A mente e a sua incerta localização é um problema insolúvel. No capítulo VIII de Alice do Outro Lado do Espelho, o Cavaleiro mostra-se surpreso com a pergunta de Alice. “Que importa onde está o meu corpo?”, diz-lhe. “A minha mente continua a trabalhar na mesma. De facto, quanto mais acabrunhado pareço, tanto mais coisas novas invento.” E dois capítulos atrás, o diálogo é com Humpty Dumpty. “Agora declaro que é mau demais!”, gritou este, dando largas a uma súbita paixão. “Estiveste a escutar às portas… e por trás das árvores… e nas chaminés… senão não podias saber isto!” Ao que Alice lhe responde: “Mas não fiz nada disso!” E logo esclarece muito delicadamente: “Está num livro!”
Talvez os livros funcionem como barragens para o mundo dos sonhos. É a nossa grande inquietação, às vezes mesmo a meio, com as águas agitadas, quando mais nos arrastam e deslumbram, que pudéssemos ter uma mão de fora, e inscrever, sem despertar, umas vagas orientações num canhenho na mesa de cabeceira, para não perdermos inteiramente os contornos dessa trama impossível, saturada de detalhes que, logo depois, se irão furtar e deixar-nos apenas diante de uma paisagem esburacada, já sem nenhum encanto, na hora em que quisermos transmitir a alguém as aventuras e os apuros que a nossa mente foi capaz de congeminar, recorrendo a não se sabe que profundas matérias de inspiração e por que operações desviantes da lógica habitual.
Tão breves e prodigiosas na sua capacidade de expansão, as duas obras que nos põem no encalço das incursões de Alice por essa ilusão subterrânea têm, segundo Borges, uma qualidade deleitável e hospitaleira comparável às Mil e Uma Noites, mas que o consegue através de uma trama de paradoxos de ordem lógica e metafísica, o que poderia fazer destas obras algo de natureza ameaçadora. A verdade é que foram acolhidas com um tão grande assombro e encanto que se pode dizer que, como acontece muito raramente, os leitores mostraram-se à altura do desafio, e souberam tirar partido até do risco e da sensação de perigo que o desafio envolvia. Como notou o autor de Aleph, “à primeira vista, as aventuras de Alice parecem irresponsáveis, ou quase arbitrárias, mas logo comprovamos que encerram o secreto rigor do xadrez e do baralho de cartas, sendo, assim mesmo, aventuras da imaginação”. Lewis Carroll era o pseudónimo de um tipo que preferia a sua vida apagada, como professor de matemáticas na universidade de Oxford, e apesar de muitas das chaves do requintado e ousadamente caótico mundo que criou se encontrarem no aparentemente cinzento entorno académico onde viveu a sua pacata existência, teve o talento de saber fazer as anotações mágicas ao longo de vários anos, sem usar, depois, uma linha demasiado rude para as coser umas às outras, e, deste modo, conseguiu criar um manual de prestidigitação para os mais novos, e que os segue pela vida adulta sem nunca os defraudar. Esse é, de resto, um dos grandes perigos, como observa Borges, para quem escreve para um público mais novo: o de ficar contaminado pela sua puerilidade, acabando o autor por se confundir com os seus leitores ou ouvintes. Não foi, de todo, isso o que aconteceu com Carroll, e sinal da pregnância do mundo que este justapôs ao nosso, respirando sobre a sua superfície e embaciando-o, ao ponto de sentirmos a nossa existência como um mero reflexo num espelho, é o facto de o Victoria & Albert Museum de Londres ter decidido reabrir as suas portas, depois do encerramento a que foi obrigado pela pandemia, com uma imensa exposição com o título Alice: curiouser and curiouser, numa proposta que parece apontar para a necessidade de uma investigação profunda do outro lado do espelho, ou seja, nos domínios oníricos, isto para sermos capazes de despertar de um sono agitado que, para muitos, deu a sensação de ter os sonhos mastigados, demasiado vagos e fragmentários, como se a própria expectativa de aventura tivesse sido arruinada, e da beleza e do deslumbramento desse mundo restasse muito pouco.
Depois de um certo tempo, e ainda mais nos nossos dias, a curiosidade e a imaginação tornam-se questões importantes a um nível moral. E a sua liberdade e o seu fôlego, essa inquietação e o correspondente desejo de indagar, seguir pistas, bisbilhotar, a própria capacidade de lançar hipóteses e de o fazer com um tal empenho que estas ganhem a firmeza de verdadeiras ficções, tudo isso entra em linha de conta, numa atitude que se dispõe a transgredir. Afinal, como notou Paul Gauguin, sendo a vida como é, sonha-se com vingança. E a melhor das estimas com que uma obra poderá contar será a desse bando amotinado dos curiosos, os que são capazes de começar por perguntas infantis ou até mesmo tolas para, de súbito, estarem nas fronteiras das grandes interrogações filosóficas. Mais do que um encantamento ocioso por coisas insignificantes e desprezíveis, esta é uma doença de quem se sente abalroado por dúvidas, quem formula perguntas radicais e infinitas. Refira-se que os ingleses da época vitoriana (1820-1914), esse período que teve o criador de Alice como um dos seus hóspedes, como lembra Rafa de Miguel no El País, em vez de chamarem mirror ao espelho, chamavam-lhe looking glass, ou seja, um vidro no qual alguém podia enfrentar-se. Mas esse olhar podia não ricochetear pela sala, atravessando essa zona de névoa que todos temos na mente, mas que só alguns se permitem penetrar. Só depois começaria a desdobrar-se esse território de estranhezas, que começa por ser pouco convidativo por causar-nos algum desconforto nos sentidos, virando tudo do avesso. São truques simples e sensíveis que chegam para afastar esses que seguem na classe turística da curiosidade, bem como os que compram passagens nas mais luxuosas e que raramente estão para se maçar, pagando para superar todos os percalços. É preciso sair já munido de um desconforto desses que nos faz coçar a pele e ler nela sinais e erupções indicativas dos mais improváveis destinos. São esses detectives selvagens os melhor capacitados para ganharem confiança com tudo aquilo que é estranho ou sinistro é na medida em que não pertence. Essas coisas e seres que têm o seu corpo e as suas manifestações espalhadas entre mundos que se repugnam entre si. Diante dessas visões ou imagens damo-nos conta de que não existe um lugar interior, e que tudo é uma dobra do que está fora de nós. Quando o espelho se quebra damo-nos conta de que somos outro, e que sempre o fomos, e este fascínio com o exterior faz de nós seres capazes de um reconhecimento longe das fronteiras do ego, essa forma de omissão do mundo, de se furtar à experiência mais drástica que a vida tem para nos oferecer. Os sonhos são a matéria condutora mais propícia a que os enigmas que só a imaginação pode decifrar apresentem a sua lógica impossível de transplantar para outro lugar e outras condições.
Se na época vitoriana os espelhos serviam como passagem e não apenas como meros utensílios, hoje esse vidro que permite ver não oferece tantas dificuldades ao viandante, e talvez seja o ecrã de um telemóvel, que em vez de instigar a curiosidade, submerge-a em distracções, numa névoa de outra natureza, enredante, viciosa, inescapável.
Aquele museu londrino vem introduzir de novo algumas peripécias ao convocar o mundo de Alice no País das Maravilhas e da sequela Alice do Outro Lado do Espelho, e a comissária da exposição, Kate Bailey, apressa-se a vincar desde logo esse avanço para o feminismo que foi ter surgido uma miúda como protagonista, isto numa altura em que, se Alice fosse real, nem lhe teria sido dada a possibilidade de frequentar a universidade. E talvez o triunfo comece precisamente nesse interdito, nessa inquietação que nasce pelo avesso, com um sinal contrário à atitude de frieza e algébrica que, a pretexto de tudo explicar, se priva voluntariamente de todo o temperamento. Ao invés de mergulhar na letargia, e em vez de se entregar e deixar diluir ao longo do fio interminável de uma intriga supérflua, a Alice de Carroll conquista o próprio efeito de colecção dos sonhos, esses saltos de intuição, esses abalos profundos, inventando uma forma servida em estratos e que só é possível nas margens do sono, provando ser também um resgate face às hipnoses mediáticas que hoje se nos impõem e nos têem teleguiado através de crises como a actual, sem nos oferecer a possibilidade de um confronto decisivo, antes afogando-nos nessa floresta de imagens e mensagens, de contradições extremadas que, em vez de aliciarem o pensamento, provocam a náusea e uma série de enjoos, enquanto, por outro lado, nos puxam pela manga, nos seduzem a esse recolhimento desolador, que nos faz “sucumbir nas novas modalidades do egocentrismo”
No capítulo VI, do livro original, Alice apela ao Gato de Cheshire que lhe indique uma direcção: “Por favor, diz-me que caminho devo seguir a partir daqui?” Ao que este lhe responde: “Isso depende bastante de aonde queres chegar.” Assim, a grande questão e aquela que alimenta o percurso desenhado por esta exposição é esse efeito de refracção que sofre o nosso próprio reflexo à medida que vai avançando por um mundo que, devido às suas virtudes mágicas, têm a capacidade de se misturar connosco, de se reelaborar infinitamente, tratando de expor essas formas de impostura que regem o mundo dos adultos, com todos os seus códigos e senhas, os seus hábitos que servem apenas para turvar as águas e dar a sensação de uma profundidade que tantas vezes lhe falta. Por isso, Alice é uma personagem que transporta essa perplexidade que é a mais irredutível qualidade da infância ao penetrar na incongruente e labiríntica organização que serve de biombo à vontade de dominação que nos cerca, desarmando com perguntas simples os seus interlocutores. Como disse ao El País Tom Piper, desenhador que ajudou na montagem da exposição, ali vemos o indivíduo cara a cara frente ao poder, questionando abertamente a sua autoridade. “Algo que se mostra muito actual face ao que hoje se passa e que tem semelhanças com esse mundo victoriano fascinado pela ciência, pela arte e pela política”, diz Piper. Na verdade, o fascínio de outros tempos deu lugar a uma ordem de suspeição arrogante em que cada indivíduo não se limita a questionar, antes exerce com uma grandeza e solenidade insuportáveis o seu juízo devastador sem nunca passar pela dúvida. Pode dizer-se que o mundo dos adultos chegou ao seu ponto mais celerado e ridículo, essa forma de senilidade em que todos se comportam como a Rainha de Copas, e num impulso que se deixa dominar por qualquer irritação, gritam: “Cortem-lhes as cabeças!”
A mostra patente no Victoria & Albert Museum é como um novelo que cresce a partir de demasiadas pontas soltas, seguindo o pulso de uma personagem e um imaginário que ganharam vida própria, de tal modo que andamos todos a ler aquelas aventuras mesmo aqueles que nunca se confrontaram directamente com as palavras de Lewis Carroll. Toda a gente conhece a Alice, ouviu falar dela, das suas aventuras, desse personagem que furou a membrana de uma mirabolante ficção e, por um processo de osmose cultural, passou o último século e meio a recriar-se no imaginário popular. De tal modo que, hoje, todos a temos algures, como uma instigante divindade nas regiões mais fulgurantes da infância, como uma espécie de benevolente inquisidor que nos anima a interrogar o sem sentido das nossas vidas, esses espectáculo de solenidade e de grandeza com que a sociedade cobre as suas partes pudendas. Assim, a exposição começa por uma falsa partida, com uma disposição de artefactos por trás de vitrinas, muito ao século XIX, exibindo o primeiro manuscrito de Lewis Carroll, bem como um daguerreótipo de Alice Liddell, a miúda que insistiu com ele para que escrevesse a história que lhe havia contado a ela e às suas irmãs. Estão ali também os primeiros esboços de John Tenniel, o célebre caricaturista que trouxe para contornos hoje imortais as figuras saídas da imaginação de Carroll, o qual, por sua vez, sempre as achou detestáveis, e acabaria por ilustrar ele mesmo uma das edições do livro, com desenhos sofríveis que logo caíriam no olvido. Mas depois dessa antecâmara é que o museu mergulha no sonho, entre a vertigem surrealista desses artistas que algumas décadas depois seriam dos primeiros a reinvindicar que havia mais realidade naqueles sonhos do que no mundo e nesse pão odioso que diariamente nos fazem engolir. Há também a transposição para o cinema mudo, essas revisitações mais tímidas ou ousadas no sentido de fazer secar ao sol deste mundo as palavras de Carroll, para traduzir e traficar como fruta seca as suas visões. Há margem ainda para a psicodelia dos anos 60, ou para a aculturação pop dos anos 80, e para uma série de incursões mais ou menos furtivas, incluindo as dissecações de tantos biógrafos, ensaístas e analistas, procurando extrair as mensagens políticas, o subtexto psíquico que vive menos da roupa presa à corda e mais da própria firmeza com que a corda permite que cada época estenda nela as suas intimidades.
A mostra funciona assim como um inventário exuberante de aproximações e roubos, de diálogos e transposições, contendo fragmentos do filme do artista plástico argentino Eduardo Plá, que se aproveitou da ingenuidade subversiva do célebre conto para urdir o seu protesto nos alvores da ditadura. Uma série de outros artistas comparecem ali, com as suas alusões mais ou menos directas, e não falta a Alice seguidores, esses que correm atrás do coelho branco, flechados mais pela curiosidade ou pelo desejo. Do desenho animado de Walt Disney ao filme de Tim Burton, passando pela moda, com os desenhos de Vivienne Westwood, pela pornografia, com a Playboy, pela ópera, pelo teatro ou pela música rock, este é um labirinto a perder de vista, provando que a Alice do reverendo Charles Lutwidge Dodgson da Igreja de Cristo, em Oxford, soube furtar-se aos contrangimentos e firmar uma devoção que se exprime pela indagação, tendo-se tornado um dos repositórios mais vastos dessa curiosidade que não se satisfaz, que não se deixa enganar ou iludir. Uma curiosidade que não desanimou e que persiste nos nossos dias com essa sua vingança que é o riso, esse riso que nos até lá fora, para rir de tudo o que se mostra pomposo e afectado na sua pretensa seriedade. Esse riso admirável e que é parte do nosso dever cívico, como defendeu um crítico a próposito da obra de Carroll, e que nos defende das limitações e dos verdadeiros modos de condicionar a nossa liberdade e confinar a imaginação.