Ouço-lhes o ruído dos cascos, lentos, de uma lentidão elegante. Não, não falo de nenhum vizinho mais antipático, daquele tipo de bestas de 46 patas. Tenho sorte com os meus vizinhos, são gente boa e disponível e sorriso fácil. Mas o silêncio quebradiço do domingo provoca eco pelas vielas dos arredores quando trotam na Avenida João Soares Branco, fazendo fronteira com o Sado, sempre castanho como o Ganges lá da Índia onde agora não me deixam ir. Por vezes estou na rua e vejo-os. Outros momentos há que, atraído pela curiosidade, espreito por cima do parapeito. Os cavalos de Alcácer acompanham a banda do Chico Buarque e também me apanham, volta e meia, à toa na vida. O domingo está vazio de gente, não há nenhum homem sério a contar dinheiro.
Nenhum faroleiro para contar vantagem, nem namorada para contar estrelas, até porque está uma tarde clara, impregnada de sol. Quanto à moça feia debruçada na janela convencida que o trote trotava para ela, já não ponho as mãos no fogo. Talvez seja ela mesmo, três casas à frente, no andar debaixo, de lágrima fácil e amores impossíveis. Devagarinho, os cavalos passam: são apenas dois com respetivos cavaleiros. Exibem uma certa vaidade na sua farda de gala de guarda republicano, vão direitinhos como fusos na direção da Estrada da Estação que deveria ter o nome de Estrada da Estação Morta, os bichos obedientes não estugam o passo, também não devem ter mais nada para fazer senão carregar com o guarda republicano no lombo e levá-lo em passeio pela cidade, ainda por cima cidade bonita e branca que nos puxa para escrever, para pintar, para reproduzir em fotografias. No entanto é preciso cuidado, muito cuidado! Na estrada há, aqui e ali, ao ritmo da passada dos equinos, montículos de matéria fétida do qual convém desviar-nos. Os cavalos republicanos da Avenida João Soares Branco são como o Comboio do Führer de Brecht: cagam em Alcácer.