Megaprocessos e pensamento mágico


A Lei que temos chega bem para evitar megaprocessos com efeitos indesejáveis.


Ouvi dizer que vêm aí mudanças na Lei para acabar com os megaprocessos, e parece que há “sentir social” nesse sentido – o que, aliás, é sempre bom para dar a engolir xarope antes de saber se há doença, qual é e que causas tem. Ora, eu estou de acordo que os megaprocessos em geral têm mais desvantagens do que vantagens (embora estas também existam, e até em certos casos há razões ponderosas – a matéria é complexa, e não pode ser resolvida num qualquer fórum de comentários e opiniões). Mas concedamos que as desvantagens são maiores e que há que colocar freio na proliferação dos megaprocessos. Todavia, não é preciso mudar a Lei para isso. E, em segundo lugar, está por demonstrar que as mudanças legais conduzam aos resultados que com elas se pretende, até porque o Direito não é apenas Lei, é muito mais do que isso, e nesse “isso” normalmente investe-se muito menos. Aliás, não é de agora que sobre a Lei prolifera um pensamento mágico, que imagina uma causalidade supersticiosa e voluntarista entre a sua frenética alteração e o curso da realidade; se mudar aqui, mexer ali, tirar de um lugar e acrescentar no outro, crê-se que está encontrada a solução inteira e limpa para qualquer questão. Mas não é assim. E, não só não é, como por vezes traz novos problemas, sobretudo quando, por um lado, se vai alterar em intenso passo de corrida, a trouxe-mouxe, e sem pensar e enfrentar as causas das coisas, deitando areia (legislação) para fogueiras cuja ignição pouco ou nada tem que ver com Leis, e também, quando, por outro lado, se julga que tais pazadas acabam, como que por magia, com o que provoca o fenómeno (e os seus efeitos) que se quer evitar. Invocando Freud, é como se a Lei fosse para nós o que o totem era para “os selvagens”, um sagrado redentor, e alvo de ambivalência emocional, entre o desejo e a interdição. Cria-se um totem para que chova, não chove, mude-se o totem. E assim sucessivamente, de seca em seca.

A Lei que temos chega bem para evitar megaprocessos com efeitos indesejáveis. Começando pelos pressupostos da conexão de processos, é preciso ter em conta que as condições eleitas pela Lei são uma coisa, enquanto que a aplicação muito generosa e ampla que delas por vezes se faz é outra. E, além disso, existem regras para a cessação da conexão e para a separação de processos (artigo 30.º do Código de Processo Penal), e está lá tudo o que é preciso para evitar megaprocessos com maus efeitos; tudo, não falta nada, é ler, interpretar e aplicar as normas, podendo (e devendo) o MP ou o Juiz separar e tornar mais pequeno o que se tornou ou vai tornar mega.

Podem mudar vírgulas, incluir advérbios, alterar a ordem das orações, mas mais coisa menos coisa dará no mesmo, porque o que já há chega. Donde, se impõem uma afirmação e uma pergunta. A afirmação: não é com mais uma alteração da Lei que se dará a magia pretendida. A pergunta, que é o que mais importa (e cuja resposta é fundamental, mesmo que possa ser em certos casos incómoda): quais as razões pelas quais há megaprocessos, porquê e para quê? Esta é que é a questão, não é mudar e mudar (neste caso a Lei), para que tudo fique afinal na mesma – como já dizia o esperto Tancredi.

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