A canícula derrete-nos os corpos, desconjunta-nos a estrutura óssea, faz com que nos arrastemos pelas ruas como espectros. Aqui e além, desde que se fale português, discute-se o lugar onde irá parar a selecção, na confiança colectiva de que o enxovalho alemão servirá para sermos mais juntos, mais compactos, mais camaradas, de uma camaradagem capaz de bater a França que, pelo caminho, chama às armas os seus cidadãos, ainda com a derrota de Saint-Denis de 2016 atravessada na garganta como uma espinha de garoupa. Para onde foram os húngaros? Não para Munique, certamente, onde se joga o Alemanha-Hungria. Só 25% do Arena poderá estar ocupado. Não há lugar para os que querem viajar daqui para a Alemanha, ainda convencidos de uma vitória tão absolutamente inesperada que nos deixaria a todos de boca aberta e a babar nos colarinhos.
Em São Petersburgo, a Polónia de Paulo Sousa esgota-se até aos últimos segundos mas perde por 2-3 e faz com que o nosso futuro, seja ele qual for, não passe mais por Budapeste. Façamos contas. Convençamo-nos ainda que o terceiro lugar será o nosso neste grupo que meteu a Hungria, a Alemanha, e a França campeã do mundo que acaba de chegar à Puskás Arena de autocarro, tal como vemos nas imagens em directo da televisão. É Sevilha que nos ameaça. Mais do que a Bélgica, convenhamos. Sabem a história dos dois espanhóis bêbados, trafulhas, mulherengos, que foram parar ao Inferno? Pois disse o primeiro que lá entrou: “Carajo! Que calor de puta madre ese!!!” Ao que o companheiro, mais seráfico, respondeu: “Imaginate en Sevilla…”
É mesmo assim? Faltam dez minutos para as sete da tarde em Budapeste, e o povo vai surgindo por cá, neste sítio onde se ergueu em tempos o Nepstadion, o Estádio do Povo, como na terça-feira, dia 15 de Junho, momento do Portugal-Hungria que serviu de estreia para a nossa fase final do Campeonato da Europa de 2020 despachado para 2021 por causa dos males que dominam o mundo.
Estamos perante a repetição da final do último Europeu, mas isso não parece entusiasmar particularmente os adeptos húngaros que, ainda há poucos dias, contra a França, viram a sua selecção bater-se com a força e a energia do velho Átila, o Flagelo de Deus.
A sul Por detrás da baliza sul, onde no Hungria-Portugal se juntaram os ultras húngaros com as suas T-shirts negras com a cruz de Santo Estêvão e dizendo somente Hungary, assim mesmo à inglesa, ficaram desta vez os adeptos portugueses. Em minoria, como seria de esperar, mas também estavam em desesperante minoria no Estádio de França, em Saint-Denis, há cinco anos.
O Verão, ainda jovem, com dois dias de existência, escurece o céu com poeiras terrenas. E a fé? Que é feito da fé? A fé que leva o engenheiro Fernando Santos a ultrapassar fronteiras que pensávamos impossíveis? Ele respondeu a essa pergunta com clareza. Elevou ao mais alto dos pináculos a esperança de que estaremos por cá até à final e ameaçou, mesmo, que se for a Alemanha o adversário dessa final, Portugal ganhará o jogo como o fez em Paris.
Lentamente, chegam mais uns milhares. Não cheio mas quase… Uma brisa torna o ambiente suportável, Portugal e França fazem exercícios de aquecimento como se fosse possível ficar ainda mais quente. Para nós, que vemos tudo do lado de fora, não restam mais dúvidas que diremos adeus a Budapeste, esta capital imperial que o Danúbio corta a meio, envelhecida nos seus edifícios senhoriais abandonados e nas ruas de pedras tortas que empenam tornozelos. Logo agora, que tínhamos escolhido esta como nossa casa e nos habituávamos ao seu ritmo morno de gente sem pressa que fala uma língua impossível, própria para dialogar com o Diabo, como dizia Carlos V. Um adeus é sempre um adeus. Custe ele o que custar. Budapeste é daquelas cidades que nos fazem sentir confortáveis e de bem com ela e connosco. Ontem foi a vez dos pássaros cantarem pela noite a canção da vida.