Às vezes há momentos em que as coisas se quebram sem ruído e só damos pelos cacos muito mais tarde quando, inadvertidamente, os pisamos com os pés descalços. De há tempos a esta parte que tenho tentado tirar pedaços de vidro da planta dos pés até descobrir que já criaram raízes e não mais terei o passo descontraído de outrora. Ou seja, andar também pode doer. Sobretudo quando se caminha no sentido contrário do vento do tempo e da vontade daqueles que teimam em barrar-nos o caminho. Não é possível pararmos, no entanto.
Qualquer rajada mais forte empurrar-nos-á para uma esquina da qual não sejamos capazes de vislumbrar o futuro. As pequenas mãos do infinito estendem-se para me ajudar. Ficam na ponta da loucura, esses braços solidários, como dizia Mário Henrique Leiria. Por isso caminho, caminho sempre, e resisto à curiosidade de olhar para trás. As nuvens cinzentas pairam sobre um Sado de barro.
Os pardais e as andorinhas servem-me de companhia na solidão absoluta da escrita. Cada letra não é apenas uma letra, é uma parte do edifício que vou tentando construir para que possa viver sossegadamente dentro dele. Mesmo sabendo que as letras – uma apenas basta! – são a maior inquietação da minha vida desde que lhes aprendi o som. Tenho queimado pestanas ao longo das madrugadas no livro sobre os cem anos da História da Seleção Nacional de Futebol, que teve início em dezembro de 1921 – um milhão e 200 mil carateres, diz o contador do lado esquerdo.
Nas madrugadas só uivam os cães e piam os mochos no vãos das estreitas vielas que se cruzam com a Rua dos Almocreves. De resto, Alcácer está em silêncio. Nem sempre o silêncio nos ajuda a não tropeçar nas letras. Depende do que esconde. Este silêncio de agora, enquanto escrevo e o relógio já assinala as quatro e meia da manhã, traz consigo a profunda tristeza de uma saudade irreversível e inconfessável. Continuo a escrever. Sei de cor que a dor é a promessa que a vida cumpre sempre…