia orgânica e do novo mapa judiciário, herdados do anterior governo do PS.
Procurou, pois, intervir, precisamente, nas áreas jurídico-funcionais e técnico-burocráticas que maioritariamente eram, na altura, consideradas por todos, como obstáculos ao bom andamento dos processos nas jurisdições mais críticas.
Fez aquilo que considerava importante, procurando sempre um consenso alargado.
Nesse seu plano, e porque os conhecia bem, não se incluía, todavia, a politização dos conselhos superiores das magistraturas.
Avançou, ainda assim, com projetos sobre a reforma dos estatutos de magistrados, mas, manifestamente, faltou-lhe tempo para amadurecer ideias e para conseguir um apoio alargado para concretizar mudanças que demonstrassem ser úteis.
Fez a sua reforma: a que pôde.
Muito do trabalho desenvolvido no tempo dela, mesmo que com variações relevantes, veio, no entanto, a ser aproveitado e, assim – uma vez mais sem ruturas radicais supérfluas – foi possível alterar, depois e bem, os estatutos e a organização das magistraturas.
Quer por iniciativa própria, quer para adequar muita legislação às orientações europeias, os Governos que se sucederam, mudaram e estão a mudar, entretanto, inúmeros diplomas nacionais, regulando de forma inovadora matérias referentes a áreas substantivas, processuais, procedimentais e tecnológicas.
Não há – nunca houve -, ano, mês e dia em que, desde que a democracia é democracia, se não se reforme a Justiça, modificando, mais ou menos profundamente, os seus instrumentos.
Se olharmos, por exemplo, para o Código de Processo Penal, verificamos que, desde a sua aprovação em 1987, ele sofreu já 43 modificações.
O Código Penal, aprovado em 1982, foi, por seu turno, reformado em 1995 e alterado, depois, 52 vezes.
A Lei Orgânica do MP, de 1986, teve 14 versões e, já enquanto Estatuto do MP, vai na segunda reforma.
O Estatuto dos Magistrados Judiciais teve, desde a sua aprovação em 1985, 19 versões.
Todos, ou quase todos, os diplomas – incluindo a Constituição – que reformaram e mudaram a face da Justiça passaram pelo crivo, pela discussão e aprovação dos deputados que, desde o 25 de Abril, constituíram a Assembleia da República.
Curiosamente, quase todos esses diplomas recolheram um amplo apoio, que abrangeu, na maioria dos casos, as duas principais bancadas parlamentares.
Dizer que a Justiça está, pois, à espera da reforma que nunca foi feita exige, pelo menos, que se esclareça o que se quer reformar, para quê e para quem.
A Justiça não é apenas mais um serviço público: ela, goste-se ou não, constitui um poder constitucional independente que reconhece e realiza direitos e cujo exercício é balizado por eles.
É claro que a Justiça é, ainda hoje, demasiado cara para a maioria dos cidadãos, que, assim, veem dificultada a possibilidade de realização efetiva dos seus direitos sociais e civis.
É óbvio que existe, também, um circuito demasiado complicado no tratamento dos processos e dos seus recursos, que atrasa, desnecessariamente, o seu andamento e conclusão.
Claro está que, apesar dos importantes passos dados, nos últimos anos, na desmaterialização dos processos e no seu processamento digital, ainda se pode fazer mais e melhor: haja dinheiro, venha ele de onde vier.
Dinheiro, também, é necessário para perícias judiciais e para o reforço e especialização de investigadores.
Parece, todavia, evidente que, para mudar o funcionamento a Justiça, é preciso mais.
É necessário, desde logo, alterar rotinas, procedimentos obsoletos e, sobretudo, preconceitos antigos.
Para tanto, impõe-se, todavia, reinventar a formação dos juristas e, em especial, a formação dos magistrados e dos advogados.
Sempre advoguei a necessidade da existência de fases de formação conjunta que, de alguma maneira, fossem capazes de criar e fomentar o respeito mútuo, o entendimento e a confiança entre eles, facilitando, desse modo, a maneira como lidam com os casos.
Criar, enfim, uma cultura judiciária comum: uma cultura judiciária comum e democrática.
Se se advoga, e bem, a confiança mútua entre autoridades judiciárias dos países europeus como método de agilizar o reconhecimento das respetivas decisões e permitir uma cooperação mais eficaz entre elas, é natural que se formem, também, os agentes judiciários nacionais nesse espírito e nessa prática.
Sem confiança mútua, sem uma cultura judiciária comum, não há reformas que sejam bem-sucedidas.
Se se quer uma justiça menos burocrática e mais eficaz, não se pode, porém, olvidar o mais do que importante papel que nela têm – ou devem ter – os oficiais de justiça e a formação inicial e contínua de que, para isso, necessitam.
Tenho para mim que as principais mudanças de que a Justiça carece se situam, assim, no plano da formação e no da alteração da cultura dos seus agentes: das suas mentalidades.
E isso, reconheça-se, não é tarefa fácil.
Leis novas houve-as sempre muitas, mas, comprovadamente, a sua leitura foi sempre informada por uma cultura antiga que reproduzia a das mais velhas: aquelas leis do antigamente que alguns tanto elogiam, agora.
Não bastam, com efeito, mudanças legislativas – e muitas leis – para que a Justiça consiga assumir um rumo novo: um rumo mais objetivo, menos burocrático, menos processual e mais incisivamente resolutivo.
Talvez fosse bom, por isso, que, os que defendem, agora, a «verdadeira reforma da Justiça», enunciassem claramente o que desejam, pois de proclamações fátuas e de reformas de papel estão os cidadãos fartos.