Jamaica, Tokyo e Europa. “Fica a escola da vida que é trabalhar atrás de um balcão”

Jamaica, Tokyo e Europa. “Fica a escola da vida que é trabalhar atrás de um balcão”


Após vários anos no centro da movida da rua cor de rosa, os três clubes migram para o outro lado do Cais do Sodré. As obras iniciam-se daqui a uns dias, mas quais as recordações que ficam? O que deixará mais saudades e o que se poderá esperar de novo?


“Custa-me deixar o espaço que nasceu praticamente quando eu nasci”, desabafa Fernando Neto Pereira, proprietário do Jamaica e do Tokyo, ao i. As memórias fazem-no recuar aos tempos de infância, em que ficava a observar os mosquitos que se juntavam às centenas nas luzes do teto, enquanto bebia as colas Canada Dry que pedia ao pai, numa altura em que a Coca-Cola era proibida pelo regime. “Lembro-me das noites de trabalho nas vésperas de feriado a partir dos 15 anos, porque o meu pai teimava em não pagar aos funcionários. Fica a marca da escola da vida que é estar atrás do balcão, que me permitiu conhecer o bom e o mau das pessoas. E ficam na memória os amigos com quem passei noites memoráveis, as namoradas que passaram pela minha vida e que quase na totalidade conheci no Jamaica”, relembra o proprietário.

Foi precisamente naquele espaço que Fernando Neto Pereira conheceu a sua primeira mulher, com quem teve o seu primeiro filho. Foi também ali que beijou pela primeira vez a mãe do seu segundo filho. “Há tantas memórias que podia escrever um bestseller”, garante.

AS VERDADEIRAS RAZÕES DA MUDANÇA DE ESPAÇO Os históricos clubes noturnos lisboetas Jamaica, Tokyo e Europa vão deixar a Rua Nova do Carvalho, no Cais do Sodré, e mudar-se para o Cais do Gás, do lado de lá da emblemática estação de comboios. Esta migração de espaço permitirá a recuperação dos armazéns em frente ao rio, reativando o universo noctívago de Lisboa. A reabertura está prevista para o final de 2021.

Fernando Neto explica que o novo regime do arrendamento urbano de 2006 já dava ao senhorio a possibilidade de terminar os contratos de arrendamento sob determinadas condições. Mas a separação teria sempre que ser negociada com o arrendatário: “Quando eu e o meu irmão adquirimos o Tokyo sabíamos disso e o valor negociado teve em conta as regras deste regime, de modo a que se tal sucedesse não saíssemos do Tokyo com prejuízo”. Em 2015 surgiu a primeira alteração ao Novo Regime do Arrendamento Urbano, que trouxe mudanças para os estabelecimentos comerciais: fazia desaparecer os artigos que obrigavam à negociação, “sobrando uma indemnização de 12 meses do valor da renda paga sem direito a retornar ao espaço se a obra a executar fosse uma remodelação profunda”. O proprietário admite que essas alterações baralharam as contas feitas aquando do investimento na aquisição do Tokyo e sublinha que “a sorte destes espaços foi decidida pelos processos que o Jamaica e o Tokyo moveram contra o senhorio pelos prejuízos causados às sociedades, em consequência do encerramento forçado de quatro meses, em 2011”, devido a um colapso no interior e ao risco de derrocada, que obrigaram a uma intervenção estrutural. “Penhorámos o edifício pelo valor das indemnizações pedidas, e dessa forma impedimos que o mesmo fosse vendido”, explica.

A troco do perdão de metade das indemnizações decididas em tribunal, o Jamaica, o Tokyo e o Europa continuaram no espaço que os viu nascer até lhes ter sido cedido um novo espaço que ficará pronto para os acolher em breve.

Foi em 2018 que os proprietários receberam a garantia deste novo espaço disponibilizado pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) situado no quarteirão atrás da estação de comboios do Cais do Sodré e ao lado da estação fluvial em frente ao Tejo, donde partem as ligações para Cacilhas, Seixal e Barreiro. Esta novidade representou um alívio para Fernando, primeiro por ter a garantia do espaço para as três casas e, segundo, “porque esse facto permitiu fechar a negociação com o senhorio, garantindo a permanência dos espaços até os novos estarem concluídos”.

O contrato de arrendamento está fechado e os projetos licenciados. As obras, que deverão arrancar daqui a dias, decorrerão ao longo de seis ou sete meses – o proprietário está confiante de que, até lá, a situação pandémica, pelo menos no que diz respeito aos estabelecimentos de bebidas, já esteja resolvida.

REINVENTAR A CASA “Já se fala disto há muito tempo, mas quando recebi a notícia custou um bocadinho porque o Jamaica para mim e para muitos, é ali, naquela rua”, confidencia Bruno Dias, DJ residente no Jamaica, e filho do primeiro disc jockey do bar, Mário Dias. “Agora temos de pensar positivo, pensar que vamos para um sítio com melhores condições, mais bonito”.

Definida a área e a localização de cada um, elaborado o programa que cada espaço gostaria de ver cumprido, passou-se ao projeto, facilitado pelo facto de Fernando, o proprietário dos bares Tokyo e Jamaica, ser também arquiteto. Quem frequentou os antigos espaços, sabe que os clientes se acotovelavam no interior – e chegar ao bar ou às casas de banho podia ser um verdadeiro quebra-cabeças, furando entre a multidão apinhada. As novas instalações prometem ter áreas técnicas com condições, áreas de atendimento estudadas ao pormenor, mais espaço para armazenamento e equipamentos de ventilação e ar-condicionado que garantam as melhores condições para o público.

Segundo o proprietário, até as condições de acesso irão melhorar: “No Cais do Gás existe muito estacionamento a poucos metros da nossa localização, o local encontra-se a escassos metros de todos os meios de transporte público e acima de tudo é-nos possível ficar perto do antigo espaço, permitindo que o público mantenha os percursos que fazia ao longo da noite, que, por norma, terminavam no Cais do Sodré, mas que agora acabarão no Cais do Gás”, antevê.

Jamaica e Tokyo ficarão com o acesso voltado para a estação de caminho de ferro e terão um pátio vedado que poderá funcionar como esplanada, “sendo a partir desse pátio que conseguiremos entrar na área coberta de cada um”. O pátio oferecerá uma área de fumadores, uma vez que desde o início do ano não é permitido fumar em qualquer estabelecimento, algo que pode ter passado despercebido ao público pois os bares estão fechados.

AS NOVAS GRANDES APOSTAS E PARCERIAS “O interior é muito simples e foi criado à semelhança dos espaços originais, sem elementos de distração para o que realmente interessa: ouvir boa música, dançar, conhecer pessoas e divertir”, explica o proprietário. A área bruta é de 675 metros quadrados, dividida em partes iguais (225) pelos clubes. As lotações máximas permitem 309 clientes no Jamaica, 235 no Tokyo e 322 no Europa. A área destinada ao público será significativamente maior no Jamaica do que no Tokyo, mas “para não alterar essa tão peculiar característica de estarmos todos muito perto uns dos outros, existirá uma parede móvel que permitirá que o bar fique com praticamente as mesmas dimensões que o bar que todos conhecem”.

O Europa ficará com o acesso principal voltado para a estação fluvial e a sua localização junto do rio permitirá que funcione num horário mais alargado, abrindo antes de escurecer.

Até à inauguração, os clubes lançarão a cada 15 dias uma novidade na página www.caisdogas.com. “A programação prevê fazer DJ Sets sob responsabilidade de Jamaica e Europa e concertos de música ao vivo pelo Tokyo, gravados e filmados nos novos espaços, no decurso das obras que iremos iniciar em breve”. Os eventos serão também acompanhados por artistas plásticos que irão executar, ao vivo e durante o evento, obras de arte efémera no decorrer das gravações, que se tornarão o cenário para cada momento. “Além de permitir a audição e visualização de bons projetos, a iniciativa também tem a intenção de unir os três espaços numa missão para que o público acompanhe a evolução da obra, descobrindo a cada evento o estado em que se encontra”, revela.

Com as novas condições no Tokyo, será possível programar projetos que irão elevar a fasquia das bandas, “tudo sem esquecer a oportunidade que sempre proporcionámos aos projetos mais jovens”.

O Comicalate foi um desses projetos que Fernando apadrinhou. Passou a ser a cara das noites de segunda feira, a MONDAY SPECIAL. Miguel Leão, um dos fundadores, conta ao i como surgiu a parceria: “Fomos ao bar Tokyo à procura do Fernando que, mesmo sem nos conhecer nos recebeu de braços abertos e mostrou entusiasmo pelo nosso entusiasmo”. Como o bar se encontrava sem programação às segundas-feiras e a festa de lançamento foi um sucesso, o Comicalate ficou residente nesse dia da semana.

“As festas funcionaram como um local onde ilustrávamos a nossa forma de pensar. Além da cedência do espaço, o Fernando sempre apoiou o projeto de diversas formas, deixando-nos gravar no bar, conectando-nos a marcas e sempre disponível para ajudar”, explica Miguel Leão. “Ao entrarem no bar, naquele dia da semana, as pessoas passavam automaticamente a fazer parte do acontecimento e ao longo da festa podiam dançar, cantar, rir, criticar o que estava a acontecer, ficar apenas a observar”, recorda.

No novo Jamaica, o arquiteto deseja ver surgir parcerias com galerias alternativas de Lisboa, numa programação que irá associar “a melhor música com o que de melhor se faz nas artes plásticas”.

NOVO CONCEITO SINÓNIMO DE NOVA MÚSICA? DJ residente desde 2006 e filho do primeiro disc jockey do Jamaica, Mário Dias, Bruno começou aos poucos. “O meu pai costuma dizer que tudo o que eu sei, aprendi sozinho, embora tenha crescido a ouvir muita música em casa. Lembro-me que me sentava em cima de uma caixa de vinis que existia na cabine e, a dada altura, fiz amizade com o Armando, o DJ”, relembra.

Estreou-se como DJ no Tokyo, em 1998. “Trabalhei lá oito anos ao todo e, em 2006 os donos do Jamaica convidaram-me para trabalhar. Depois de muito pensar, e pelo facto de o meu pai ter sido o primeiro disc jockey do bar, aceitei”. Por força do hábito, muitas vezes dirigia-se para a porta do Tokyo, para só então se aperceber de que já não era ali que trabalhava.

Agora, com a nova mudança de espaço, o DJ pensa naquelas que serão as apostas musicais. “Mudámos o espaço, mas a música será sempre aquela a que as pessoas estão habituadas”, garante. O proprietário concorda: “A música manter-se-á e, mesmo com algumas alterações à programação semanal dos dois espaços, a ideia é manter o essencial de ambos”. Ou seja, o Jamaica continuará a ser o lugar por excelência para dançar ao som dos grandes temas da pop, do rock e do reggae, com todos os nomes fortes da música das décadas de 60 a 90.

O palco do Tokyo, “maior, expansível e tecnicamente dotado do melhor equipamento de som e luz”, irá garantir um dos “mais impecáveis espaços de música ao vivo” em Lisboa, com uma plataforma pouco elevada e a acústica estudada de forma a conservar “a intimidade do antigo palco com que público e bandas vibravam”.

Quanto ao Europa, seguirá a “missão de diversidade enquanto um dos clubes underground mais respeitados do continente, com a sua música eletrónica sofisticada”, com a pista de dança também a aumentar, bem como o lounge.

MEMÓRIAS QUE FICAM A ligação entre o Jamaica e o Tokyo sempre foi evidente, quer para clientes, quer para funcionários. Vanessa Diogo esteve “com a família jamaicana” durante um ano antes de se tornar responsável pelo bar no Tokyo. Agora, com o fecho de portas, o que mais lhe custa é a sensação de “uma despedida meio à pressa” que não permitiu uma preparação emocional para o que vem a seguir. “Acho que o mais difícil foi o último dia das mudanças, a sensação de fechar aquela porta e saber que nunca mais vou voltar a pisar aqueles bares. Devido à pandemia, não nos foi possível fazer uma despedida à altura”, lamenta.

A vida noturna é palco de situações insólitas, perigosas e, muitas vezes, fora de controle. Mas Bruno Dias faz um balanço positivo. “É de noite que as pessoas são mais elas próprias”, diz-nos. Para o DJ, essa sensação de transparência é consequência da descontração que as pessoas sentem após um longo dia de trabalho. “As pessoas trabalham a semana inteira e quando chega a altura de ir beber um copo, tiram a capa do trabalho, da mãe, do pai, da filha e do filho e são apenas elas”.

Ficam na memória os momentos em que recebeu convidados como Zé Pedro dos Xutos e Pontapés, os amigos que fez, e as noites memoráveis que viveu a dar música ao seu público.

O prédio da Rua Nova do Carvalho foi vendido pelos cerca de 30 proprietários a uma imobiliária, que, por sua vez, o revendeu a um grupo hoteleiro francês. O otimismo de Fernando Neto contrasta com o “saudosismo” de Vanessa. “Se os passados 50 anos do Jamaica deixam muita história para contar, a concretização do novo espaço irá com certeza permitir que mais 50 anos de história se criem e fiquem na memória das próximas gerações”, antevê o proprietário.

O NASCIMENTO DOS BARES E A TRAIÇÃO AO GALEGO “O Jamaica surge a partir de um enredo muito engraçado que poucos conhecem”, revela Fernando Neto. O seu pai era gerente do Europa e trabalhava com o galego Serafim Fernandez Seoane, o proprietário do espaço. A relação de proximidade e confiança levou “a que sempre que o meu pai ia a Monção visitar a sua família, levasse maços de notas para a família do patrão, passando a fronteira com o dinheiro metido nas zonas mais recônditas do carro, porque à época não era permitido retirar divisas de Portugal”.

Entretanto, Avelino Pereira, e outro sócio, Luís Cabral, aconselhados pelo seu pai, que estava por dentro dos números do negócio, fizeram uma proposta a Serafim Fernandez para ficarem a sociedade que detinha o Europa. “Claro que, como bom galego, o Serafim já tinha tudo planeado, e com um saco cheio de notas adquire a loja ao lado do Europa (atual Tokyo) e no contrato que faz com o senhorio fica salvaguardada a possibilidade de juntar a este a leitaria onde se localizava o Jamaica”, recorda. A intenção do galego era conseguir juntar a loja onde hoje se localiza o Tokyo com a leitaria onde se localiza o Jamaica, e dessa forma conseguir a maior casa do cais do Sodré, defraudando as expectativas que os sócios que adquiriram o Europa tinham quando lhe ofereceram um “saco de notas” pelo negócio.

Percebendo essa intenção, Avelino Pereira e Luís Cabral depressa negociaram com os proprietários da leitaria, conseguindo fechar o negócio antes do galego.

Se no início Serafim ficou furioso com a “traição”, depressa perdoou ao sócio. “A tal ponto que foi ao meu pai que a amante do Serafim telefonou quando ele morreu no leito dessa tarde de ócio e prazer”, recorda Fernando.

Pelo facto de ter conseguido evitar o negócio que poderia ter levado à ruína o investimento efetuado no Europa, os sócios deram ao pai do atual proprietário uma quota, que ainda hoje permanece na família desde a inauguração em setembro de 1971.

Quanto ao Tokyo, o espaço transformou-se nos anos 80 pelas mãos do João Alegria, icónico gerente, e do DJ Vitor Fernandes. A programação apostava forte na cultura e incluía até passagens de modelos.

Também curiosa é a história de como Fernando e o irmão, José, adquiriram o Tokyo há 10 anos, quando se deu a derrocada nos pisos superiores. Enquanto decorriam as obras para estabilizar o edifício, “fomos todos de férias, eu e a minha família para Monção e o proprietário do Tokyo, filho do Serafim galego, José Alvarez Seoane, para a Galiza”, conta Fernando. Sabendo-o ali perto, a mãe de Fernando convidou o espanhol para almoçar em Monção. Num dia de calor, “almoçado à minhota e regado com um bom Alvarinho”, José avançou com a ideia de adquirirem o Tokyo. E o negócio concretizou-se poucos meses depois.