Françoise Hardy. De ícone de beleza à batalha pela eutanásia

Françoise Hardy. De ícone de beleza à batalha pela eutanásia


Com apenas 18 anos conquistou o mundo com as suas canções e beleza. Hoje, com 77 e em grande sofrimento físico devido um problema oncológico, diz que se sente perto do fim e pede o direito a morrer.


O público conheceu-a com a sua grande franja, as camisolas de gola alta, o eyeliner bem desenhado. A sua voz, personalidade, timidez e sensualidade cativaram os olhares de todo o mundo. Nos anos 60, tornou-se o ídolo de todas as raparigas e mulher-padrão de todos os homens. Mas nem as luzes da ribalta, o sucesso da sua carreira e o carinho do público, a salvaram dos problemas de saúde que a assombram há anos: “O meu sofrimento físico já tem sido tão terrível que tenho medo que a morte me obrigue a passar por mais sofrimento físico”, revelou a cantora dos olhos “verde-mar”, numa entrevista via email (dado que tem dificuldade em falar), à revista francesa Femme Actuelle.

De acordo com uma pesquisa publicada em abril de 2021 pela Ifop, 89% dos franceses dizem ser “a favor da autorização do suicídio assistido para pessoas que sofrem de doenças insuportáveis ​​e incuráveis”. Françoise Hardy é uma delas e dá a cara pela causa, sofrendo na pele as consequências dessa “interdição”.

 

A "atitude desumana da França"

Interrogada pela Femme Actuelle sobre como se sente neste momento, a cantora francesa respondeu de uma forma que é capaz de “fazer tremer quem a lê”: “Perto do fim”, escreveu. A verdade é que os seus problemas de saúde já se arrastam há mais de dez anos: primeiro, foi vítima de um linfoma, que reapareceu pouco tempo depois de “estar curado” e, mais recentemente, sofreu de um cancro num ouvido que a obrigou a submeter-se a um tratamento inovador de radioterapia. Em 2015, ano em que acabou por ser hospitalizada, tendo ficado em coma induzido, a cantora francesa e um dos símbolos do movimento “yé-yé” já tinha defendido a morte medicamente assistida. Numa entrevista em maio deste ano, ao Paris Match, considerava que França era “desumana” por não permitir o procedimento, pois apesar de ter sido salva pelos tratamentos inovadores de radiação e de continuar entre nós, os anos de tratamentos de radiação e imunoterapia têm-lhe provocado uma “dor física intensa e deixado com dificuldade em engolir”, contou à revista francesa.

 

O sofrimento prolongado

As complicações mais recentes manifestaram-se em 2018: um problema de audição no ouvido esquerdo que, segundo Hardy, “nenhum otorrinolaringologista conseguiu diagnosticar”. Apenas num dos resultados foi detetada uma otite serosa, que foi agravada pelo facto do médico ter “prescrito o tratamento errado”, revelou. Como a dor no ouvido persistia, a cantora acabou por realizar uma biopsia e o resultado encontrou um tumor cavum (o cavum ou nasofaringe é a parte superior da faringe, e está localizado logo atrás do nariz e acima do palato mole). A radioterapia e as imunoterapias que se seguiram tiveram “efeitos colaterais iguais a um pesadelo, arruinaram minha vida durante dois anos e continuam a enfraquecer-me cada vez mais, por causa da ausência de saliva e a falta de irrigação de toda a região”, explicou. Secura generalizada, hemorragias nasais, dificuldade respiratória, disfunção tireoidiana e surdez no ouvido esquerdo (devido secreções da otite), são alguns dos problemas que Hardy sofreu e sofre. “Não consigo engolir muito bem e, preparar comida (sempre igual) que eu sou capaz de engolir, leva-me mais de cinco horas por dia. Não tive nada que funcionasse normalmente desde que fiz essas terapias e as minhas noites são piores do que os meus dias”, admitiu.

 

A posição fase à eutanásia

Interrogada sobre a morte assistida e como gostaria de “partir”, Hardy afirmou que “todos nós temos o sonho impossível de morrer em paz”, sublinhando que acredita que a morte “é só a do corpo que, com a entrega da alma, a liberta e que lhe permite voltar à dimensão misteriosa da qual veio, enriquecida com tudo o que a sua última encarnação lhe ensinou”. “No que me diz respeito, gostaria de ter a possibilidade de escolher partir, mas temo que a minha pequena notoriedade impeça qualquer profissional de assumir esse risco”, lamentou, pedindo aos médicos que concedam a possibilidade de “abreviar o sofrimento desnecessário de uma doença incurável a partir do momento em que se torna insuportável”.

A cantora francesa revela ainda que a mãe, que sofreu de doença de Charcot-Marie-Tooth (que afeta os nervos que controlam o movimento dos músculos), foi eutanasiada “quando já não conseguia aguentar mais esta doença horrível e incurável”. A cantora conta que é a favor da eutanásia desde os 15 anos, e que o sofrimento da mãe apenas lhe confirmou a necessidade de legalizar este procedimento.

 

Da infância infeliz às luzes da ribalta

Françoise Hardy nasceu a 17 de janeiro de 1944 em Paris, numa clínica localizada no 9.º arrondissement, onde acabou por crescer num pequeno e humilde apartamento com a irmã, Michèle, e a mãe, Madeleine, com o pai sempre ausente. A educação extremamente rígida resultou numa infância infeliz. Quando terminou o ensino secundário, o pai perguntou-lhe que presente gostaria de receber, acontecimento raro na vida da pequena Hardy, que escolheu uma guitarra. Nela começou a criar as suas primeiras melodias, o que acabou por fazer nascer a sua paixão pela música.

A mãe estimulou-a a ingressar na universidade e Hardy matriculou-se no Instituto de Estudos Políticos de Paris. Não foi preciso muito tempo até desistir, ingressando na Sorbonne para estudar alemão. Nessa altura, usava o seu tempo livre para se dedicar a compor músicas na guitarra, começando a “testar o seu reportório” no pequeno palco do Moka Club, onde atuava todas as quintas-feiras.

Depois de ler um anúncio no jornal France-Soir decidiu fazer a audição para a discográfica Pathé-Marconi. Apesar de não ter sido selecionada, ficou impressionada por ter prendido a atenção dos diretores e sentiu-se encorajada depois de ouvir a sua voz gravada. Aspirante a cantora, passou depois pela Philips Records, onde lhe foi recomendado ter aulas de canto. Ingressou no Le Petit Conservatoire de la Chanson, a primeira escola para artistas de rádio, liderada pela cantora Mireille Hartuch, em 1961. Nessa altura, as aulas eram, por vezes, veiculadas na televisão francesa e foi exatamente aí que Hardy se estreou. A tímida estudante de canto, apresentava versões amadoras de canções que resultaram no seu sucesso.

Foi a partir desse momento que a sua carreira “ganhou asas”: com apenas dezassete anos, assinou um contrato com a editora discográfica Vogue e, no ano seguinte, alcançou o seu maior sucesso, voando além fronteiras com a canção “Tous les garçons et les filles”. Um grande sucesso que as rádios europeias não se cansavam de passar. Pela primeira vez, uma canção francesa chegava aos ouvidos dos britânicos. O álbum Oh, oh Chér, que incluía a música, vendeu cerca de dois milhões de cópias, mais do que a maior estrela francesa, Edith Piaf, conseguiu em toda vida.

Foi também nessa altura que Hardy conheceu o fotógrafo Jean-Marie Périer, com quem manteve uma relação amorosa até 1967. Jean-Marie incentivou-a experimentar a vida de modelo, o que acabou por transformar a jovem tímida no ícone da moda francesa.

 

28 álbuns

Em outubro de 1963, Hardy lançou seu segundo álbum de estúdio sem título, apenas com o seu nome na capa, coloquialmente conhecido pelo título da sua canção de maior sucesso, “Le Premier Bonheur du jour”.

No ano seguinte, optou por voar para Londres e ir gravar suas canções nos estúdios da Pye Records com o produtor Tony Hatch. De Londres, seguiu-se a “conquista” dos Estados Unidos, em consequência do contrato de gravação com produtora Kapp, com quem gravou o álbum o The “Yeh-Yeh” Girl From Paris!.

Em 1966 estreou-se como atriz no filme americano Grand Prix e, pouco depois, iniciou uma relação sentimental com o músico Jacques Dutronc, com o qual teve um filho, Thomas Dutronc, em 1973, e com o qual se mantém casada, apesar de viverem separdos. Ao longo dos anos seguiram-se 23 álbuns, constantemente aclamados pela crítica.

Em 2018, após anos de tratamentos, lançou o seu último álbum, Personne D’Autre, um disco que, segundo a própria Hardy, “trata da finitude e da morte de maneira simbólica”. Foi a última vez que a cantora francesa apareceu em público para falar. “No álbum existe uma música chamada “Special Train”, de que eu gosto muito, onde canto sobre o comboio especial que me levará para fora deste mundo. Mas claro que espero que ele me envie às estrelas e me ajude a descobrir o mistério do cosmos”, afirmou na altura, numa entrevista ao jornal inglês The Observer.