As tradicionais festas do Santos Populares vão ficar mais uma vez em suspenso na cidade de Lisboa. Os restaurantes estarão abertos – mas só até as 22h30 – e as autoridades unirão esforços para fazer com que não se criem ajuntamentos que possam dar início a eventuais cadeias de contágio.
Na véspera do feriado que celebra o Dia de Portugal, são poucas as vozes portuguesas que se ouvem no restaurante Zé da Mouraria, onde o prato tradicional é o bacalhau assado. Nem o facto de Portugal ter sido retirado da lista verde da Grã-Bretanha parece ter impedido que o número de britânicos superasse o de portugueses. O espaço está aberto apenas até às 16h, como já é hábito, excetuando aos feriados, e, por isso, os colaboradores acreditam que “as restrições não farão grande diferença” no normal funcionamento do estabelecimento.
Hoje, dia 10, o restaurante está aberto até às 22h30, mas ainda não sabe com aquilo que pode contar para sexta-feira e sábado. A encomenda de sardinhas está pendente das reservas que aparecerão mas, visto que não é a especialidade da casa, as expectativas não são elevadas.
Ricardo, colaborador do Zé da Mouraria, tem a teoria de que “este ano até a sardinha apanhou o coronavírus: não está nada boa”. O movimento que se vê da porta do restaurante é “incomparável” àquele que se vivia no período pré-pandemia. “Neste momento, vivemos dos turistas”, assume o trabalhador.
As ruas da Mouraria não se encontram enfeitadas e o cheiro da sardinha assada deu lugar à solidão que habita a zona histórica há cerca de um ano e meio. Não se vêem bandeirinhas coloridas nem se ouve música popular. Os idosos à janela estão agora trancados nos interiores das suas residências sem nada por que ansiar, uma vez que este ano é proibida a presença de fogareiros na via pública.
“O Almeida”, nome por que é conhecido o restaurante de fados “Solar de São Cristóvão” devido ao nome do proprietário, vai optar por encerrar no dia de Santo António. Motivo: os “dois pesos e duas medidas” a que vê o país ser sujeito. O empresário conta ao i que, devido aos apoios que nunca chegaram, já “enterrou” cerca de 100 mil euros no restaurante. No seu estabelecimento, à semelhança daqueles que o circundam, os Santos Populares começavam a ser festejados no dia 10 de junho e era daí que conseguia ”extrair uns trocos para o inverno”. Este ano, com a impossibilidade de assar sardinhas no exterior, Almeida prefere fechar e voltar “lá para segunda ou terça-feira”.
“Dia 12 vai haver por aí muitos fogareiros”, diz ao i, e diz mesmo pôr “as mãos no fogo” pelo seu palpite.
O restaurante Lautasco, num beco recôndito de Alfama, é dos poucos que vemos com enfeites alusivos à altura do ano. O proprietário, José Martins, explica que as decorações estão presentes o ano inteiro, uma vez que foi feito “um acordo com a Câmara e com agências de turismo com o objetivo de mostrar como são os Santos Populares aos turistas”.
Para o empresário, o problema relativamente aos Santos Populares é de apenas alguns dias, enquanto muitos outros são permanentes. Como a falta de multibancos, por exemplo: “Se quisermos levantar dinheiro aqui temos de ir a Santa Apolónia, é o mais próximo, retiraram todos os serviços que havia aqui”. Para os próximos dias o Lautasco já tem as reservas completas, mas nem todos os restaurantes têm a mesma sorte.
O senhor Zé, dono da Leitaria Flor de São João da Talha, vai ficar pelo segundo ano consecutivo impedido de celebrar a data: “Vou estar aberto mas não posso nem colocar um fogareiro cá fora”, lamenta, enquanto mostra o espaço, um dos mais populares de Alfama. “Esta rua está sempre cheia de gente, este ano é o que se vê”.
Ou o que não se vê: as pessoas, as sardinhas, as bifanas, a cerveja e sangria. Em nenhuma rua há sinal daquilo que em tempos foi a imagem de marca da zona histórica.
“Os polícias já vieram avisar para termos cuidado porque na sexta-feira e no sábado não vão avisar, vão autuar”, afirma o senhor Zé, que, apesar de se considerar cumpridor, sabe que “há muitos que não o são”.
Os moradores Dora tem 37 anos e desde que nasceu que celebra os Santos à porta da casa com a família: “Esta rua era toda nossa, vendíamos de tudo o que é bom e típico português”, conta-nos. Encontramo-la sentada num beiral a recordar o que há dois anos estaria a fazer: “Por esta altura, estava ali a frente a fazer sangria, caipirinhas, a assar sardinhas e bifanas, era uma alegria”.
Desde manhã de quarta-feira “que a polícia anda para cá e para lá a fazer rondas” de modo a garantir que não são montadas “barraquinhas”, revela.
“Queremos assar uma sardinha nem isso podemos fazer”, afirma Dora, adiantando que, para este ano, “não há planos nenhuns para celebrar os Santos”. Assume-se como um moradora triste, quando compara Alfama a uma aldeia: “Isto já nem parece o sítio que era”. De dia 9 para dia 10 “era quando se fazia mais dinheiro”, assume.
E não tem dificuldade em apontar as culpas: “Isto que está a acontecer é tudo à pala do Medina, porque a festa do Sporting teve permissão”.
Tal como Dora, também Rosa (nome fictício) culpa o presidente da Câmara Municipal de Lisboa pelo que está a acontecer: “O senhor Medina quer tudo à maneira dele, mas quem manda é o povo e quando o povo quer, quer mesmo”, diz convictamente.
A idosa acredita que os moradores de Alfama se irão revoltar e sente que está a viver “como no tempo de Salazar”.
“A polícia queria vir para aqui vedar isto tudo mas eles não sabem com quem se estão a meter, Alfama não é para brincar”, acrescenta.
António de Almeida, de 71 anos, mora na Mouraria há “quase 60 anos” e “apesar de não ser muito dado a festas”, confessa que é “fã de sardinhas e de bailaricos”. Este ano, tanto pelo contexto pandémico, como por uma operação ao fémur que está pendente, o ex-combatente não pode acompanhar a mulher, “uma excelente bailarina”, nas danças como habitualmente faz. “Até estou a pensar em sair daqui e ir para a minha casa no Norte”, afirma, pois acredita que “vão continuar a existir ajuntamentos”.
As medidas Na passada terça-feira as autoridades anunciaram as medidas que seriam implementadas para o fim-de-semana de festejos, sendo que já se encontram em vigor desde ontem. Devido a um elevado aumento dos casos na região de Lisboa, António Silva, delegado da Administração Regional de Lisboa e Vale do Tejo (ARLVT), lembrou que os Santos Populares são “um evento de muito alto risco”.
Para as autoridades, uma das prioridades será o controlo do consumo de bebidas alcoólicas na via pública, avisando que “não deixará de promover os autos”.
Existirão zonas, nomeadamente o Bairro Alto, a Avenida 24 de Julho e o Cais do Sodré, às quais o acesso será limitado, tanto por via rodoviária como pedonal. Nos locais onde está prevista maior concentração de pessoas serão colocadas grades e fitas que impeçam a passagem.
No passado dia 1, a diretora-geral da Saúde afirmou que os portugueses poderiam continuar a divertir-se e a realizar “determinados eventos dentro da lei”, mas com “contenção”.
“Se conseguirmos garantir contenção, acho que podemos fazer determinados eventos, dentro da lei, das normas e das orientações que existem. Se não conseguirmos garantir essa contenção, então é preferível abstermo-nos”, acrescentou Graça Freitas.
A responsável lembrou que ainda existem muitos portugueses que não se encontram vacinados e, como tal, é preciso que os riscos sejam minimizados. “Estamos na fase de ter calma e de aguardar mais uns meses para que possamos exercer em pleno os nossos direitos e as nossas liberdades”, sublinhou.
No final da semana passada, Fernando Medina afirmou que não tomava a decisão de não autorizar a realização de arraiais populares de ânimo leve, mas “era a única que se impunha”, devido aos riscos de disseminação da pandemia.