O presidente negacionista e o coveiro filósofo


Bolsonaro negou a ciência e com isso roubou ao seu povo o direito ao otimismo e à liberdade. A Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga a conduta do Governo na gestão da pandemia está a confirmar que existiu uma política ativa de negligência.


No mês em que o Brasil passou a marca dos 500 mil mortos por COVID-19, a revista Piauí publicou uma série de artigos dedicados à tragédia, entre eles a história de Osmair Cândido “o coveiro filósofo”. É por voz própria que Cândido explica como procurou na filosofia clássica alemã a racionalidade que a natureza parecia ter esgotado na nova vertigem da sua função. Compreende-se. Até na morte deve haver uma cadência e em junho a Covid ultrapassou-a, matou um brasileiro a cada 44 segundos.

Mas Cândido leva consigo “um mote da filosofia kantiana”: “A minha liberdade está no cumprimento do meu dever. Sou sepultador, eu tenho de sepultar. Não há mais nada que possa ser feito. Eu posso lamentar, me sentir amargurado, triste e despedaçado, mas tenho de sepultar. A vida de um coveiro parece simples, mas não é”.

Ao ler a história de Cândido não consegui deixar de pensar em como se terá sentido quando ouviu dizer que as políticas de cumplicidade com o vírus fariam de Bolsonaro o coveiro do Brasil. É injusto. Porque Cândido é sepultador, tem de sepultar, cumprir a sua obrigação, enquanto Bolsonaro é negacionista por opção falhando nas suas responsabilidades. Bolsonaro reclama a liberdade de “ir e vir”, de não usar máscara, de rejeitar as vacinas e até de negar a ciência. Cândido sabe que a sua liberdade não pode escapar à verdade dos mortos por sepultar.

Bolsonaro negou a ciência e com isso roubou ao seu povo o direito ao otimismo e à liberdade. A Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga a conduta do Governo na gestão da pandemia está a confirmar que existiu uma política ativa de negligência. Uma fraude que prometia a salvação da economia e da liberdade individual em troca da irresponsabilidade sanitária.

A CPI concluiu que o Ministério da Saúde forneceu orientações a médicos de todo o país para que a hidroxicloroquina fosse prescrita como tratamento contra a covid-19, apesar dos pareceres da Sociedade Brasileira de Infectologia atestarem a “ineficácia comprovada do medicamento”. Também chegou a indícios de que o Presidente do Brasil nada fez depois de saber que o Estado foi lesado na compra de vacinas 1000% acima do preço. Segundo o vendedor, o Governo de Bolsonaro terá pedido uma luva de 1 dólar por dose. Vidas vendidas por 5 reais.

O problema é que, meio milhão de mortos depois, a moeda de troca nunca chegou. A economia pagou em pobreza e desemprego o tal oásis de liberdade garantido por Bolsonaro. O crescimento do PIB acima do esperado é cortina de fumo para a realidade cruel de um  país que nunca teve tantos desempregados e onde os índices de pobreza aumentam ao mesmo tempo que a inflação elevada agrava o poder de compra. Há 19 milhões de brasileiros em situação de fome no Brasil, mais 9 milhões de pessoas do que em 2018.

A pandemia faz cair a máscara do recuo do já frágil estado social e deixou em confinamento apenas quem tinha possibilidades económicas para o isolamento. O sofrimento é duplo: o prolongamento de uma pandemia descontrolada continua a ferir os setores mais pobres, incapazes de se proteger, a quem resta tentar sobreviver à doença ou à fome.

O negacionismo é um projeto de obscurantismo, de regresso à Idade Média. E é um projeto que se alimenta da desigualdade social. O Wellcome Global Monitorum, um estudo de 2018 que investigou a posição da população de 140 países em relação a questões de ciência e de saúde chegou a dois resultados interessantes: a correlação entre a desconfiança na ciência e o descrédito de outras instituições, como os Governos ou a Justiça; e a distribuição dos resultados por níveis sócio-económicos, concluindo que pessoas que afirmam ter uma existência confortável confiam mais na ciência do que aquelas que se dizem em dificuldades, e que as sociedades mais desiguais tendem a desconfiar mais da ciência. Também aqui Cândido encontrou a sua liberdade.

Só podemos desejar que o Brasil encontre a sua no processo de impeachment de Jair Bolsonaro.

 

Deputada do Bloco de Esquerda


O presidente negacionista e o coveiro filósofo


Bolsonaro negou a ciência e com isso roubou ao seu povo o direito ao otimismo e à liberdade. A Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga a conduta do Governo na gestão da pandemia está a confirmar que existiu uma política ativa de negligência.


No mês em que o Brasil passou a marca dos 500 mil mortos por COVID-19, a revista Piauí publicou uma série de artigos dedicados à tragédia, entre eles a história de Osmair Cândido “o coveiro filósofo”. É por voz própria que Cândido explica como procurou na filosofia clássica alemã a racionalidade que a natureza parecia ter esgotado na nova vertigem da sua função. Compreende-se. Até na morte deve haver uma cadência e em junho a Covid ultrapassou-a, matou um brasileiro a cada 44 segundos.

Mas Cândido leva consigo “um mote da filosofia kantiana”: “A minha liberdade está no cumprimento do meu dever. Sou sepultador, eu tenho de sepultar. Não há mais nada que possa ser feito. Eu posso lamentar, me sentir amargurado, triste e despedaçado, mas tenho de sepultar. A vida de um coveiro parece simples, mas não é”.

Ao ler a história de Cândido não consegui deixar de pensar em como se terá sentido quando ouviu dizer que as políticas de cumplicidade com o vírus fariam de Bolsonaro o coveiro do Brasil. É injusto. Porque Cândido é sepultador, tem de sepultar, cumprir a sua obrigação, enquanto Bolsonaro é negacionista por opção falhando nas suas responsabilidades. Bolsonaro reclama a liberdade de “ir e vir”, de não usar máscara, de rejeitar as vacinas e até de negar a ciência. Cândido sabe que a sua liberdade não pode escapar à verdade dos mortos por sepultar.

Bolsonaro negou a ciência e com isso roubou ao seu povo o direito ao otimismo e à liberdade. A Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga a conduta do Governo na gestão da pandemia está a confirmar que existiu uma política ativa de negligência. Uma fraude que prometia a salvação da economia e da liberdade individual em troca da irresponsabilidade sanitária.

A CPI concluiu que o Ministério da Saúde forneceu orientações a médicos de todo o país para que a hidroxicloroquina fosse prescrita como tratamento contra a covid-19, apesar dos pareceres da Sociedade Brasileira de Infectologia atestarem a “ineficácia comprovada do medicamento”. Também chegou a indícios de que o Presidente do Brasil nada fez depois de saber que o Estado foi lesado na compra de vacinas 1000% acima do preço. Segundo o vendedor, o Governo de Bolsonaro terá pedido uma luva de 1 dólar por dose. Vidas vendidas por 5 reais.

O problema é que, meio milhão de mortos depois, a moeda de troca nunca chegou. A economia pagou em pobreza e desemprego o tal oásis de liberdade garantido por Bolsonaro. O crescimento do PIB acima do esperado é cortina de fumo para a realidade cruel de um  país que nunca teve tantos desempregados e onde os índices de pobreza aumentam ao mesmo tempo que a inflação elevada agrava o poder de compra. Há 19 milhões de brasileiros em situação de fome no Brasil, mais 9 milhões de pessoas do que em 2018.

A pandemia faz cair a máscara do recuo do já frágil estado social e deixou em confinamento apenas quem tinha possibilidades económicas para o isolamento. O sofrimento é duplo: o prolongamento de uma pandemia descontrolada continua a ferir os setores mais pobres, incapazes de se proteger, a quem resta tentar sobreviver à doença ou à fome.

O negacionismo é um projeto de obscurantismo, de regresso à Idade Média. E é um projeto que se alimenta da desigualdade social. O Wellcome Global Monitorum, um estudo de 2018 que investigou a posição da população de 140 países em relação a questões de ciência e de saúde chegou a dois resultados interessantes: a correlação entre a desconfiança na ciência e o descrédito de outras instituições, como os Governos ou a Justiça; e a distribuição dos resultados por níveis sócio-económicos, concluindo que pessoas que afirmam ter uma existência confortável confiam mais na ciência do que aquelas que se dizem em dificuldades, e que as sociedades mais desiguais tendem a desconfiar mais da ciência. Também aqui Cândido encontrou a sua liberdade.

Só podemos desejar que o Brasil encontre a sua no processo de impeachment de Jair Bolsonaro.

 

Deputada do Bloco de Esquerda