Nascido em La Spezia em 1952, Marco Ferrari visitou Portugal pela primeira vez poucos dias depois da Revolução dos Cravos. Desde então manteve uma ligação afetiva, amigos e um interesse pelo nosso país e a sua cultura, de que resultaram livros como Alla Revolucione sulle Due Cavalli (Para a Revolução num 2 Cavalos), que foi adaptado ao cinema mas nunca traduzido para português, e Le Nuvole di Timor (As Nuvens de Timor). É licenciado em Geografia, curso que tirou na Universidade de Florença, mas trabalhou desde jovem como repórter, e fez toda a sua carreira entre o jornalismo, a escrita e a televisão.
Quando começou a interessar-se por Portugal e pela cultura portuguesa?
Tive a sorte de chegar a Portugal alguns dias depois da Revolução dos Cravos. Era eu jovem repórter, e tinha-me tornado amigo de um exilado português que trabalhava na redação do meu diário como humilde distribuidor dos jornais pelos quiosques (viria a tornar-se secretário de Estado). Quando se deu a Revolução, e como tantos exilados políticos, também ele se pôs a caminho de Lisboa e eu segui-o pouco depois, apanhando um barco em Génova até Barcelona, prosseguindo à boleia até Madrid e metendo-me num comboio noturno para a capital portuguesa. Fui recebido na fronteira por um marinheiro. A atmosfera que se respirava situava-se entre a efervescência e a surpresa, a felicidade e a inquietude típica das democracias recém-nascidas.
Tem laços afetivos, amigos em Portugal?
Naquela época nasceram amizades que foram importantes na minha vida, como os dois realizadores a quem este livro é dedicado, José Fonseca e Costa e Manuel Carvalheiro, prematuramente mortos. Com Manuel Carvalheiro também frequentei a casa do Glauber Rocha [importante cineasta brasileiro] em Sintra, antes da sua morte prematura; dediquei-lhe o meu livro Lembra-se do Glauber.
O nome e a história de Salazar são conhecidos em Itália?
Não muito, na verdade. O meu livro, publicado em Itália para a Laterza, foi um grande sucesso e fez com que uma personagem complexa como Salazar fosse descoberta. A revolução dos cravos teve um grande eco em Itália e fez-nos descobrir um país distante, mais atlântico do que europeu. Felizmente, Portugal é hoje um dos países mais pró-europeus e, portanto, totalmente integrado no continente.
Onde fez a sua pesquisa e quanto tempo demorou?
Fiz a minha pesquisa no Arquivo Nacional Torre do Tombo. Com o tempo, escondi muito material sobre Salazar. Também naquele ano de 1974 colecionei livros escritos por muitos que foram perseguidos politicamente e que foram publicados livremente após décadas de ditadura. São livros comprados na rua que talvez nem existam nas bibliotecas portuguesas. Não é por acaso que o capítulo principal do livro é dedicado ao terror da ditadura, aspeto pouco conhecido em Portugal.
Fala português?
Estudei um pouco de português, mas com o tempo perdi-o. Felizmente, o meu dialeto genovês é quase semelhante ao português e tem a mesma cadência.
Neste livro não esconde a sua antipatia por Salazar. Essa antipatia mistura-se com um certo fascínio?
Tenho acompanhado de perto a evolução da cultura portuguesa desde a Revolução dos Cravos. Não conheci o período anterior [ditadura], ao qual o meu amigo Antonio Tabucchi dedicou o lindo livro Afirma Pereira. Desses dias dos cravos que passei em Portugal, permanecia no entanto uma inquietante sombra estendida sobre a vida de tantas pessoas: António Salazar. Tinha morrido alguns anos antes, mas era como se atravessasse as ruas ou pudesse surgir ao virar da esquina, estivesse num camarote do Teatro de São Carlos ou subisse no Elevador de Santa Justa para observar as pessoas abaixo, julgando tê-las ainda na mão. Passaram quase cinquenta anos e essa sombra tornou-se um conjunto de documentos, livros, estudos, filmes que me levaram a definir a figura da ditadura mais longeva da Europa. Foi certamente interessante descobrir como um simples homem do campo governava o império colonial mais extenso do planeta.
Esta parece-me, sobretudo, a história de Salazar contada do ponto de vista da oposição. Foi sempre essa a sua intenção ou procurou ser imparcial?
Sem preconceitos, tentei entrar no caminho do pensamento e da atuação de António Salazar, um homem aparentemente simples, dedicado ao Estado, com uma forte tradição religiosa, que, no entanto, ocultava um sistema de terror feroz e desumano. A razão de Estado não é suficiente para justificar o que fez com a tortura e prisão de milhares de antifascistas. Muitos jovens escolheram o exílio em vez de acabarem a morrer em África. Houve cerca de 8.000 desertores e 200.000 refratários que preferiam mudar-se para o estrangeiro, nomeadamente para França ou Alemanha, Estados Unidos e Brasil, em vez de vestirem a farda do exército. Em 1966, os portugueses residentes no estrangeiro atingiram o número impressionante de 4 milhões e 800 pessoas. Um quarto dos emigrantes da década de 1960 eram ilegais, com picos de saída de 37 mil pessoas em 1964. A sua política colonial, que levou à morte de milhares de nativos e mesmo à perda de uma geração de jovens portugueses que, de facto, se rebelaram contra a ditadura, também não pode ser justificada. Enquanto as outras potências coloniais concediam a autodeterminação, Salazar achava que Portugal não podia viver sem as colónias. Foi um erro fatal para o sistema ditatorial que acabou por pôr fim, depois da falsa ficção de poder de Salazar, à trágica comédia da política portuguesa.
Pareceu-me, também, que colocou a tónica sobre os defeitos de Salazar e do regime. Não encontra qualidades no homem e aspetos positivos nos 40 anos em que governou Portugal?
É injustificável que, para governar, se eliminem as liberdades políticas, se crie uma polícia política terrível, se mantenha o sistema de escravos nas colónias. Eram mais de 20 mil os agentes da PIDE/DGS (assim lhe chamaria Marcelo Caetano a partir de 1969), entre inspetores, subinspetores, chefes de brigada, agentes, funcionários e técnicos, embora se tenha calculado que os colaboradores ascenderiam a 200 mil. As pessoas assassinadas e torturadas foram mais de 22 800, em quase 50 anos de ditadura. Existem muitas biografias de Salazar, mas nenhuma destacou a contradição entre um homem religioso e a sua forma de realizar uma prática de terror. Esta foi a derrota de Salazar. Mesmo se, como Franco, ficando fora da guerra, pôde morrer tranquilamente na sua cama.
A sua experiência como escritor de ficção foi-lhe útil neste livro? Houve momentos em que deu mais liberdade ao romancista que há em si para escrever esta história?
Normalmente os meus romances têm um fundo histórico, mesmo os que estão ligados à cultura portuguesa, como Para a Revolução num 2 Cavalos ou As nuvens de Timor. Certamente, ao lidar com uma figura como Salazar, você também precisa de um toque de imaginação e de capacidade de descrição. O mesmo vale para outras personagens, como Dona Maria, o maior mistério da ditadura portuguesa.
Recorda-se do dia 25 de abril de 1974? As notícias da revolução chegaram a Itália?
Uma onda de emoção espalhou-se pelo mundo com a Revolução dos Cravos, em que as canas das espingardas dos soldados estavam cheias dessas flores vermelhas. O meu romance mais famoso, Para a Revolução num 2 Cavalos, que foi adaptado ao cinema e ganhou o Festival de Locarno em 2001, fala sobre isso. É a aventura de dois rapazes que saem de Paris para virem a Lisboa acompanhar a revolução. Mas chegam quando tudo já está terminado. Tenho pena que o livro tenha sido traduzido para muitas línguas, mas não para o português.
Sabia que Salazar foi eleito o maior português da História num programa de televisão em 2007? Isso choca-o?
Não me chateia que grandes protagonistas do século XX, como Churchill ou Estaline ou Mussolini, sejam considerados personagens importantes. Napoleão também resiste com o seu charme, mesmo Átila ou Aníbal. O problema é sempre o mesmo: do ponto de vista que olhamos para a História. Cristóvão Colombo era um grande navegador ou o precursor do extermínio dos índios? Razão de estado parece ser uma necessidade para ditadores, mas a visão da democracia não a justifica.