Jorge Coelho e o problema dos insubstituíveis


O Jorge Coelho é insubstituível, mas deixou-nos um caderno de encargos individual e comunitário, difícil de concretizar, uma enorme empreitada.


O povo costuma dizer que não há insubstituíveis, infelizmente não é verdade. Até pode ter algum fundo de verdade para a generalidade das pessoas, mas a malha fina das nossas vivências individuais e comunitárias faz emergir uma realidade bem diversa. Eles existem, tocam-nos, inspiram-nos e farão sempre falta, porque faziam a diferença na espuma dos dias e nos fluxos mais perenes. Já o tinha sentido depois da perda do Fausto Correia, sinto-o já agora, a quente, após a devastadora realidade da morte do Jorge Coelho.

Do passado que foi escrito se poderá dizer que muita coisa foi diferente pelo que o Jorge fez, pela alma que trouxe para a política e pela política com alma que concretizou, humanizada, próxima e com sentido de concretização transformadora a favor das pessoas e dos territórios. Foi assim em funções públicas e nos desafios empresariais que materializou, mas também em cada dia, mesmo que já não estivéssemos juntos o tempo de outros tempos em que o compromisso partidário era partilhado com a intensidade que impunha.

O problema é mesmo o futuro que temos pela frente e a perda de um ser especial, na esfera da singularidade que caracteriza os insubstituíveis.

O Jorge Coelho é insubstituível, mas deixou-nos um caderno de encargos individual e comunitário, difícil de concretizar, uma enorme empreitada. Podemos individual e coletivamente fazer como já fizemos com outros insubstituíveis, fingir que não se passou nada, que vamos manter tudo na mesma e que os resultados aparecerão, mas não.

É preciso tentar mitigar a perda, não por nós, mas porque vai ser importante para os destinos das comunidades tocadas por ele.

Partilhei com o Jorge muitos caminhos partidários, políticos e pessoais, de uma amizade que do meu lado foi sempre uma aprendizagem permanente do interminável esforço em ser melhor com as pessoas, em ser frontal no pensamento e na ação, em saber os caminhos para a divergência e para a convergência e em estar orientado para a obtenção de resultados, com regras, respeito pelos outros e sem prescindir dos valores.

Confesso que além da perda brutal, irreparável, o que mais me chateou por estes dias foi a invocação permanente da sua assunção de responsabilidade política na queda da Ponte de Entre-os-Rios. Um homem que se caracterizou pela concretização, não pode ser lembrado apenas por uma demissão que, por mais nobre tenha sido, e foi, é um retrato de um país doente, exaurido de valores e sem relevante remédio, desde o trágico acontecimento e da sua demissão como ministro. Invocar a demissão do Jorge, o seu desapego ao poder formal como exemplo máximo de uma jornada vida, é reconhecer que o certo se converteu em exceção e que a regra é o que infelizmente assistimos em tantas ocasiões nas últimas duas décadas. A culpa morre quase sempre solteira, ninguém é consequente na responsabilização política e nas outras projeções da responsabilidade. Podem até assumir a responsabilidade na conversa, mas ficam-se. Este é o primeiro ponto de um caderno de encargos que o Jorge nos deixa, a urgência de uma maior responsabilização consequente, que inspire confiança nas pessoas, reerga os valores e não dê espaço aos populismos. Não o podemos substituir, mas podemos ser melhores.

O Jorge cerzia como ninguém, a juntar peças, a mobilizar as diferenças para o mesmo lado, a estar próximo, a estar sintonizado com a realidade e a fazer dos projetos um espaço de energia positiva, bem diferentes do destilar de ódios, invejas e ligeireza a que esteve tantas vezes sujeitos pelas suas opções empresariais pós-política ativa. Nas diferenças, infelizmente posso agora dizer o que já dizia em relação ao Fausto Correia. Politicamente, nos últimos anos, muita coisa teria sido diferente se o Fausto fosse vivo e para o futuro, apesar de estar fora do olho do furacão da política, muita coisa seria certamente diferente se o Jorge desse uma palavrinha. Não o podemos substituir, mas devemos ser melhores, sobretudo quem está no exercício do poder ou em funções públicas.

O Jorge podia ter sido tudo e foi o que quis ser, mas, mesmo na sua morte, pairou aquele preconceito bacoco das elites de Lisboa e da Linha, que tendem a olhar de soslaio quem vem de fora, da província, e tem a ousadia de, por mérito próprio, tomar posição num território aparentemente reservado aos que têm o pedigree do berço no epicentro da luz, a capital. Na SIC, alguém da cercadura da elite, com responsabilidades na estação, dizia que o Jorge não era de ideias, mas de fazer e de ser braço direito, qual calço de pensador com pedigree da capital. São muitos os exemplos de obras concretas reais, palpáveis, de transformação da realidade das pessoas e dos territórios, no partido, nas obras públicas ou na administração interna, onde muitos o consideram o melhor ministro que tiveram, mas bastam as Lojas do Cidadão e a desburocratização subjacente, com o cidadão no centro do modelo, para que o disparate da falta de ideias caia por terra. Assim quem lhe sucedeu nos governos até hoje tivesse alimentado a ideia com o alento que baste para que não sufocasse perante a pressão do êxito, na ótica do cidadão, amiúde enleado na teia burocrática das quintinhas e dos pequenos poderes. Não o podemos substituir, mas podemos ser melhores.

O Jorge nunca esqueceu as raízes e sintonizado com a realidade do país, sinalizou que a ideia de valorização do Interior, a afirmação das marcas de identidade e o apuro da sua capacidade produtiva tem de ir além da retórica, tem de ser concretizada, com uma visão humanista, sustentada e transformadora, apesar das resistências burocráticas a qualquer concretização, mesmo com a vontade facilitadora dos poderes locais. A Queijaria Vale da Estrela é tudo isto, compromisso com a memória, sonho e valorização do Interior, de quem lá vive, de quem produz e do território. Não o podemos substituir, mas podemos ser melhores.

O problema dos insubstituíveis é que temos de ser nós a assumir o que deixou de ser feito por quem nos deixou. O Jorge deixou-nos este caderno de encargos, que devia ser objeto de uma empreitada geral, porque o ajuste direto foi concretizado ao longo do caminho que partilhámos e dos elogios proclamados ao longo dos últimos dias.

Por mim, sem grandes esperanças de adesão geral à empreitada, procurarei honrar o essencial do legado e estar atento ao caderno de encargos, em esferas que não são o que eram e julgo nunca voltarão a ser.

Os insubstituíveis existem! Até sempre Jorge!

António Galamba

Escreve à segunda-feira