Se há algo que os jogadores e adeptos do Liverpool gostam é de enormes desafios. E hoje estão perante um desafio do quilé – ultrapassar a derrota sofrida em Madrid (1-3) na semana passada de forma a estarem presentes nas meias-finais da Liga dos Campeões que ainda há dois anos conquistaram.
Os espanhóis chamam-lhes remontadas; os ingleses preferem a expressão comebacks. Temos todos presentes na memória a forma como o Liverpool conseguiu dobrar o cabo das tormentas do resultado duro que sofreu em Camp Nou, há dois anos mais ou menos, face ao Barcelona, por 3-0. A segunda mão de Anfield ficou para a história graças a uma goleada por 4-0 que catapultou os reds para a sua segunda final da Liga dos Campeões consecutiva. Neste momento, não é preciso tal exagero de golos. No caso de manterem a baliza a zeros, os ingleses só têm que marcar dois golos. E, convenhamos, o Real Madrid, com toda a pompa de realeza que arrasta atrás de si em forma de capa debruada a ouro como campeão de todos os campeões, já levou muito plebeiamente com uns panos encharcados na sua face aristocrática.
Se dermos uma rápida vista de olhos pelas derrotas europeias do Real Madrid por três ou mais golos, descobrimos que o resultado mais desnivelado que sofreu foi de 0-5. E logo na primeira das edições da Taça dos Campeões Europeus, de 1955-56, levou 3-0 em Belgrado, frente ao Partizan, que tinha eliminado o Sporting na primeira eliminatória. Agora, à distância, até aceitaríamos que tal score surgiu por desleixo. A grande equipa comandada por Don Alfredo Di Stéfano tinha massacrado o seu adversário na primeira mão, em Madrid, por 4-0, o que lhe deu margem suficiente para seguir para as meias-finais a despeito dos dois golos de Milutinovic – o último já aos 87 minutos – e do de Mihajtovic.
Foi preciso esperar até à época de 1964-65 para o Real levar uma coça das antigas, no velho Estádio da Luz, frente a um magnífico Benfica: 5-1. O resultado refere-se à primeira mão. No Santiago Bernabéu, o esforço dos madridistas não os levou para além do 2-1. A primeira goleada sofrida em solo britânico, foi na época de 1975-76, com um 1-4 no campo do Derby County. Depois, em casa, a remontada: 5-1. E, até hoje, o Real é bem mais conhecido pelas reviravoltas a seu favor do que contra.
Em 1979-80, o assunto foi feio. Nas meias-finais, frente ao Hamburgo, depois de vencer em Espanha por 2-0, com dois golos de Santillana, um dos melhores cabeceadores da história do futebol, o Real foi a Hamburgo ser humilhado: 1-5, golos de Kaltz (2), Hrubesch (2) e Memering. Um confronto para Klopp tomar nota.
Golos e mais golos. Dois anos mais tarde, outra vez na Alemanha, o país que pior tem recebido a realeza madrilena, depois de ter vencido no Santiago Bernabéu o Kaiserslautern por 3-1 preparou-se para viajar tranquilamente até à Renânia Platinado, mas a viagem teve de tudo menos tranquilidade. O Kaiserslautern esmagou os merengues por conclusivos 5-1 no Fritz-Walter-Stadion nos quartos-de-final. Nada que não voltasse a repetir-se.
Numa fase em que os dois clubes bascos, Athletic Bilbao e Real Sociedad, resolveram dividir entre si os títulos de campeão de Espanha durante quatro anos, o Real caiu para a Taça UEFA. Há que dizer que aproveitou para rechear as vitrinas com duas. A de 1985-86 foi impressionante: nos oitavos de final, depois de ser envergonhado no campo do Borussia Münchengladbach (1-5), reverteu as coisas a seu favor ma segunda mão (4-0); depois, nas meias-finais, respondeu à derrota do Giuseppe Meazza frente ao Inter (1-3) com 5-1 em Madrid, após prolongamento. Mas viriam aí momentos bisonhos: 1987, 1-4 em Munique, nas meias-finais que puseram o Bayern na final de Viena contra o FC Porto; 1989, outra vez nas meias-finais, depois de um empate em casa face ao Milan, derrota em Milão por 0-5; na Taça UEFA de 1992-93, mais uma vitória caseira por 3-1 que descambou em Paris, face ao PSG, por 1-4; em 2009, nos oitavos-de-final, depois de 0-1 em casa, um doloroso 0-4 em Anfield, contra o seu adversário de hoje; nas meias-finais das Champions de 2013, novo 1-4 fora, desta vez batido pelo Borussia de Dortmund, depois de um resultado que parecia bom em Madrid – 2-0.
“Quod erat demonstrandum”, como diziam os latinos: eis o que precisava de ser demonstrado. Ou seja, que o empreendimento que o Liverpool tem neste momento pela frente já fez jurisprudência.
Quanto aos de Merseyside, ficaram com espinhas mais atravessadas pelo quase. O seu primeiro sonoro cameback europeu data de 1991-92 na Taça UEFA quando recuperaram de uma derrota de 0-2 em Auxerre para um 3-0 em Anfield. Depois disso, falharam por pouco a alegria das recuperações, também frente a dois clubes franceses: na Taça das Taças de 1996-97, frente ao Paris Saint-Germain – 0-3 fora e 2-0 em casa; e na Taça UEFA de 1997-98, contra o Estrasburgo – outra vez 0-3 fora e 2-0 em casa.
Que o futebol esquece os números e as estatísticas quando o árbitro faz soar o primeiro apito, esse é um dos axiomas do futebol. Esta noite, em Anfield, não haverá muitos capazes de acertar em cheio no resultado por mais apostas que se façam. Ele é tão imprevisível como uma chuva de Verão em pleno agosto. São assim os embates entre gigantes. Sobretudo entre os maiores de todos os gigantes.