Elísio Estanque. “Ninguém se preocupou muito com os contornos mais obscuros e perversos de Odemira”

Elísio Estanque. “Ninguém se preocupou muito com os contornos mais obscuros e perversos de Odemira”


Para o sociólogo, professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigador do Centro de Estudos Sociais da mesma universidade, que se dedica ao estudo de temas como o Sindicalismo e os Movimentos Sociais, “as autoridades e os governos encaravam” o panorama de Odemira “como um custo a pagar de um setor que…


Quais são os maiores impactos económicos da pandemia?

Parou a economia, muitas das empresas fecharam. Houve um processo que se desdobrou em várias vertentes, desde logo com o layoff e a paragem de uma série de atividades, e isso implicou o aumento do desemprego. Por outro lado, houve o encerramento de milhares de empresas e, apesar das estatísticas não estarem devidamente atualizadas, percebemos que o panorama foi negativo. Principalmente, no campo da restauração. E, se a economia parou, aconteceu o mesmo à produção de riqueza. Isto também justifica a descida abrupta do produto interno bruto. As projeções são pouco animadoras e a recuperação não será imediata, mas creio que temos de acreditar que acontecerá. Estes impactos tiveram repercussões sociais também e espera-se que haja alterações de fundo em setores da nossa economia que, porventura, poderão beneficiar dos apoios disponibilizados através do Plano de Recuperação e Resistência (PRR) e, dadas as indicações da Comissão Europeia para investimento em áreas como a da inovação digital e das políticas que contribuem para reduzir as desigualdades, serão alterados aspetos que, a médio prazo, podem ser muito significativos. Existe um cenário internacional que parece apontar no sentido de algumas medidas serem efetivas e terem um efeito considerável. 

Existem fragilidades do passado que foram expostas pelo coronavírus?

Obviamente. A pandemia ajudou a “destapar” uma série de aspetos que estavam menos visíveis, mas já existiam. Nomeadamente, essa tendência para o aumento de novas modalidades de prestação de serviços, áreas em que os negócios os bens tecnológicos e digitais são mais importantes, setores em crescimento onde as empresas de trabalho temporário e a precariedade já vinham desenhando um conjunto de segmentações e divisões novas no mercado de emprego e que agora foram aceleradas. Parece-me que, ao longo deste último ano, foi registado um ritmo de mudança bastante maior destas tendências. O mundo não começou com o coronavírus e há dinâmicas que se prendem com as próprias estruturas gerais da economia que já vêm sido aplicadas nas últimas três ou quatro décadas. A abertura das fronteiras e a competitividade global tiveram como consequência um aumento dos volumes de investimento em países periféricos – como os do continente Asiático ou da América Latina – em que o custo do trabalho é muito inferior ao do Ocidente. Há outras implicações, como o envelhecimento, tendo em conta que as políticas sociais eficazes dependem da sustentabilidade ou falta dela.

São implicações do modelo neoliberal.

Exato, mas, neste momento, julgo que também é possível que haja um redirecionamento de políticas de incentivo aos investimentos e ao funcionamento da economia. Estão a ser ainda objeto de contestação, como na Europa, entre vários Estados e as medidas que serão tomadas poderão surtir um efeito positivo – em termos das prioridades do mercado interno da União Europeia. Contudo, haverá alguma travagem em relação à euforia do comércio com a China e outros países. É possível que, no pós-pandemia, essas orientações venham a adquirir novos contornos. Não sabemos que medidas protecionistas poderão ser acordadas nem que capacidades os próprios mecanismos europeus terão para imprimir uma nova força no projeto da União Europeia aos níveis económico, financeiro, orçamental e político. Por outro lado, está em jogo a definição da posição a tomar naquilo que concerne a defesa, a capacidade dos meios militares da Europa, algo que é bastante reduzido desde a II Guerra Mundial, também poderá ser alterado tendo em conta acordos com a NATO no âmbito de negociações entre potências.

Uma das lutas que mencionou anteriormente é aquela que considera que devia ser travada pelo alcance do salário mínimo europeu.

Há discussões em aberto. É uma proposta que tem vindo a ser pensada e discutida por vários agentes dos campos económico, sindical, laboral e empresarial. É uma questão delicada porque a capacidade de resposta das várias economias nacionais ou regionais é distinta e as transferências de riqueza e mais-valia têm continuado a reproduzir desigualdades ao nível das economias e, mais especificamente, em termos salariais. Há um conflito em aberto entre diferentes parceiros sociais onde o campo sindical procura exigir que se tomem medidas mais favoráveis a uma convergência ao nível do bem-estar mínimo das famílias e classes trabalhadoras. Isso passará por algum tipo de acordo que estabeleça o salário mínimo europeu.

E que outras medidas podem ser pensadas?

Por exemplo, o rendimento mínimo incondicional. A haver alterações nestas matérias, também terá de haver uma modificação da carga de impostos que incidirá nos escalões de maiores rendimentos e onde a riqueza tem estado mais concentrada. Eventualmente, os grandes negócios, como os paraísos fiscais, começarão a ser taxados de uma maneira diferente de modo a que os Estados assegurem os meios financeiros para dar sustentabilidade a políticas fiscais que combatam, com alguma eficácia, as desigualdades salariais e sociais que são ainda muito vincadas. Portugal é um exemplo das grandes distâncias e dos contrastes ao nível do rendimento entre os trabalhadores das camadas mais baixas e os grandes dirigentes do PSI-20 que, muitas das vezes, têm salários luxuriosos e escandalosos. O diferencial entre os salários mais baixos e altos é acentuado e isso é preocupante porque não ajuda ao desenvolvimento da economia.

A que ponto?

Para que cresça, tem de criar estímulos e mecanismos através dos quais as classes médias e médias baixas possam evoluir, ganhar sustentabilidade e servir de motor à economia. Foi exatamente isso que aconteceu até ao início do século XXI. Esse crescimento deveu-se ao aumento da capacidade de consumo que acabou por conduzir ao endividamento. Neste momento, há uma expectativa, uma certa indefinição quanto àquilo que pode acontecer no futuro.

O sindicalismo está vivo? 

É, sem dúvida, uma força muito importante em qualquer democracia desenvolvida. Porém, existem modelos diferentes de organização dos setores económicos e da força de trabalho. Em Portugal, procura-se seguir uma política de negociação e concertação social que vai ao encontro do modelo que vigora na Europa, com as negociações coletivas e os sindicatos têm um papel fundamental. Na sociedade portuguesa, e nos países do Sul, existem tradições que têm a ver com a própria identidade das classes trabalhadoras e o peso relativo da indústria e de alguns serviços na definição das estratégias de ação sindical. Como se sabe, temos uma herança do Estado Novo e também das clivagens que foram criadas, a seguir ao 25 de abril, entre um campo mais orientado para um sindicalismo de negociação e de certa maneira corporativista mas, por outro lado, temos uma corrente – ainda maioritária – que transporta no seu código genético uma abordagem mais centrada na luta de classes e que, de algum modo, continua a ter primazia. A CGTP [Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses – Intersindical Nacional] representa perto de 2/3 da força de trabalho. Ainda se nota, hoje, uma presença muito evidente da influência da cultura operária e do PCP [Partido Comunista Português] na central sindical. E isso não é acompanhado por uma revitalização na mobilização dos trabalhadores em torno dos sindicatos.

Que motivo leva a que tal aconteça?

Não só a indústria tradicional estagnou em termos da força de trabalho que ocupa, como as novas gerações que têm entrado para a atividade produtiva, mesmo na própria indústria – calçado, têxtil, etc. – já não transportam consigo a experiência que os estimularia a aderir e a envolverem-se no sindicalismo. Isto favorece uma certa lógica corporativista, burocrática, dentro do campo sindical que conduz a dificuldades na abertura, na atualização de procedimentos, na promoção de outro tipo de linguagem e na utilização de meios comunicacionais digitais – nota-se incompreensão e resistência perante as potencialidades das redes sociais. Daí a dificuldade em revelar meios capazes de responder às exigências e expectativas dos setores mais jovens, qualificados e também mais precários. Cria-se uma lógica de círculo vicioso que não é boa para a economia, os sindicatos nem a própria democracia no seu conjunto. Há uma individualização muito grande das forças de trabalho que se revelou ainda mais com a pandemia.

Por meio, por exemplo, do teletrabalho?

Sim. Porventura vai deixar um lastro mesmo depois do fim do coronavírus. Haverá setores que envolverão muitos mais trabalhadores nesta modalidade. Há projetos de lei a serem discutidos na Assembleia da República, neste domínio, e também estão a ser debatidos os direitos dos trabalhadores que exercem as suas funções a partir de casa. É provável que esta tendência seja positiva em alguns setores. Penso que, desde que haja uma negociação aberta e clara, que defenda as duas partes, pode ser bom para a economia, os trabalhadores e os empresários.

Quais são os pontos mais negativos deste regime?

O modelo que temos desenvolvido há mais de 200 anos, no mundo ocidental, em que o trabalho assalariado passou a ser dominante e o motor das grandes mudanças, revelou que é através da atividade profissional que podemos manter e fortalecer os vínculos sociais e assegurar uma coesão social. Desde o início do século XIX, muitos autores defenderam a importância do corporativismo, na área profissional, como instâncias intermédias entre o indivíduo, as forças dirigentes e as instituições com poder. Essas forças são fundamentais para manter o nível de equilíbrio dinâmico em qualquer sociedade que respeita os direitos humanos e as liberdades, e só não se desarticula completamente com essas instâncias. Não é possível imaginar sistemas sociais em que os indivíduos são um mero agregado autonomizado e desligado do grupo e das organizações. E o trabalho, também no plano social, é um fator de agregação. O indivíduo, que não tem outros rendimentos, presta um serviço, investe a sua força de trabalho, a sua inteligência e as suas competências para transformar determinadas matérias em produtos que podem, depois, ser trocados e vendidos no mercado. Esse ato pode conter em si também uma componente de reconhecimento por parte do coletivo. É também através disso que podemos ter pela frente uma determinada vida de desafogo económico, conhecimento e prestígio. Se todos, de repente, ficassem na sua bolha, em teletrabalho, essa força mais estruturada ficaria em causa. Creio que não virá a acontecer porque as estruturas de trabalho – com mais ou menos digitalização, robótica ou inovação tecnológica – terão de se manter. A atividade laboral terá de preservar a sua função. Desde logo, a ligação entre o indivíduo e as restantes estruturas da sociedade. O teletrabalho pode ser importante desde que seja bem gerido e articulado com dinâmicas de rotatividade.

Até porque promove a desigualdade.

Claro, porque se aplica a setores que não ocupam a maioria dos trabalhadores. Por exemplo, os industriais continuam a ser vitais.

E nem todas as pessoas detêm os equipamentos necessários para executá-lo.

Por isso, poderão vir a desenhar-se novas linhas de desigualdade e assimetrias em termos de condições laborais. Numa sociedade desenvolvida, preocupada com os direitos humanos e a coesão social, as instituições democráticas terão de impedir o crescimento de um fosso ainda maior e de uma eventual rutura abissal entre aqueles que têm condições para se manter minimamente incluídos na sociedade – com expectativas positivas – e aqueles que poderão sentir-se cada vez mais deixados para trás e excluídos. Como sabemos, são estes setores que mais diretamente alimentam a retórica populista e representam uma ameaça à democracia.

Essas pessoas aproximam-se mais dos extremos políticos porque não encontram respostas na dita democracia tradicional.

Sentem-se defraudadas. Os salários estão praticamente estagnados há cerca de duas décadas. Esse sentimento de abandono cria uma retração da parte dos cidadãos relativamente à confiança que depositaram nos partidos políticos, na justiça, em várias áreas. E isto deixa a democracia mais frágil e leva a que adiram a propostas salvíficas, simplistas, cuja promessa é um paraíso dourado numa bandeja. E, como num modo geral as pessoas não estão suficientemente informadas e não reconhecem a complexidade da vida política, concordam com estes discursos. Eles próprios são construídos de modo a irem ao encontro destas camadas mais ressentidas. Há cem anos, o fascismo cresceu em Itália com ideias parecidas.

Foi assim que Benito Mussolini chegou ao poder.

Pois, porque tudo depende muito de como a economia responde. Hoje em dia, se o emprego voltar a crescer e os direitos laborais não forem completamente desmantelados – de modo a que as camadas mais frágeis preservem algum sentido de dignidade e inclusão –, a democracia será reforçada novamente. Se a crise significar uma divisão ainda mais profunda e estrutural em que as pessoas perdem completamente a esperança, tal pode provocar problemas ainda mais graves.

Quais são as maiores diferenças da legislação laboral dos governos de António Costa e Pedro Passos Coelho?

Os ciclos económicos são distintos. Há um período da intervenção dos credores, da troika, e o seguinte. No primeiro caso, mesmo que Passos Coelho não estivesse no poder, teriam de ter sido adotadas medidas de austeridade. Talvez não tão graves, profundas e dolorosas – há divergências quanto aos diagnósticos que foram feitos –, até porque se criou a ideia de que o governo “era mais troikista do que a troika”. E essa orientação muito liberal e punitiva para as classes trabalhadoras foi excessiva relativamente àquilo que eram as exigências de reequilíbrio das contas no âmbito da crise financeira. A capacidade de resposta dos países da Europa também foi diferente porque, na altura, criaram-se divisões ainda mais marcantes entre os pobres do Sul e os ricos do Norte. Em relação não só à economia, mas também ao plano político porque fomos acusados de ter a culpa do endividamento. Comparando esse período com a “geringonça”, não só entrámos num ciclo económico diferente – o ciclo da dívida mudou, voltámos a ter uma soberania mais plena – como a atividade económica reanimou o suficiente para crescer e combater o desemprego de forma muito evidente devido à conjuntura política interna. O PS não tinha maioria absoluta e teve de se socorrer dos restantes partidos da esquerda que lhe deram apoio porque não queriam ser acusados de contribuir para a formação de um novo governo de direita. Daí que tenha sido possível corrigir medidas, repor o poder de compra, os salários e as pensões. Isto fortaleceu a esquerda e imprimir mais confiança na economia. É claro que um governo do PS, à partida, tem uma sensibilidade social maior e dá mais prioridade à proteção dos mais frágeis, mas, obviamente, os problemas continuaram a existir. Isto até à entrada da nova crise que vivemos. Apesar de todas as desvantagens de um governo preocupado com a inclusão social e a necessidade de regulação e intervenção públicas junto da economia, prefiro-o a um governo de liberalismo desregulado, em que o mercado tem primazia. Vimos que, ao longo das últimas décadas, tal não funcionou. E, com a pandemia, ficou muito claro que não é o setor privado que pode resolver problemas quando estamos perante catástrofes. Julgo que áreas como a do Sistema Nacional de Saúde – não deve haver uma política de saúde para ricos e outra para pobres – e da  educação – só assim a economia pode tornar-se mais competitiva e os filhos e netos das classes trabalhadoras poderão passar pelas universidades e vencer – reforçaram a importância das políticas públicas e do papel do Estado.

E a justiça?

Devia melhorar-se a sua credibilidade junto da opinião pública. A sua má imagem é aquilo que mais contribui para que os cidadãos se deixem atrair por uma retórica anticorrupção por parte de algumas forças que estão em crescimento e fazem disso uma bandeira de consolidação de apoio eleitoral. A transparência não pode ser deixada na posse na extrema direita: tem de ser a esquerda a demonstrar poder para promover reformas profundas.

De acordo com dados do Instituto do Emprego e Formação Profissional, o desemprego cresceu 37% no espaço de um ano. Vamos conseguir recuperar?

Acho que sim. Não temos alternativa se não estarmos alerta, termos esperança, e sabermos que cada um tem responsabilidade na ultrapassagem da situação da pandemia. O desemprego não aumentou tanto quanto muitos esperavam. Vamos viver um período de ressaca em que não se notará, de imediato, a recuperação. No entanto, os indicadores mostram que, no próximo ano, haverá um aumento da produção de riqueza e isso enuncia uma forte possibilidade da quebra dos índices de desemprego.

Outro flagelo é a questão da imigração. A própria comunicação social lembrou que este problema não é novo. Em 2016, já tinha publicado o artigo de opinião “(Des)globalização do trabalho” no jornal Público. A pandemia exacerbou a exploração dos imigrantes?

Curiosamente, acho que, apesar de todas as confusões e da situação preocupante que se veio a mostrar com mais clareza, no caso de Odemira, deu-se visibilidade a um tema que todos conheciam e respondiam com um “encolher de ombros”, não querendo assumir que aquela era uma calamidade social. A Autoridade para as Condições do Trabalho e a Polícia Judiciária tinham processos relacionados com situações de ilegalidade, tráfico de mão de obra e ausência de condições minimamente humanas naquelas empresas. Não em todas, mas em muitas delas. Isto era camuflado porque o setor da agricultura intensiva tornou-se importante para a economia portuguesa, pois é altamente exportador e envolve consórcios de empresas internacionais, bem como capitais norte-americanos, chineses, etc. Ora, esse volume de negócios, por ser tão grande, as autoridades e os governos encaravam este panorama como um custo a pagar de um setor que revitaliza a economia portuguesa, oferece emprego e contribui para as economias locais. Ninguém se preocupou muito com os contornos mais obscuros e perversos, do ponto de vista das condições de trabalho, e as populações locais foram cúmplices através, a título de exemplo, do arrendamento de casas e casotas sem higiene. O mais grave tem a ver com a questão da ilegalidade da mão de obra, pois houve um facilitismo das autoridades por falta de meios ou vontade política de combater este flagelo. Não faz sentido existir uma espécie de escravatura num país inserido no continente mais desenvolvido em termos de direitos humanos e do trabalho.

O problema já vinha de antes da pandemia…

Precisamente, há muito tempo. Agora, por uma situação já numa fase de redução das contaminações de covid-19, detetaram-se estes focos do vírus em Odemira. Há outras regiões onde isto também acontece. Ainda há outro aspeto, o do impacto ambiental, na medida em que é necessário exercer vigilância sobre aquelas empresas no tipo de produtos químicos que usam. Estes têm efeitos na alteração dos recursos naturais de uma região inserida no Parque Natural da Costa Vicentina e que tem um estatuto muito especial que acaba por não corresponder à realidade. Tem de se estabelecer linhas-limite para impedir que estes investimentos não alarguem o espaço de intervenção que, a meu ver, já é excessivo. 

No seu artigo, mencionou o conceito de sociedade líquida, criado pelo sociólogo Zygmunt Bauman.

Ele quis mostrar como, nas últimas décadas, na sociedade ocidental, as estruturas sociais tornaram-se mais líquidas, elásticas e maleáveis. Nas empresas, nas instituições e nos meios de transporte, a maleabilidade ganha mais impacto do que a rigidez das estruturas como aconteceu em modelos anteriores. Há fluxos de migração e de viagens que envolvem cada vez mais pessoas. Não é por acaso que o turismo é o setor mais importante do nosso país. Há canais de comunicação que fortificam os laços humanos. Há mais misturas. Em São Teotónio, por exemplo, metade da população é composta por estrangeiros. Começam a revelar-se os hábitos das culturas de origem e isto imprime uma complexidade nas comunidades de acolhimento que têm de saber adaptar-se. E quem chega tem de saber adaptar-se também. A questão é que estes não são processos pacíficos. 

Há choques culturais.

Que se traduzem em ações violentas e de travagem, assim como preconceitos, porque quando uma crise se aproxima, as populações locais inventam inimigos para justificar problemas. A culpa nunca é nossa, é sempre do outro. Quando um imigrante chega, está disposta a aceitar trabalhos mal pagos, algo que os locais não aceitam. Mesmo assim, é-lhes apontado o dedo por “roubarem”. Trata-se de uma tendência humana, mas devia ser combatida com mais informação, educação e clareza pelas autoridades. Há outro problema a nível europeu relacionado com as migrações que diz respeito à ausência de uma política de imigração transnacional coordenada pela Comissão Europeia, pelo Parlamento Europeu, ou por outra entidade, no sentido de criar leis que estabeleçam critérios para acolhimento de populações. E deviam ser orientadas para a integração social nas sociedades de acolhimento. Aquilo que existe na Europa é uma preocupação comum relativa à contenção das fronteiras e do controlo dessas coletividades que fogem das guerras e de outras calamidades. Mas, naquilo que concerne as políticas internas de acolhimento, têm de ser repensadas porque sabemos que a Europa precisa de imigrantes. A população está a ficar cada vez mais envelhecida.

Porque é que vemos estas pessoas como ameaças?

Não é uma causa, é uma consequência de quando as populações não conseguem vislumbrar, no seu horizonte, alternativas favoráveis. É a autodefesa das identidades local e nacional, que se pensam assim mesmas como dotadas de características mais dignas ou melhores do que as daqueles que aparecem com contornos, rituais ou práticas distintos. Por exemplo, no âmbito da religião, imaginemos, temos católicos a lidar com muçulmanos.

Há o sentimento de superioridade cultural.

As massas reagem procurando fechar-se na sua própria identidade. O Estado e as instituições existem justamente para impedir que isso culmine em guerras. Tem de haver políticas de esclarecimento e de educação que formem as novas gerações no sentido de aprenderem a gerir as suas vidas em sociedades onde, cada vez mais, haverá multiculturalismo, influências e confluências oriundas de diversos sítios. Já não há sociedades homogéneas, mas sim líquidas. Há facilidade de deslocação e, por outro lado, mais conflitos. Há outro ponto muito importante: para conter esses fluxos, essa “invasão”, é necessário que a economia europeia saiba orientar-se para estabelecer mecanismos e canais de cooperação e entreajuda aos povos onde as guerras têm sido mais mortíferas. É do interesse das economias avançadas do Norte travar os vírus onde estão muitíssimo ativos e ter políticas vocacionadas para criar crescimento e oportunidades para os mesmos e as populações não sejam forçadas a fugir. Esta não deve ser vista como uma questão de culpa ou dominância e dominados porque vivemos numa era em que a ciência e a tecnologia coloca-nos numa posição de vantagem, mas existem também orientações filantrópicas para com os países mais carenciados. Só assim se podem travar os efeitos de choque de fenómenos como o racismo.

Mencionou as nacionalidades dos imigrantes legalizados em Odemira. A maioria era de origem búlgara, tailandesa e alemã. Agora, o panorama é bastante diferente: a maioria é do Nepal, da Índia, da Bulgária, Tailândia e Alemanha.

Acho que há um pouco de tudo. A visibilidade só se ganha quando as estatísticas refletem a realidade das coisas. Quando há uma parte ocultada porque é ilegal e não foi detetada nem identificada, as estatísticas mostram alguma distorção. Não sei exatamente o historial todo porque deve haver diferenças nas redes de tráfico. Lembro-me de ver camionetas e autocarros com matrícula búlgara a transportar mão de obra sazonal, em Odemira. Isto não significa que fossem todos de nacionalidade búlgara porque podem ter realizado variados percursos até chegarem a Portugal. O caso concreto da população alemã não tem a ver com estes fluxos de tráfico, mas sim com o facto de terem criado raízes. Era uma zona pouco explorada em termos turísticos até aos anos 80 do século XX até ter havido circuitos de comunicação e divulgação daquela zona. Houve um “efeito de contágio” que levou a que gerações alemãs posteriores viessem até ao país e, por outro lado, talvez também jovens dessa época que se aposentaram e instalaram-se aqui.

Esta precariedade é provocada pelo cariz sazonal do trabalho? Os imigrantes ficam aqui, em média, oito meses. 

Sim. Embora haja métodos para que a atividade agrícola se mantenha durante todo o ano, há culturas em que a necessidade de mão de obra é mais intensa e cíclica. Aquilo que tenho lido é que há grupos de força de trabalho que se deslocam entre regiões. Isto é muito fluido. Ainda que este aspeto seja mitigado por equipamentos que permitem fazer a rega automática ou regular a temperatura, há oscilação do desempenho de funções. É por isto que é extremamente conveniente não haver contratos de trabalho nem direitos reconhecidos aos trabalhadores. Os intermediários e os empresários ganham sempre com isto. É absolutamente criminoso pagar cerca de 100 euros por mês a estes imigrantes que, por terem sido vítimas de tráfico, por vezes ficam, durante muito tempo, a pagar prestações aos traficantes. 

Segundo um estudo do jornal Público, a maioria dos imigrantes da Ásia paga 10 mil euros para chegar ao Alentejo. Mesmo que trabalhem durante anos, não conseguirão saldar esta dívida.

São as calamidades humanas que existem. Não apenas neste caso. Há imigrantes africanos que chegam à Europa graças à família que se endivida, disponibilizando as suas economias para que alguém viaje até ao continente que é encarado como uma “espécie de paraíso” onde é possível ganhar dinheiro rapidamente. A Europa tem de ativar soluções mais eficientes para travar as cadeias de tráfico. 

O que tem a dizer sobre a situação do ZMar? O Executivo agiu corretamente?

Em termos abstratos, haveria soluções ideais, mas, no terreno, as situações adquirem sempre contornos muito distintos e, por vezes, inesperados. Com certeza que terá havido precipitação em alguns momentos – entradas violentas e quase às escondidas que não fazem sentido – e má gestão da comunicação com os proprietários das casas. Ao mesmo tempo, terá havido sinais de preconceito porque, porventura, alguns proprietários manifestaram receio perante a convivência com os tais grupos “estranhos” e contaminados. Houve atropelos, mas, penso, que no geral, a situação foi mais aparatosa na comunicação social.

Fala-se muito na questão da celebração de acordos bilaterais entre os trabalhadores e os seus países de origem. Isto poderia levar à erradicação destas redes de tráfico?

Tem de se combater estas redes, essencialmente, por via da ação policial porque configuram crimes humanos. Se houver melhores condições de oferta de emprego nos países de origem, dinâmicas de crescimento e desenvolvimento, de maneira a reter as populações, o impacto diminuirá. Tem de se eliminar o crime e, simultaneamente, apostar nas políticas de cooperação de forma a que haja investimentos mais consistentes e conseguir que estes fluxos sejam contidos.