Manuel Lopes. “Não estamos a falar de jovens de 18 anos, mas sim de 12. A saúde pública está em causa”

Manuel Lopes. “Não estamos a falar de jovens de 18 anos, mas sim de 12. A saúde pública está em causa”


Coordenador do observatório AlenRiscos frisa que os comportamentos aditivos entre adolescentes assumem contornos preocupantes.


Durante quase três anos, foi coordenador da reforma do Serviço Nacional de Saúde (SNS) na Área dos Cuidados Continuados Integrados, rede que tem “como objetivo a prestação de cuidados de saúde e de apoio social de forma continuada e integrada a pessoas que, independentemente da idade, se encontrem em situação de dependência”, como explica o site do SNS. Antes, havia desempenhado o cargo de consultor para a área das políticas públicas sobre saúde e envelhecimento da Direção Geral da Saúde. Depois, teve a seu cargo a Coordenação Estratégica do Projeto SNS+ Proximidade.

Licenciado, mestre e doutor em Enfermagem, aos 60 anos Manuel Lopes dedica-se ao papel de diretor da Escola Superior de Enfermagem de S. João de Deus da Universidade de Évora. No entanto, como coordenador do Observatório AlenRiscos, pretende traçar um retrato dos comportamentos aditivos dos estudantes dos 7.º, 8.º e 9.º anos da região do Alentejo.

No país em que 13,5% dos adolescentes já fumaram uma vez, 30,8% consomem álcool, 20,3% cheiram colas, vernizes e solventes e 2,5% consumiram marijuana, haxixe ou erva, o docente destaca que “neste momento, o elemento mais grave é a idade precoce em que os consumos começam”. Juntamente com a equipa que lidera, Manuel Lopes almeja alargar o estudo aos ensinos secundário e superior, pretendendo entender se os comportamentos aditivos se mantêm ou se, por outro lado, se iniciam mais tarde.

Como surgiu a ideia de criar o observatório AlenRiscos?

Foi criado em 2015. Tenho um longo historial de observatórios porque fui membro e coordenador do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS), ou seja, aquele que, todos os anos, produz o “Relatório de Primavera”, que tem como objetivo primordial dar a possibilidade, a todos aqueles que podem influenciar a saúde em Portugal, de uma análise precisa, periódica e independente da evolução do sistema de saúde português e dos fatores que a determinam. No entanto, interrompi essas funções quando desempenhei o cargo de Coordenador da Reforma do Serviço Nacional de Saúde na Área dos Cuidados Continuados Integrados, mas regressei e, hoje, apresentamos um relatório especial. Tenho a convicção científica de que os observatórios têm um papel muito importante na sociedade. E, por isso, parte da minha atividade é dedicada à colaboração com os mesmos. Podem ser de múltiplas naturezas. Por exemplo, o OPSS trabalha com dados secundários: não fazemos investigação primária, utilizamos dados que já foram apurados para proceder à análise das políticas de saúde a partir dessa base empírica. Contudo, o AlenRiscos é de outro cariz: colocamos, no terreno, uma estrutura de investigação que permite uma recolha sistemática de dados que nos dá uma perspetiva longitudinal da evolução do fenómeno dos comportamentos aditivos. Além dos dados serem primários, disponibilizamo-los às entidades envolvidas e ao público em geral.

Como se desenvolve esse processo?

O nosso grupo de investigadores faz análise estatística mais diferenciada que vai publicando. Unimos vários tipos de instituições – a academia, a Direção Geral de Educação, os agrupamentos escolares de toda a região do Alentejo e toda a estrutura da saúde que intervém nos consumos nocivos. Esta última passa pelos Centros de Respostas Integradas (CRI). Recolhemos os dados e automaticamente fornecemos os mesmos às entidades competentes, pois caracterizam não apenas um concelho, mas sim um agrupamento escolar em concreto. Quando as mesmas querem agir, já sabem que ali existem 15, 20, 25 pessoas que começaram a consumir aos 12 anos e não aos 15, por exemplo, e que escolheram o álcool e não outra substância. Esta é a grande vantagem e também, anualmente, em todos os 7.º e 9.º anos de escolaridade, repetimos esta investigação.

Pretendem saber se esta tendência se mantém.

Sim. Ou até se, em alguns casos, aparece mais tarde. Neste momento, o elemento mais grave é a idade precoce em que os consumos começam. Não estamos a falar de jovens de 18 anos, mas sim de 12. Alguns dos consumos são socialmente aceites e começam na família. Por exemplo, o de bebidas alcoólicas. E as pessoas menos conhecedoras do problema dir-me-ão: “Mas o álcool, enfim, é normal”. Não é assim que se vê o problema. Eu não sou anti-álcool, não é isso que está em causa. Sabemos que, antes dos 14 anos, o ser humano não tem as enzimas necessárias para metabolizar o álcool. Como tal, todo o álcool que entra no organismo funciona como veneno e tem graves consequências no desenvolvimento do cérebro porque atravessa a barreira hematoencefálica. Esta protege o Sistema Nervoso Central (SNC) de substâncias potencialmente tóxicas que estão presentes no sangue. Não é uma “coisinha” de somenos importância ou embirrar com este consumo, é completamente diferente: a saúde pública está em causa.

O estudo publicado no ano de 2018 revela que, entre 3141 alunos, 30,8% consomem álcool e, nos 30 dias anteriores ao inquérito, as bebidas que mais tinham consumido haviam sido a cerveja, as destiladas e o vinho. Por outro lado, 50% começaram a consumir com os familiares e 49,7% com os amigos.

A família devia protegê-los e ter a literacia suficiente para lhes dizer que beber álcool socialmente, mais tarde, na vida, até pode ser um ato de cultura como apreciar um bom vinho. Contudo, há um momento para que isso aconteça, nunca nestas idades. Há outro elemento curioso: aparentemente, as relações afetivas, de proximidade, protegem os jovens do consumo de álcool. Nos namoros, por exemplo, estes comportamentos aditivos não são habituais.

É por isso que 39,3% dos inquiridos apontam os problemas com os(as) namorados(as) como o principal provocado por este consumo?

Sim. Podem consumir reativamente perante um desaire amoroso. Sabermos em que contextos estes comportamentos se iniciam é extremamente interessante. Outro ponto que deve ser cruzado com este é a baixa percentagem de jovens que têm atividades recreativas, desportivas, políticas, etc. A questão que se coloca é: não as têm porque não estão despertos para elas? Não existem? Não há espaço para as mesmas na vida escolar? O que é que se passa?

Será que o consumo de álcool e outras substâncias empurra-os para fora deste contexto ou a falta deste contexto leva-os a consumir?

Não encontrámos resposta. A ideia que fica é que, mesmo aqueles que não consomem, não estão envolvidos nestas atividades. Parece que a oferta destas não tem uma grande riqueza ou diversidade. E isso, aliado a uma determinada cultura de escola que está demasiado centrada nos conteúdos, cria uma dificuldade adicional. Do ponto de vista do diagnóstico daquilo que são os consumos, estou convicto de que temos uma estrutura muito poderosa e, mesmo tendo sido difícil, no princípio, juntar todas as entidades, posso dizer que, neste momento, ninguém coloca a hipótese de sair. As pessoas descobriram a importância do trabalho em equipa. E, como tal, esta é uma conquista per si.

As atividades extracurriculares estão a ser menosprezadas pelas escolas?

Não tenho informação que me permita afirmar isso mas, pela forma como as respostas são dadas, entendemos que estes hobbies – importantes no fomento do espírito de grupo, na participação, na sociabilização, etc. – são relegados para um plano muito secundário.

Naquilo que diz respeito ao tabaco, concluíram que 86,5% dos adolescentes nunca fumaram. Mas, em relação à frequência daqueles que o fizeram, deparamos com percentagens elevadas: 21,6% fumaram mais de 40 vezes, 44% mais de seis e 43,8% uma ou duas. 

Isto significa que há um grupo que já está viciado e fuma entre 10 e 40 cigarros por dia. Por exemplo, se um deles fumar 20 cigarros por dia, descontando as horas em que está a dormir, fuma mais do que um a cada hora.

Se o consumo é tão intenso, os professores não reparam?

Temos feito um cruzamento destes dados com as taxas de reprovação e vamos percebendo que há uma associação entre as mesmas e estes comportamentos. Há um círculo vicioso e percebemos que, a páginas tantas, é difícil resolver esta adição. Outro problema é a baixa capacidade crítica dos pais naquilo que concerne os consumos levados a cabo pelos filhos.

Na vertente do consumo de álcool, 85,5% e 80,4% dos pais das mães acha mal ou muito mal que tal ocorra.

Sim, mas admitem que os filhos bebem em casa e isto estende-se às outras substâncias. Há uma espécie de “encolher de ombros” como se isto fosse algo próprio da juventude, mas não. Como é evidente, nenhum de nós sabe quais destes alunos têm um gatilho que os faz ficar adictos, pois ninguém fica viciado sem experimentar. E, se eles próprios não sabem aquilo que poderão sentir, é melhor não experimentarem, na medida em que o risco aumenta. Os progenitores devem ser dotados da capacidade crítica – não a punitiva – de ter a literacia suficiente para ser capaz de trabalhar, com os filhos, este tipo de questões chamando-os à atenção para a perigosidade que lhes é adjacente.

No ponto das drogas ilícitas, assinala que 20,3% cheiraram colas, vernizes e solventes. Como é que pré-adolescentes e adolescentes têm a noção do efeito que estes produtos surtirão no seu organismo? Através de pesquisa online?

Prende-se com uma cultura de grupo que está instalada e as informações são partilhadas. O problema é que as escolas – todas elas, em vários ciclos de estudos – não estão suficientemente preparadas para lidar com estas situações e, em certas circunstâncias, até incentivam alguns consumos. Há um exemplo que considero degradante: fiz a minha formação inicial em Coimbra e, já na altura, assim era e tem-se agravado. A Queima das Fitas é o expoente máximo dos comportamentos aditivos. Lembro-me de que todas as grandes empresas da região da Bairrada patrocinavam este evento e proporcionavam aos estudantes o consumo de quantidades de álcool industriais. Estamos a falar de jovens com idades mais avançadas, mas há um determinado padrão que se afirma dentro de uma estrutura académica que devia desenvolver todos os esforços para não permitir estes consumos. Na Universidade de Évora, todos os anos me insurjo contra o facto de cervejeiras “embebedarem” os nossos estudantes porque, todos os anos, temos comas alcoólicos e até por vezes histórias de violação que ocorreram associadas a consumos excessivos e as raparigas nem sequer se recordam daquilo que aconteceu. As empresas só deixaram de patrocinar o evento durante a pandemia porque não houve outra alternativa.

Há produtos, como cola, que podem ser obtidos facilmente até em ambiente escolar, mas há substâncias a heroína, a cocaína, as anfetaminas que têm de ser compradas.

Há dinheiro a circular, todavia, temos de considerar que a estrutura do grupo está em causa para iniciar os jovens nas adições. Aí, a questão do pagamento não vem à cabeça. Surge mais tarde e, muitas das vezes, associada ao pequeno delito. Imaginemos, surripiar uma nota da carteira da mãe ou do pai. Este não é um ato isolado, pois tem repercussões em todos os níveis da vida. Se não ganham um ordenado, o dinheiro tem de vir de algum lado: será que o valor que lhes é dado para comerem e comprarem material escolar é utilizado neste sentido? As famílias controlam esta situação? E a tal subtração aqui e acolá de uma determinada quantia vai acontecendo? E se receberem uma mesada e os pais não tiverem o cuidado de entender como é que a mesma é usada? Há que descobrir.

A sua equipa reúne-se com os diretores dos agrupamentos, professores e restante staff das escolas?

Temos tido reuniões, mesmo com os diretores, mas deixamos a parte da intervenção à responsabilidade do CRI porque tem os especialistas adequados. A nossa presença é requerida quando há necessidade de interpretar os números, atribuir-lhes sentido. 

Disse em entrevista à agência Lusa que “é nas salas de aula e nos vários contextos escolares que as crianças crescem e os jovens amadurecem”, pelo que “um conhecimento profundo destas realidades deverá constituir uma prioridade”. Por meio dos resultados do estudo, também se entende que podem destruir a vida nestas circunstâncias.

Só conseguimos viver uns com os outros e, portanto, estamos expostos a todos os riscos inerentes. A única questão que podemos trabalhar com os jovens é dotá-los das capacidades para estarem nos grupos, entenderem as respetivas dinâmicas, aprenderem com elas e desenvolverem-se de modo saudável. Haverá sempre nichos onde este tipo de coisas vão acontecer, mas podemos ter competências para escolher o caminho mais adequado. Todas as opções têm vantagens e desvantagens. Nesta idade, num grupo em que estou inserido – precisando dele para me conhecer -, dizer “não” aos pares pode ser terrível e as consequências arrasadoras. Por isto é que contar com o suporte da família e ter outros grupos de pertença – como aqueles que se criam nas atividades extracurriculares – é muito positivo. Se só tiver um grupo de identificação, em determinado momento, posso aceitar consumir porque sei que ficarei sem ninguém. 

Em 2019, o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), através do “Estudo sobre o consumo de álcool, tabaco, droga e outros comportamentos aditivos e dependências”, chegou à conclusão de que 1 em cada 10 alunos consumira, nos 12 meses anteriores, estas substâncias. A amostra foi de 26.319 alunos de 734 escolas, com idades compreendidas entre os 13 e os 18 anos. O SICAD foi ao encontro das vossas conclusões.

É coerente. Acrescentamos é o estudo das franjas ainda mais jovens. 

Acha que os portugueses têm noção deste fenómeno?

Enquanto investigador, não acho muitas coisas, isto é, gosto de trabalhar com factos. Temos de ser claros: a realidade social é muito complicada. Neste momento, a sociedade criou uma estrutura focada no trabalho que dificulta a vida às famílias. Aqueles que decidem ter filhos ficam completamente esmagados pelas exigências laborais e aquelas que decorrem das implicações de educar os filhos. Também se ganha pouco. Não sou capaz de dizer que a culpa é das famílias, diria exatamente o oposto: provavelmente, não estamos a criar condições para que exerçam cabalmente a responsabilidade de educar os filhos. A escola contribui para a formação, mas quem educa verdadeiramente são as famílias. Se estiverem de tal forma absorvidas por estes fatores, veem os filhos numa janela de tempo muito curta: entre o momento em que acordam, tomam o pequeno-almoço e deixam as crianças na escola e a altura em que os vão buscar, jantam e vão dormir. O tempo de convívio é curto. A problemática da conjugação das vidas pessoal e laboral não está resolvida no Ocidente e muito menos em Portugal. Basta irmos a países como Inglaterra para entender que existe o esforço de ter este equilíbrio, tal como nos países nórdicos. Introduziu-se um conceito novo, que me parece muito promissor, o da economia do bem-estar. Baseia-se numa pergunta: “Para que é que serve a riqueza produzida por um país senão for para o bem-estar das pessoas?”. No nosso país, evoluímos pouco neste sentido e os jovens acabam, muito precocemente, por estar entregues a si próprios.

Qual é o futuro do AlenRiscos? 

Há um senhor que teve um papel muito importante na nossa sociedade, o professor Jorge Correia Jesuíno. Chegou a ser ministro da Comunicação Social e depois teve uma carreira académica brilhante na área da Psicologia Social. Neste momento, tem 90 anos e somos amigos há muito tempo. Temos um hábito antigo que é comentar aquilo que cada um de nós faz. Leu uma notícia sobre o observatório e escreveu-me: “Sabe aquilo que seria interessante? Termos uma rede de observatórios espalhados pelo país que nos permitisse saber aquilo que se passa, a vários níveis, para a intervenção ser muito mais focada”. E eu concordo com ele. Uma coisa é a intervenção pontual que se pode fazer – por exemplo, apercebo-me de que alguém está com uma ideação suicida e posso fazer um encaminhamento para a terapia adequada. Se está em sofrimento psicológico, significa que há elementos que não a ajudam e, por isso, tenho de fazer uma intervenção coletiva. Isto faria sentido.

O observatório podia ser conectado a um de saúde mental.

Ou ter um instrumento complementar para entender as variáveis da mesma. Estamos a avaliar essa hipótese.

Vão avançar para a investigação desta temática noutros ciclos de estudos?

As pessoas consideram que o trabalho que está a ser feito, de facto, é meritório e, neste sentido, pretendemos abarcar o ensino secundário e igualmente o ensino superior. Vamos alargar a nossa observação para entender percursos de vida. Em relação ao 3.º ciclo e ao ensino secundário, será mais fácil, estamos a tratar da logística e iremos para o terreno quando a pandemia o permitir. Ao nível do ensino superior, como trabalhamos na Universidade de Évora, não enfrentaremos o desafio de conseguir a colaboração da mesma, mas estamos em negociações com os Institutos Politécnicos de Beja e de Portalegre para mantermos o fluxo contínuo de dados.