Onze contos que resgatam da tetralogia de O Cemitério dos Livros Esquecidos (A Sombra Do Vento; O Jogo do Anjo; O Prisioneiro Do Céu; O Labirinto Dos Espíritos) o mesmo halo intimista e misterioso de uma Barcelona envolta em pura fantasia. É por isso um resgate que muito agradará aos leitores familiarizados desde há muito com as suas personagens, as suas histórias, as suas maldições, suspiros e mistérios. Mas não são apenas alguns elementos da sua extensa obra que são aqui citados, não. Zafón dá vida também Gaudí, o autor de Um Poeta nos Infernos, Miguel de Cervantes e a sua amada Francesca di Parma, o escritor Ignatius B. Samson, ou o dramaturgo Lope de Veja.
Publicado depois da morte do escritor com 55 anos a 19 de Junho de 2020 e por isso, não haverá outra leitura possível deste livro que não a da nostalgia. Nostalgia essa, estampada logo na primeira epígrafe do livro, saída de A Sombra do Vento e também no primeiro subtítulo do conto Blanca e o Adeus, «Das memórias nunca acontecidas de um tal David Martín».
“Recordamos apenas o que nunca aconteceu” escreveu o autor em Marina. Pois bem, será no vapor dessas memórias que nos vamos repartir em planos onde o onírico e o real a todo o momento se parecem fundir, onde cada conto se parecerá com uma nova saga.
De tal maneira enlaçadas umas histórias nas outras, reaparece-nos agora a personagem de David Martín saído de O Prisioneiro do Céu. “E assim, chegado o dia 23 de Abril, os presos da galeria voltaram-se para David Martín, que jazia na sombra da sua cela com os olhos fechados, e pediram-lhe que lhes contasse uma história para afugentar o tédio. – Vou contar-lhes uma história – disse ele. Uma história de livros, de dragões e de rosas, como manda a data, mas sobretudo uma história de sombras e cinza, como mandam os tempos…”
Considerado por Margaret Atwood “um grande contador de histórias” ou pelo Lire como “um mestre absoluto do mistério” criador de “um suspense assombroso, um ambiente à Bram Stoker, uma erudição à Borges, um relato recheado de subtramas: Zafón é excelente em todos os registos.”
Subtramas onde o erótico e o terror, a luz e a névoa, nos tomam por completo. Mas embora todos aqueles que se tenham visto absorvidos pela sua prosa e pelo seus registos fantasiosos e que por isso não tenham perdido nenhum passo de O Cemitério dos Livros Esquecidos ou da triologia da Nebelina, a certa altura podem ter sentido um leve cansaço. Vendo bem, esse cansaço é compreensível, visto que foram muitas as centenas de páginas a deambular sobre o mesmo universo de sombras e cinza, mas o que acontece em Zafón é que quanto mais se lê, mais se quer ler. É uma espécie de adição. Sentimo-nos a consumir em excesso, a crepitar numa labareda, numa espiral talhada a dragões, a labirintos obscuros e intrigas para lá de trágicas. A Zafón por isso poder-se-à aplicar na perfeição a máxima “odiar-te-ão por isso, mas desejar-te-ão ainda mais.” É que não há como não desejar. Fica-se preso a cada enredo desde o primeiro capítulo. Crepitar nos seus relatos é cirandar numa irrealidade mais tentadora e profunda. Ficamos presos à vida de David Guerín o sonhador rapaz de oito anos que escreve histórias e se apaixona por Blanca, a menina rica com um estranho e dúbio historial familiar escoltada por uma criada implacável, de quem subitamente perde o rasto. “Sempre invejei essa capacidade que algumas pessoas têm de esquecer, pessoas para as quais o passado é uma mudança de estação ou uns sapatos velhos que basta condenar ao fundo de um armário para que fiquem incapazes de refazer os passos perdidos. Eu tive o infortúnio de recordar tudo e de tudo, por sua vez, se recordar de mim. Recordo uma primeira infância de frio e solidão, de instantes mortos a contemplar o cinzento dos dias e aquele espelho negro que enfeitiçava o olhar do meu pai. Quase não tenho memória de nenhum amigo. Sou capaz de evocar rostos de miúdos do Bairro de la Ribera com que por vezes brincava ou lutava na rua, mas nenhum que me quisesse resgatar do país da indiferença. Nenhum exceto o de Blanca.”
Mas que país da indiferença seria esse do qual apenas Blanca o terá salvo? De que país, de quais memórias se “as lembranças ruins nos perseguem sem que precisemos de as carregar connosco”?
É esta subtileza genial que faz de Zafón o escritor espanhol mais lido nas últimas décadas. Na sua escrita a memória sofre uma espécie de condensação, onde todos os elementos enigmáticos, soturnos e malignos se liquedesfazem sem, contudo, perderem o brilho ou esfriarem. E por ser este um último livro, mais do que nunca o contrário poderia acontecer. Ou seja, Zafón sabia perfeitamente quem eram os seus leitores e por isso sabia melhor do que ninguém manusear o fio a que os condenaria suspensos para sempre.
Este livro é só mais um exemplo de como o escritor nos soube seduzir, mais um exemplo de como nos soube manietar entre peripécias de piratas como os do conto Rosa de Fogo ou entre o drama da vida de Laia, filha do fotógrafo Eduardo Sentís ou a valentia de Edmundo de Luna. Ficamos deslumbrados com cada episódio porque não só a fibra com que os personagens são costurados é apetecível, como toda a cadência de acontecimentos é equilibrada, delicada, atordoadamente mansa. Mansa no sentido de que são sempre personagens que nos levam como que apanhados docemente na sua rede, onde a gosto nos deixamos saquear.
Ainda a respeito do conto acima citado recordemos os piratas em Rosa de Fogo. Estes vilões traziam sem saber no mesmo navio a bordo Edmundo de Luna, o homem que escondia consigo os mapas de uma biblioteca secreta, uma cidade de livros que iria existir escondida sob as catacumbas da Catedral de Hagia Sophia concebida para albergar todos os manuais proibidos. Como não imaginar essa cidade bibliófaga se por uns segundos fecharmos os olhos? Como não imaginar esse mundo apetecível e furtivo?
Para além dos piratas e de toda a envolvência do enredo há também uma particularidade que importa ressaltar nesta narrativa. É que imediatamente conectamo-la com os dias de hoje pelo facto de nos ser relatada uma Barcelona pandémica mergulhada em morte e abismo como a que vivenciamos nos nossos dias. Mas claro que ao jeito de Zafón esta maldição não tinha como não vir acompanhada de criaturas assustadoras, de amuletos e de poções mágicas saídas de uma lenda. Na verdade, neste seu imaginário fantasmagórico tudo nos parece emergido de uma lenda, onde tão depressa somos brindados com a gota de sangue de um último dragão, portador do segredo da imortalidade, como com uma lágrima de Cristo que a esta cidade servirá de escudo de salvação.
Embora seja sempre debruada pela mesma bruma, pelo mesmo tom opaco e embaciado, Barcelona desponta sedutora e ardilosa a cada diferente época ou perspetiva em que é retratada. Ou seja, quer no regresso à cidade espanhola de 1905 em Sem Nome, como à de 1616 em O Príncipe do Parnaso, ou ao ano de 1454 em Rosa Fogo, data em que a atroz pandemia devastou a cidade, Barcelona conservaria sempre o mesmo cariz irresistível, feiticeiro, maléfico desenterrada de “nuvens de algodão”.
Zafón parece ter a preocupação constante, talvez obsessiva de não querer fixar esta cidade numa só época para assim poder mantê-la à sua disposição, para poder assaltá-la a seu bel-prazer, consolar-se, regozijar-se e regressar aos seus tentáculos sem pressa a qualquer hora. E graças a isso o leitor parece flutuar de narrativa em narrativa quase como se num estado de regressão histórica e emocional se tratasse. Mas independentemente de qualquer época, também graças a isso Barcelona manter-se-ia constantemente à margem dos destinos açoitados das suas personagens. Barcelona não se oxidaria ou desfaleceria com nenhuma dessas tragédias. Não é o olhar amedrontado da mãe de David praticamente morta, caída num charco de água e lama junto a uns portões de ferro antes de o dar à luz, ou a loucura de Doña Eulalia depois de ter perdido a sua filha pequenina, ou o infortúnio de Edmundo de Luna ao ser engolido pelo dragão no momento em que decidiu perder a vida em troco da salvação da sua cidade. Não, jamais, porque há da parte de Zafón claramente o intuito de consagrá-la como uma cidade pedestal aos nossos olhos, uma cidade mirífica, suprema. E independentemente do ressoar amargo, da desgraça ou da melancolia estampada nas ruas e nos bairros, nos cortejos fúnebres pelas ruas estreitas, nos palacetes, nas ramblas, nos cemitérios ou nas caves decadentes, a tristeza de uma maneira ou de outra, acaba por escorar a cada reflexo a magia desta cidade.
Não há por isso dúvida alguma de que nesta obra Barcelona se apresenta como a personagem central. Magnetizante, gótica, portentosa, cristalina. No poema Barcelona Joan Margarit escreveu “Este nome é ainda um refúgio” e é sobre esse refúgio que todas as histórias, os livros, “os livros que são como espelhos onde só se vê o que possuímos dentro” e todas as mulheres de Zafón gravitam. E vejamos que todas elas são mulheres impossíveis, inalcançáveis. São mulheres de quem ele acaba por despedir e nunca mais encontrar. Desde Blanca, a primeira leitora das histórias de David Martín, até Alícia, ou Laura. Mas, uma vez mais à parte disso, Barcelona conservar-se-á até ao último sopro deste livro, como em todos os anteriores, inabalável. E inabaláveis permanecerão também todas as suas palavras. “Poucas coisas marcam tanto um leitor como o primeiro livro que realmente abre caminho ao seu coração. As primeiras imagens, o eco dessas palavras que pensamos ter deixado para trás, acompanham-nos por toda a vida e esculpem um palácio na nossa memória ao qual mais cedo ou mais tarde, não importa os livros que leiamos, os mundos que descubramos, o quanto aprendemos ou esquecemos, iremos retomar.”