Na cultura política de Timor-Leste, Xanana Gusmão, talvez mais do que qualquer um dos seus companheiros, mantém um estatuto quase divino, de pai da nação, tio querido de todos, ou ita bo’t, que significa comandante ou irmão mais velho. Já entre os países amigos que ajudaram a dar à luz Timor-Leste, como Portugal, a sua antiga potência colonial, Xanana é lembrado como uma espécie de Nelson Mandela timorense, ícone da resistência aos massacres indonésios. Foi de boca aberta que se viu o antigo Presidente a dormir ao relento, à porta do centro de isolamento de Vera Cruz, exigindo que o cadáver de um homem que dera positivo à covid-19 fosse entregue à família. De ar maltrapilho e perturbado, acusou o Governo de mentir, negando o impacto da pandemia no país, acabando filmado a esbofetear um homem e uma mulher no meio da rua, ambos filhos do falecido, segundo o Guardian.
“Este não é o Xanana que conheci, de quem sou amiga e serei sempre. Disso não há dúvida nenhuma”, desabafa a ex-deputada e candidata presidencial Ana Gomes, confidente próxima do líder timorense, ao i. “Até por temperamento, ele era dado a algumas atitudes coléricas. Mas nunca vi ‘destemperanços’ como estes, bater em pessoas, dar estaladas”, admira-se a socialista. “Quer por estes atos, como estar a dormir na rua, fazer aquele protesto, as posições que está a tomar em relação à covid-19, parece estar desequilibrado. E admito que seja por questões do foro neurológico que se tenham agravado. E que isso possam ter a ver com coisas do passado”.
Ana Gomes sabe bem do que fala. Foi chefe da missão diplomática de Portugal em Timor-Leste, durante o conturbado processo da independência da Indonésia, acompanhando de perto o então dirigente da FRETILIN (Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente), mesmo no período negro em que esteve condenado a prisão perpétua, mantido na prisão de Cipinang, em Jacarta, onde foi sucessivamente torturado.
Muito antes disso, Xanana já se destacara na guerrilha, escondido entre os cumes de Matebian, as montanhas gémeas, parte da cordilheira que cruza Timor, que os mitos indígenas atribuem aos espasmos moribundos da mãe terra, quando se escondeu no subsolo. Do alto, Xanana assistiu aos avanços das tropas indonésias, na invasão de 1978, “às explosões, mortes, bombardeamentos”, como contou, numa entrevista resgatada pela revista australiana New Mandala. “Mas o povo estava calmo. Talvez resignado, verdadeiramente preparado para que todos morrêssemos aqui”.
Os crimes continuaram. Timor-Leste, então, ainda formalmente chamado Timor Português, perdeu quase um terço da população durante a ocupação, culminando no massacre de Santa Cruz, em 1991, quando militares indonésios abriram fogo sobre a multidão, no funeral de um jovem ativista, vitimando entre 300 a 400 pessoas, perante as câmaras de televisão. O mundo ficou em choque, Rui Veloso escreveu Maubere – “quando o sol nasce em Timor Leste; há dor e medo por trás de cada porta; as ruas são vigiadas por M 16’s” – e, quando finalmente houve um referendo à independência, após a queda do ditador indonésio, Suharto, em 1999, dezenas de milhares de portugueses saíram às ruas, a dar as mãos numa corrente humana, em solidariedade com os timoreses. Sim, conseguiram a independência. Mas o trauma ficou, lembra Ana Gomes.
“Nem Xanana, nem a generalidade dos timorenses, ninguém teve apoio pós-traumático para o que sofreram”, salienta a amiga do líder timorense, que já tem uns vetustos 74 anos. “É possível que, nos últimos anos, com a idade, essas terríveis mazelas do tempo da guerra, tanto físicas como psicológicas, se tenham agravado. E que isso explique estes comportamentos”, aponta. “As pessoas que passaram o que eles passaram… Nós que vivemos uma existência tranquila, não podemos imaginar”.
Talvez as dores de costas crónicas de Xanana, quase incapacitantes, de que este já se queixava em 1999, talvez tenham contribuído, acrescenta Ana Gomes. Bem como a sua saída do Governo timorense, o ano passado, a mal. “Sei que foi muito traumática para ele, muito traumática, isso eu sei”, salienta a ex-candidata à Presidência da República. “Há sempre uma luta de poder ali, entre os líderes históricos. Portanto, durante uns anos, ele estava como ministro, mas, no fundo, era ele quem mandava. E de repente as coisas mudaram. Ele não conseguiu passar o Orçamento, e, a certa altura, viu-se fora do Governo”, diz. “O Xanana tem o temperamento de pessoa de poder, de quem exerce o poder. E não é fácil para quem sempre exerceu poder de repente não o ter”.
Desconfiança
“Tio Xanana, como é que não acredita que isto não foi covid-19? Temos os resultado, o resultado mostra que ele estava positivo à covid-19”, implorou a ministra da Saúde de Timor-Leste, Odete Maria Freitas Belo, na segunda-feira, à frente do hospital de Vera Cruz. Referia-se a Armindo Borges, de 47 anos, que faleceu este domingo, quando estava em isolamento, aparentemente sofrendo um AVC, segundo a família – que, defendendo que o pai não morreu de covid-19, tenta impedir que este seja sepultado no hospital destinado a pacientes com coronavírus, para receber os ritos fúnebres tradicionais, com o apoio de Gusmão. “Digo ao povo, se se sentirem doentes não vão ao hospital, porque se forem lá vão tratar-vos à covid-19 imediatamente”, respondeu o antigo Presidente, citado pelo Sydney Morning Herald.
Não podia haver pior altura para esta confusão. Não só o país começou a sentir os impactos da pandemia, após quase um ano praticamente sem transmissão comunitária, como ainda tenta recuperar de umas cheias desastrosas que varreram boa parte de Dili e arredores. No meio do caos, a esperança é que a tormenta não varra também o legado de Xanana. É que “as pessoas mais extraordinárias, caindo numa situação de desequilíbrio, podem fazer as coisas mais inacreditáveis”, lamenta Ana Gomes.