A realidade tem muito mais força do que, em geral, imaginamos.
Por isso, ela irrompe e manifesta-se quando menos se espera e a propósito do que menos se espera.
Manifesta-se de diversas maneiras, por vias diferentes e, inclusive, através daquelas que, em regra, servem para a escamotear.
Agora, em tempos de pandemia, ela tem-se evidenciado com frequência, revelando-nos a todos e, sobretudo àqueles que a querem ocultar os seus lados mais desagradáveis, mesmo que mais verdadeiros.
Revelou-se, aquando do primeiro confinamento nas caras perdidas e corpos encolhidos dos sem abrigo que ninguém sabia onde fazer recolher, mas que, devido às ruas desertas, emergiam, então, mais evidentes aos olhos de todos.
Dada essa inesperada evidência, logo se mobilizaram os mais altos responsáveis políticos do país, prometendo, para breve, soluções capazes de minimizar o problema dessas muitas pessoas escorraçadas da sociedade e, nalguns casos, mesmo da própria vida.
O tempo passou, entretanto, e os sempre empolgados media, já distraídos com assuntos menores, pouco mais disseram sobre o assunto.
A realidade revelou-se, ainda, na patente falta de condições das habitações de muitos portugueses que, além de prejudicarem diretamente a sua saúde, dificultaram, entretanto, a sua vida, quando, por exemplo, quiseram cumprir com as novas obrigações laborais do teletrabalho.
Revelou-se nos processos sobre a corrupção e na ruinosa, ou abusadora, gestão financeira de alguns bancos e, depois de um aparente sobressalto cívico, escondeu-se, de novo, debaixo das dificuldades da intervenção judicial que, aliás, pouco mais pôde fazer do que procurar agarrar e desvendar as pontas do seu iceberg.
A realidade, reapareceu, todavia, ainda mais feia – como, por vezes, ela é de facto – aquando das transmissões televisionadas das audições parlamentares de algumas individualidades que, direta ou indiretamente, para aqueles escândalos da gestão da banca muito contribuíram.
Por mais que as queiram esconder, elas são hoje a cara risível, mas nem por isso menos escandalosa, de um sector muito significativo do nosso empresariado e dos nossos gestores.
Revelou-se, ainda, na mais que evidente guerra comercial entre os diferentes produtores das vacinas contra a Covid e entre estes e alguns países delas mais carecidos, mesmo que, por sua causa, ela possa estar a conduzir, diretamente, a um quase genocídio na India e em outras partes do mundo.
Revelou-se de novo, agora, inesperadamente, em vésperas da Cimeira Social da União Europeia, a propósito as condições dos imigrantes que povoam o Sul do nosso país e aí desenvolvem a agricultura em semiescravatura; consentida por uns, negligenciada e escondida por outros e, sobretudo, aproveitada por muitos dos de sempre naquela zona do país.
Revelar-se-á – se alguém quiser nisso reparar – na evidente escravidão dos mendigos, distribuídos, estrategicamente e com regularidade, pelos recantos das nossas cidades e vilas, por redes de exploração e tráfico de seres humanos: neste caso com a agravante de nela se incluírem velhos e crianças, muitas das quais aparentemente drogadas, para se manterem quietas durante o muito tempo que passam ao colo das suas supostas mães.
A realidade revela-se, também, mesmo que embrulhada em frios números e discursos académicos, na destapada polémica sobre a riqueza e a pobreza dos portugueses travada entre as Professoras Doutoras Raquel Varela e Susana Peralta.
A realidade, de uma maneira ou de outra, vem, episodicamente, mostrando-se sempre nua e crua, e só nela não repara quem, por todos os meios, a quer afastar dos próprios olhos ou dos olhos alheios.
Ela surge escorregadia e mesmo atrevida, por vezes, nos pontos mortos das câmaras e ecrãs da televisão e não se deixa intimidar pelos compadrios noticiosos dos que só gostam mesmo de revelar os alarmes chocados e chocantes daqueles para quem solidariedade humana se cinge à família ou ao clã a que pertencem.
A realidade, que poucos querem nomear, é, na verdade, a alargada e irritante pobreza – ou a miséria – de muitos dos que nos rodeiam, que fingimos ignorar, e que resulta, tão só, da má distribuição da riqueza gerada no país e da sua apropriação desproporcionada e, em muitos casos, indevida e mesmo criminosa, por uma minoria de pessoas.
E é esta realidade dura, que, quando se manifesta, sempre nos parece surpreender que é preciso, antes de tudo, discutir, combater a sério e resolver de facto.
Veremos o que, para além dos discursos empolgantes e das declarações de princípios sempre enfáticas, redundará de útil, a este propósito, dos tão celebrados resultados da recente Cimeira Social da União Europeia.